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Papo com Paroni | Confissão de dívida

Publicado em: 26/10/2016 |

por Mauricio Paroni de Castro, especial para a SP Escola de Teatro

 

Conheci Timochenko Wehbi em 1980, quando cursava o segundo ano da faculdade de direito da USP. Era uma aula da cadeira chamada “Problemas Brasileiros”. Descrevia os males da censura no teatro. Na época, qualquer teatro feito onde quer que fosse era uma forma de resistência. Bastava ser teatro. 

 

Veio-me de Timó, como era chamado entre os artistas, pela a primeira vez, a real noção do que a censura e a falta de recursos que governo havia relegado ao País, causava: depauperamento. Timó não  se escondia em trincheiras de descolados. Ia falar num antro de reacionários como a Faculdade de Direito. Foi uma aula memorável. Ao fim, com alguns colegas “existencialistas”, execrados pela cartilha que hoje grassa no poder constituído, tomamos um café. Ficamos amigos.

 

Eu titubeava para decidir a fazer teatro de uma vez. Naqueles tempos, vindo de uma família sem tantas posses, o ato era temerário. O ofício do teatro queria dizer nesta ordem: I. Arriscar a pele; II. Condenar-se à precariedade financeira; III. Preterir a segurança da advocacia. Não havia sombra de uma escola como a SP. Não havia saída. Era escolher entre fazer o teatro depauperado da liberdade que caracterizou o período ou ser um advogado frustrado. A solução contemporizadora veio com um concurso para a Secretaria de Estado da Cultura; Consegui furar as falcatruas da administração Maluf. Na fase escrita, superei os demais concorrentes com a pontuação máxima e, matematicamente, o segundo colocado não poderia me alcançar. Fui aprovado diretamente. Tiveram que me deglutir na primeira administração do Teatro Sergio Cardoso. 

 

Havia o teatro, mas… Desequipado e desprovido de qualquer subvenção. Quem podia produzir, arcava com o risco da bilheteria. Nada que hoje seja muito diferente, mas naqueles anos, a dificuldade para fazer qualquer coisa num palco era radicalmente acima do humano. Dilma de Melo Silva era minha colega ali. Convidados a um improvável e ideológico congresso de arte educação em Ouro Preto, para lá viajamos. Timochenko e um seu amigo, resistente diretor no Sesc, Carlos Lupinacci, juntaram-se a nós. 

 

Por alguns dias, convivi com a sua iconoclastia e irreverência ante tudo o que aparentava ser potente e constituído: ele era sistemático a desancar as condutas e ideias inerentemente pequeno burguesas seja dos “direitistas” mineiros, seja dos “esquerdistas” catouniversitários. Era escandalosamente orgulhoso em ostentar a sua orientação sexual para protagonizar admiráveis cenas antissacrais, em pleno albergue de um monastério de Mariana de que não recordo o nome, em ruas de uma Ouro Preto lotada de turistas religiosos. Vida e teatro com ele eram a mesmíssima coisa. Comecei a perceber que o teatro era muito mais que um instrumento ideológico, e que a política se expande muito além de tal instrumentalização. O espetáculo de confraternização final do congresso traz-me à memória uma imagem eloquente: Timochenko montado como um cavaleiro western numa tradicional dama de Belo Horizonte posta de quatro, em trajes sumários, a declamar um seu belíssimo poema escrito num rolo de papel higiênico a modo de papiro. 

 

Para além de suas obras, vi que a liberdade que derrubaria a ditadura começava por ali – lição jamais esquecida. Decidi entrar na Escola de Comunicações e Artes da USP. Superado o vestibular, ali fiz uma Peça de Ray Bradbury como ator, “O Pedestre”. Ele a dirigiu com Dilma. Foi o que me fez decidir não ser advogado e virar um diretor. Assim que terminei a faculdade, embarquei para Milão, a conselho de Gianni Ratto e Wolney de Assis, a recuperar um conhecimento prático que acreditava ter sido brutal e calculadamente privado do Brasil. Algo comparável à verdadeira chacina de cérebros perpetrada pela inoculação da droga pesada em qualquer contestação dos anos 70.

 

A sua paixão por Fellini e palhaçaria me acompanhou à Itália em 1985. Infelizmente, uma presença constante – além da ditadura – o levou de nosso convívio: a morte prematura. Isso aumentou o dever de praticar e ensinar um artesanato teatral – europeu ou não – que a ditadura militar nos destruiu. Fui surpreendido com aquela trágica noticia em 1986, quando já estudava no Piccolo Teatro de Milão. Entrementes, a benéfica influencia de sua amizade, de suas personagens, de nossas conversas, já fazia com que eu pendesse sempre para o incerto, para o caminho mais difícil, o mais libertário, o mais iconoclasta, mas infinitamente mais compensador. De maneira emblemática, havia travado, naquele mesmo 1986, o encontro com um diretor e dramaturgista radical, Thierry Salmon – também morto prematuramente – que, dentro de mim, muito haveria a trocar com Timochenko; o seu modo de escrever era exatamente o que ele sonhava na escritura cênica, avizinhando-se sem jamais confundir o limite da representação de palco e o da representação psicodramática. Um hiato, um vazio, que me orienta a perseguir a pesquisa permeada por essas duas linhas de conduta expressiva. Uma afinidade eletiva. Uma vida.

 

Tal afinidade eletiva supera qualquer realidade adversa e traz-me a lembrança de sua inelutável opção de pugnar pelo impossível, pelo que aparente e momentaneamente é perdedor. Timochenko Wehbi significa uma das maiores e mais importantes lições de vida e de teatro que tive. Sua dramaturgia segue misturada com a sua existência real, longe de um naturalismo meramente imitador de uma falsa “realidade”. Escava as biografias patéticas de nosso tempo para atingir uma dramaticidade que está muito além do protesto imediatista. Sua ultima obra – Curto-circuito – indica um caminho valioso de afastamento da verossimilhança para a aproximação da credibilidade que  supera de muito o que escreveu no papel, ainda que de ótima qualidade.    Pessoalmente iconoclasta até a medula, alcançou uma arte exatamente coincidente com a própria historia de vida, alternada em simulação psicodramática iluminada pela dignidade do Humano. Obrigado, Timó!

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