Otávio Martins é ator, diretor e dramaturgo.
Como surgiu o seu amor pelo teatro?
Eu sempre vi teatro, desde muito pequeno. Minha mãe sempre nos levava para ver peças infantis – e eu me lembro que achava cinema uma coisa meio chata, justamente porque os atores não estavam ali, de verdade. Além disso, tinha a escola (pública!) também, que levava os alunos todos os meses ao teatro. A paixão pelo palco, mesmo, ocorreu depois de assistir a “Eletra Com Creta”, do Gerald Thomas. Eu fiquei fascinado com aquilo – tinha uns 15, 16 anos – não imaginava que se pudesse fazer aquilo no palco. Maria Alice Vergueiro e Beth Goulart ainda estão na minha retina, de tão impressionado que fiquei.
Lembra da primeira peça a que assistiu? Como foi?
O primeiro espetáculo adulto que vi foi “Fedra”, numa montagem com Fernanda Montenegro, Sebastião Vasconcelos, Edson Celulari, Giulia Gam, Jacqueline Laurence… Eu lembro bem que, apesar de ficar muito impressionado com o trabalho da Fernanda, achei o texto meio chato. Anos mais tarde, fui reler a peça do Racine. Dito e feito: o texto é, de fato, muito chato.
Qual foi a última montagem que você viu?
“A Grande Volta”, dirigida pelo Marco Ricca, com o Fulvio Stefanini e o Rodrigo Lombardi.
Um espetáculo que mudou o seu modo de ver o teatro.
Foi num festival internacional que teve aqui em Sampa, no início dos anos 90. Vieram espetáculos do mundo inteiro, mas o que me chapou foi a “Trilogia Tebana”, de Andrei Serban. Eram três tragédias: “Medeia”, “Troianas” e “Electra”, num espetáculo de quase quatro horas. Foi a minha primeira experiência catártica: feito inteiro em grego arcaico, era possível entender absolutamente tudo. Inesquecível.
Um espetáculo que mudou a sua vida.
“Hamlet-Machine”, do Heiner Muller, dirigido pelo Marcio Aurelio, com a deslumbrante Marilena Ansaldi. Ah, e o “Quadrante”, com Paulo Autran virando onça no palco. Por pura coincidência, dois monólogos.
Você teve algum padrinho no teatro? Se sim, quem?
Eu considero o Paulo Autran o meu padrinho, e ele sabia disso. Eu tinha saído da Cia. do Latão e andava muito desencantado com a cena teatral, até porque as pessoas ainda me ligavam ao trabalho do grupo. Paulo me chamou para fazer “Vestir o Pai”, de Mário Viana, que ele dirigiu, e começamos uma amizade. Foi ele quem me incentivou a arregaçar as mangas e a produzir meus próprios espetáculos; também foi ele quem me ajudou a escolher a primeira peça que produzi, “Os Jogadores”, do Gogol. Ele me chamou para trabalhar novamente com ele em 2006, mas eu já estava ensaiando “A Noite Antes da Floresta”, portanto, não dava. No dia da estreia recebi um buque de flores, com um cartão, que guardo até hoje: “Eu estava certo. Você anda com as próprias pernas, e a peça será um sucesso. Seu amigo, Paulo Autran”.
Já abandonou um espetáculo durante a temporada? Por quê?
Nunca saí de um espetáculo no meio da temporada, por mais que tivesse tido vontade. Tenho um principio ético: uma vez que topei, vou até o fim. Existem muitas pessoas à nossa volta, que dependem do nosso trabalho e compreensão. Também já cansei de dizer não para propostas cuja remuneração era maior que aquela que havia topado – incluindo dois convites para a televisão – pelo
mesmo motivo. Assim como não chamo para trabalhar pessoas que agem assim, movidas pela grana. Compromisso é compromisso, e ponto.
Teatro ou cinema? Por quê?
Eu sou bicho de palco, é no teatro que está o meu barato, é ali que eu me realizo. Mas o cinema e a TV são duas grandes mídias onde se pode realizar um grande trabalho para o ator; trabalham com sutilezas que muitas vezes o trabalho no palco não permite.
Cite um espetáculo do qual você gostaria de ter participado. E por quê?
“O Avarento”, última montagem do Paulo Autran, com direção do Felipe Hirsch. Seja pela belíssima montagem, seja pela oportunidade de dividir o palco com o maior ator que este País já teve.
Já assistiu mais de uma vez a um mesmo espetáculo? E Por quê?
Sim, “Clitemnestra”, com a Marilena Ansaldi, direção de Antônio Araújo. Uma montagem absolutamente simples e genial. Fiquei tão impactado que assisti seis vezes. E pagando o ingresso.
Qual dramaturgo brasileiro você mais gosta? E estrangeiro? Explique.
Temos vários grandes dramaturgos, mas eu sempre dou preferência aos meus contemporâneos. Para mim, o panteão dos dramaturgos prediletos é ocupado por Mário Viana, Mário Bortolotto e Newton Moreno. E ainda os caras que mostram um trabalho lindo, cada vez mais consistente e dramaturgicamente ricos, como Sergio Mello, Lucianno Maza, Gabriela Mellão, Jô Bilac e Pedro Brício. Dos estrangeiros, sou fã de Sarah Kane, Bernard-Marie Koltès, Arthur Miller, Serge Valetti, Will Eno e Tom Stoppard.
Qual companhia brasileira você mais admira?
Não sou muito afeito ao trabalho dos grupos, porque de uma forma ou de outra acabam criando uma padrão que se repete à exaustão. A diversidade criativa é o que me encanta, gosto de fazer trabalhos radicalmente diferentes, e isso acaba espelhando o meu gosto quando tenho a oportunidade de assistir a um espetáculo de grupo. Por isso, são poucos aqueles que gosto de acompanhar o trabalho: Os Satyros (SP), Galpão (MG) e Cia. dos Atores e Armazém (RJ). São companhias conduzidas por diretores que sabem reinventar seus próprios trabalhos.
Existe um grupo ou companhia de teatro que você acompanhe todos os trabalhos?
Infelizmente não, porque de uma forma ou de outra estamos sempre em cartaz ao mesmo tempo, mas eu geralmente dou um jeito de assistir aos colegas. Seria muito bom se pudéssemos voltar a ter as famosas “sessões para a classe”, que possibilitavam tanto uma oportunidade para que pudéssemos prestigiar o trabalho uns dos outros como gerar um debate saudável sobre os rumos que o teatro brasileiro segue.
Qual gênero teatral você mais aprecia?
Não se trata muito de gênero, é mais uma questão de ser uma boa peça ou não. Mas eu devo confessar que sou um apaixonado pela comédia: desprezada pela crítica e pelos acadêmicos, esse é o gênero mais difícil de execução, seja por quem escreve, seja por quem atua.
Qual lugar da plateia você costuma sentar? Por quê? Qual o pior lugar que você já sentou na plateia?
Sempre no meio da plateia, de preferência entre a quinta e a sétima fileiras. Já os piores lugares acabam sendo as últimas fileiras, inevitavelmente.
Fale sobre o melhor e o pior espaço teatral que você já foi ou já trabalhou?
O melhor espaço para conforto dos atores e do público é o teatro Frei Caneca, cuja estrutura é impressionante. O teatro FAAP é outro cuja estrutura é um prazer à parte para quem faz e para quem assiste. Existem também aqueles espaços pelos quais eu acabei criando uma relação afetuosa, como o Teatro Folha, o Espaço dos Satyros 1 e o Teatro Augusta. Já o pior foi o Espaço dos Satyros 2, por ser muito úmido, e pelas condições precárias de acolhida ao artista e ao espectador.
Já assistiu a alguma peça documentada em vídeo? O que acha do formato?
A graça do teatro é ao vivo, portanto, não há como uma gravação substituir esse fenômeno que é efêmero em sua raiz. No entanto, o vídeo é necessário como instrumento de divulgação, ainda mais hoje em dia, com o YouTube e outras mídias. A boa notícia é que tem muita gente bacana gravando os espetáculos e editando de uma forma que seja agradável de ver e “entrar no clima”. O Gustavo Haddad, por exemplo, faz um trabalho sensacional: ele assiste a peça, e depois a grava em vários ângulos, tentando reproduzir com máximo de fidelidade a recepção do público. A qualidade do trabalho dele se dá justamente porque ele é ator (e dos bons), e essa sensibilidade fica nítida na edição do material. São trabalhos como esse que fazem a diferença.
Existe peça ruim ou o encenador é que se equivocou?
Claro que existe peça ruim, assim como existem enganos dos encenadores, mas é muito difícil argumentar nessa questão. Se todos tivéssemos as condições técnicas de montar espetáculos, poderíamos separar o joio do trigo, mas num País carente de uma política cultural consistente, isso fica praticamente impossível. Normalmente, as pessoas fazem o que dá pra fazer, e a ideia acaba sendo prejudicada por falta de dinheiro. Por isso, acho complicado apontar este ou aquele como culpados por uma montagem, digamos assim, infeliz.
Como seria, onde se passaria e com quem seria o espetáculo dos seus sonhos?
O espetáculo dos meus sonhos? Pergunta difícil essa. Não saberia dizer que peça seria, tampouco o lugar. Mas uma coisa eu sei: poder trabalhar novamente com meus grandes companheiros de cena seria o maior dos presentes. Então teria que ser um espetáculo que eu pudesse reunir Denise Weinberg, Denise Del Vecchio, Norival Rizzo, Sandra Corveloni, Alexandre Slaviero, Eric Lenate, Melissa Vettore, Patrícia Pichamone, Eduardo Semerjian, Alex Gruli, Paula Cohen, Georgette Fadel e Eduardo Leão. Fora aqueles com quem eu adoraria contracenar, mas nunca tive a possibilidade. Eu gosto de trabalhar entre amigos.
Cite um cenário surpreendente.
André Cortez, em “A Grande Volta”. Aliás, como todos os cenários que ele cria.
Cite uma iluminação surpreendente.
Domingos Quintiliano, em “A Noite Antes da Floresta”. Um artesão da luz.
Cite um ator que surpreendeu suas expectativas.
Alexandre Slaviero. Ele fazia o papel de meu filho em “Side Man”, que estava em cartaz até pouco tempo. Alexandre tem uma entrega em cena como poucas vezes eu tive o prazer de experienciar na minha vida. O mais desconcertante disto é o fato de “Side Man” ter sido sua primeira peça, uma vez que ele é um ator formado na televisão. São experiências como esta que nos mostram que qualquer preconceito com a mídia televisiva é uma grande bobagem: bons atores estão por toda parte. É um ator que espero trabalhar muitas e muitas vezes.
O que não é teatro?
A pergunta abre muitas janelas, então minha resposta necessariamente é genérica: não é teatro aquilo que não estabelece o contato com o espectador. Uma comédia comercial ou um experimento de teatro de grupo podem ser (bom) teatro, como também podem não ser. O fenômeno teatral, aquele onde a comunhão entre obra e plateia se estabelece, independe do gênero. O que é inaceitável é uma obra fechada em si, que não se preocupe com o espectador. O público tem que ser, em primeira e última instâncias, o grande motivador do teatro. Gerar material interessante, para que este espectador possa abrir seus horizontes, é a obrigação artística de cada um de nós que ocupa um palco durante uma temporada.
Que texto você foi ler depois de ter assistido a sua encenação?
“Hamlet-Machine”, do Heiner Muller, “Temporada de Gripe”, de Will Eno, e vários outros. Quando uma encenação mexe comigo, eu gosto de ler o texto original. Mesmo que a busca desse texto original acabe, muitas vezes, sendo uma tortura…
A ideia de que tudo é válido na arte cabe no teatro?
Os elementos da vida cotidiana sempre alimentaram as montagens, a inserção de novas tecnologias também. Tudo depende do uso artístico que se dá à obra.
Na era da tecnologia, qual é o futuro do teatro?
Nós sempre seremos os artesãos. Nossa arte é feita ao vivo, na manufatura, nas descobertas que são feitas dia a dia nas apresentações. Claro que a tecnologia pode aperfeiçoar tudo isso, mas para mim uma peça de teatro é aquela que, no caso de um blecaute, os atores consigam contar a mesma história à luz de velas. Teatro é ator. E ponto.
O teatro é uma ação política? Por quê?
Não, de forma alguma. Teatro, como as demais expressões artísticas, é jogar um outro olhar para que o espectador possa ampliar seus horizontes, para que ele não perca a capacidade de abstração, o contato com o universo sensível. É claro que uma peça de teatro pode jogar seu olhar para as questões políticas, mas sem perder a ternura e a poesia. Brecht fazia isso magistralmente. Guarnieri também.
Quando a estética se destaca mais do que o texto e os atores?
Quando a busca pelo estético suplanta o que de mais rico e sensível pode haver no teatro: seu texto e seus atores. Os anos 80 e 90 foram ricos em transformar os atores em objetos de cena que se moviam. Não à toa todos esses encenadores caíram no ostracismo, ou evoluíram para uma busca que deixasse a estética em seu devido lugar.
Qual encenação lhe vem à memória agora? Alguma cena específica?
Inevitavelmente, “Side Man”, dirigida pelo Zé Henrique de Paula. Acabamos de realizar a primeira temporada, e é um espetáculo que ainda pulsa demais no meu coração.
Em sua biblioteca não podem faltar quais peças de teatro?
Todas. Sou um leitor voraz de dramaturgia.
Cite um diretor (a), um autor (a) e um ator/atriz que você admira.
Francisco Medeiros (diretor), Sergio Mello (autor), Denise Weinberg (atriz) e Eric Lenate (ator).
Qual o papel da sua vida?
O dia que eu descobrir, eu monto a peça!
Uma pergunta para William Shakespeare, Nelson Rodrigues, Bertold Brecht ou algum outro autor ou personalidade teatral que você admire.
A minha pergunta vai para o Paulo Autran: você tem ideia da falta que faz?
O teatro está vivo?
Ele nunca morreu. Nem nunca morrerá. Está mais vivo que nunca. Evoé!