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Papo de Teatro com Ruy Filho

Publicado em: 28/02/2011 |

Ruy Filho é diretor e dramaturgo.

 

Como surgiu o seu amor pelo teatro?
Sempre me dediquei a ser médico. O teatro foi um acontecimento casual. Até os 20 anos, só havia entrado em um teatro duas vezes, e isso com menos de nove. Voltei a morar em Ribeirão Preto e a trabalhar na escola onde estudei adolescente e acabei me envolvendo com o grupo de teatro que ela mantinha. Era apenas um passatempo junto aos amigos, a medicina ainda era meu foco principal. Sem grana, desenvolvi para o jornal da escola uma coluna onde cobria os acontecimentos culturais da cidade, como forma de ir a shows sem precisar pagar. Até que Zé Celso apareceu na cidade para apresentar “As Bacantes”. Precisei ler todo o material sobre o Oficina e fiquei fascinado como sua história se confundia com a do País. Fui assistir ao espetáculo para escrever a resenha e saí decidido a desistir do vestibular para medicina (que seria na manhã seguinte) para me entregar ao teatro por inteiro. De lá pra cá, não o deixei mais.
 
 

Lembra da primeira peça a que assistiu? Como foi?
Foi um espetáculo infantil, quase sem nenhuma fala. Eu tinha sete anos. O palco nu, apenas com dois atores era transformado por cores. Uma de cada vez. Ora azul, ora âmbar, amarelo, vermelho… Essa lembrança permaneceu perdida durante muito tempo, ressurgida há poucos anos, apenas. Hoje percebo o quanto a experiência estética daquele espetáculo formou a maneira como lido com a encenação e a imagem.
 
 

Qual foi a última montagem que você viu?
“O Ardor”. Espetáculo argentino dirigido por Ricardo Holcer. Trabalho fascinante e de inteligência rara.
 
 

Um espetáculo que mudou o seu modo de ver o teatro.
“Coda”, de François Tanguy. Assisti ao espetáculo em Curitiba, onde tive o prazer de organizar um encontro fechado com o diretor e sua companhia, junto a jovens diretores formados pela ECA. As provocações que lhe fiz durante o debate foram, posteriormente, respondidas na versão que foi apresentada em São Paulo. Realmente um dos trabalhos mais interessantes que já tive a oportunidade de assistir ao vivo.
 
 

Um espetáculo que mudou a sua vida.
A primeira vez que assisti a um espetáculo de Pina Bausch, estava em Paris. Foi como se minha alma fosse recriada para ser maior e mais apaixonada pela arte.
 
 

Você teve algum padrinho no teatro? Se sim, quem?
Não tenho como falar de minha trajetória no teatro sem mencionar Gerald Thomas. Ele foi, sem dúvida, possibilitador de boa parte do que conquistei até aqui.
 
 

Já saiu no meio de um espetáculo? Por quê?
Uma vez ou outra. Mas nunca por desistir dos trabalhos, sempre por acontecimentos inesperados. Divirto-me com espetáculos ruins.
 
 

Teatro ou cinema? Por quê?
Difícil. Ambos possuem pontos que me fascinam. Mas se tiver que escolher, prefiro o teatro. Gosto da realidade da ação, do erro e da exposição do artista sem truques.
 
 

Cite um espetáculo do qual você gostaria de ter participado. E por quê?
Gostaria de ter participado da criação e realização da trilogia bíblica que Romeo Castellucci desenvolveu para Avignon.
 
 

Já assistiu mais de uma vez a um mesmo espetáculo? E por quê?
Já sim. Quando o espetáculo me causa alguma sensação inesperada ou me conduz a aspectos sobre o mundo ou sobre mim mesmo que não conhecia, quase sempre retorno para reencontrar essas sensações com um olhar mais crítico e preparado.
 
 

Qual dramaturgo brasileiro você mais admira? E estrangeiro? Explique.
No Brasil, Gero Camilo tem mostrado uma qualidade poética singular no tratamento da palavra. Fora daqui, Harold Pinter é um cara que me inquieta bastante.
 
 

Qual companhia brasileira você mais admira?
É impossível dizer uma só. Fico com o Teatro da Vertigem e a Cia. dos Atores.
 
 

Existe um grupo ou companhia de teatro que você acompanhe todos os trabalhos?
Com pequenas falhas aqui e ali, acompanho o Oficina, Ópera Seca, Vertigem, Cia. dos Atores, Cia. Livre, entre outros. São grupos que dialogam com minha percepção do fazer teatral.
 
 

Qual gênero teatral você mais aprecia?
Gosto do teatro quando a cena e o discurso se valem de experimentações corajosas. O teatro experimental é sempre minha primeira opção.
 
 

Qual lugar da plateia você costuma sentar? Por quê? Qual o pior lugar em que você já se sentou em um teatro?
Não tenho um lugar de preferência. Deixo, um pouco, ao acaso. Já assisti a óperas no Teatro Municipal, em um balcão lateral, de onde  não dava para enxergar um terço do palco.
 
 

Fale sobre o melhor e o pior espaço teatral que você já foi ou já trabalhou?
Vi algumas salas na Alemanha excelentes. No Brasil, trabalhar no Sesc Anchieta é sempre um prazer, talvez esse seja o melhor palco que tenhamos em São Paulo. Quanto ao pior, é difícil, porque muitos são ruins de fato. Falta de acabamento, de estrutura técnica, de equipamento… Mas teve um, quando ainda era estudante, em que precisei usar a cabeça como anteparo para impedir que a goteira caísse sobre a mesa de luz. Isso enquanto fazia a operação e levava choque. Esse foi realmente bem complicado.
 
 

Já assistiu a alguma peça documentada em vídeo? O que acha do formato?
Já sim, e pude participar da gravação para DVD de “Bacantes”, cuidando dos vídeos e projeções utilizados durante o espetáculo. É preciso atentar para o fato de que o formato exige outra dinâmica na construção da narrativa. No palco conduzimos o espectador com inúmeros subterfúgios de tempo e técnica que não servem ao vídeo. Se isso for percebido durante a gravação e edição, assistir a um espetáculo assim pode ser muito interessante também.
 
 

Existe peça ruim ou o encenador é que se equivocou?
Existe. Há espetáculo que não se salva nem com boas ideias.
 
 

Como seria, onde se passaria e com quem seria o espetáculo dos seus sonhos?
Tenho sempre realizado meus sonhos, então é difícil falar sobre algo inatingível. Talvez eu tenha os pés no chão demais e sempre me aventure dentro do possível, ainda que os outros entendam como irrealizável. Enfrento e sigo adiante.
 
 

Cite um cenário  surpreendente.
O realizado por Simone Mina em “Um Bonde Chamado Desejo”, com direção de Cibele Forjaz. Simples, preciso e criativo.
 
 

Cite uma iluminação  surpreendente.
A luz criada por Guilherme Bonfanti para “O Livro de Jó”, com direção de Antônio Araújo. Era uma aula criativa de como usar técnica e conceito.
 
 

Cite um ator que surpreendeu suas expectativas.
Assisti a uma garota representando uma versão moderna de “Otelo”, em Berlim, que era sensacional, apesar de ter vinte e poucos anos. Não me recordo o nome dela.
 
 

O que não é teatro?
É difícil responder a isso sem tornar a resposta uma tese longuíssima. Há aspectos específicos de cada linguagem. O teatro, sobretudo no contemporâneo, faz-se muito próximo a outras linguagens, como performance, dança, artes visuais, ópera. Distinguir o que não é teatro passa pela necessidade de compreender onde se dá o limite de cada uma dessas manifestações. O teatro é algo dito por alguém em algum lugar. Sem isso, sem esses mínimos elementos, talvez o teatro deixe de existir.
 
 

Que texto você foi ler depois de ter assistido a sua encenação?
Não costumo ler os textos depois de assisti-los encenados. Não sou muito dedicado à dramaturgia. Busco minhas referências em filosofia, ciências humanas e ciências políticas.
 
 

A ideia de que tudo é válido na arte cabe no teatro?
Com certeza. A manifestação teatral não pode ficar condicionada a regras de conveniência ou parâmetros circunscritos a morais vigentes. Cabe ao teatro, assim como a todas as manifestações artísticas, a explosão dos valores comuns que servem à sociedade e ao politicamente correto.
 
 

Na era da tecnologia, qual é o futuro do teatro?
São muitos. Fala-se sempre sobre a inclusão de novas tecnologias em cena, do futuro do homem tecnológico, desse pós-humano, mas se esquece que o teatro pode ser feito sem nada disso também. São escolhas. A dança tem se aproximado da tecnologia de maneiras mais interessantes e apropriativas. O teatro, quase sempre, se conforma com o uso da tecnologia como expansão estética. Isso sim é muito pouco e cansativo. Há muito a ser descoberto sobre isso no Brasil.
 
 

O teatro é uma ação política? Por quê?
Não é o teatro em si que é uma ação política, mas qualquer manifestação estética, por propiciar um distanciamento crítico-sensível do observador, levando-o ao desenvolvimento, a partir daquilo que dialogou com sua subjetividade, de valores e contra-valores que o obrigam a reflexões e posicionamentos. E qualquer posicionamento, independentemente do assunto e decisão, é, por si só, a construção de uma ação política. Há que se diferenciar, entretanto, a politização ideológica de que é acometido o teatro de tempos em tempos. Muitos utilizam a cena para panfletar suas ideologias políticas. Apologia é uma coisa, construir no outro uma manifestação política, é outra. São coisas bem diferentes, com intuitos distintos.
 
 

Quando a estética se destaca mais do que o texto e os atores?
É comum no teatro contemporâneo a criação de espetáculos estéticos. Rompemos com a ortodoxia da cena tradicional há muito tempo. Um trabalho estético só se faz eficiente se o todo exigir dele tal tratamento. O efeito pelo efeito dificilmente convence. Agora, quando se compreende que o texto e o corpo do intérprete também podem servir à estética, como construção sígnica, então tudo se fecha em um único sentido.
 
 

Qual encenação lhe vem à memória agora? Alguma cena específica?
Sempre carrego comigo muitas cenas. Como nunca penso uma peça isoladamente, estou sempre criando várias ao mesmo tempo, cenas não faltam. Mas seria difícil definir aquilo que ainda é um apontamento. A cena das lâmpadas suspensas apagando e sumindo ao som dos nomes dos mortos pela ditadura militar brasileira, em “Rainha Mentira”, de Gerald Thomas, somada à carta escrita por ele para a mãe falecida, é uma das imagens mais tristes e belas a que já assisti.
 
 

Em sua biblioteca não podem faltar quais peças de teatro?
Quanto mais leio “Hamlet”, mais ele me incomoda. Isso é fato.
 
 

Cite um diretor (a), um autor (a) e um ator/atriz que você admira.
Sou volúvel em minhas paixões. Vou colecionando aleatoriamente sem me desfazer das paixões passadas, e, muitas vezes, encontro fora do teatro meus pares. Robert Lepage é um diretor que sempre me surpreende, ainda que já compreenda sua linguagem e não veja nada de radicalmente diferente em sua produção recente. Há algo nele que me instiga. Bráulio Mantovani me deu um ótimo susto com seu trabalho como dramaturgo, e isso tem sido cada vez mais raro. Uma atriz que me fascina, com quem gostaria muito de trabalhar, é Anna Guilhermina, sem dúvida uma das melhores de sua geração.
 
 

Qual o papel da sua vida?
Essa não é uma resposta que se deva buscar sozinho. Mas acredito que meu papel maior é de provocador. Os provocadores, portanto, me cabem bem.
 
 

Uma pergunta para William Shakespeare, Nelson Rodrigues, Bertold Brecht ou algum outro autor ou personalidade teatral que você admire.
Para Constantin Stanislavski: Caro senhor Stanislavski, o senhor se incomodaria muito se o senhor morresse de vez?
 
 

O teatro está vivo?
Sempre. Falou-se muito, nas últimas décadas, da morte do teatro. Mas o que está moribundo não é a arte, mas o mercado que a tornou catatônica. Os artistas se submetem ao mercado de maneira estúpida e irresponsável, e isso faz parecer que o teatro está morrendo. Morrendo mesmo, em extinção acelerada, estão os verdadeiros artistas. O teatro sobreviverá a eles e ao mercado, sem dúvida.
 

Foto: Patrícia Civinades