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O Teatro das Maravilhas

Publicado em: 17/08/2012 |

Por Ivam Cabral*

Há algum tempo reli o texto dramático “Retábulo das Maravilhas”, de Miguel de Cervantes. A obra, escrita no final do século 16, conta a história de um grupo de teatro mambembe que, numa pequenina cidade do interior da Espanha medieval, tenta enganar o governador, o alcaide e alguns moradores de uma vila com as mais absurdas ilusões de ótica.

“Retábulo das Maravilhas” é uma peça curta e, ainda que num primeiro momento pareça ingênua, nos pega exatamente na armadilha do imaginário.

Cervantes trabalha com o binômio realidade/fantasia e brinca, o tempo todo, com teorias do jogo teatral. Interessante, no entanto, é encontrar na obra o “se mágico” de Stanislavski, que se ocupa das conjeturas imaginárias para desembocar no processo criativo.

O autor ainda realiza, nesta obra, uma crítica feroz à igreja e à sociedade. Em plena inquisição, as personagens-atores-mambembes avisam que irão apresentar um grande espetáculo em seu pequeno retábulo e quem não conseguir enxergá-lo é bastardo.

Em um universo picaresco – muito comum no teatro espanhol do período –, Cervantes se utiliza, também, do elemento grotesco para chegar a um delicioso jogo do imaginário. E a nós, público – ou, no meu caso, mero leitor –, cabe enxergar exatamente aquilo que não se vê, que não se encontra num primeiro plano.




Em um universo picaresco – muito comum no teatro espanhol do período –, Cervantes se utiliza, também, do elemento grotesco para chegar a um delicioso jogo do imaginário
 

No livro VII de “A República”, escrito há quase 2.500 anos, Platão narra o mito da caverna, uma das metáforas mais poderosas da Teoria do Conhecimento. Segundo o filósofo grego, não conhecemos a realidade, apenas as sombras do que imaginamos ser o real – sua imitação, a mimesis, portanto. Essa revelação da condição humana mostra que a realidade acaba por pertencer apenas ao mundo das ideias.

Que deliciosa associação! Então, na verdade, o plano do imaginário, da mimesis, seria, de fato, o lado real daquilo que pensávamos, até agora, pertencer ao terreno da representação? Porque, em seu texto, a “realidade” de Cervantes não está acessível aos descrentes e pertence única e exclusivamente ao campo do imaginário.

Desse modo, no universo cervantesco, a imagem faz conexão entre processos mentais, físicos, imagéticos e não se representará apenas no plano visual. É, portanto, a experiência psicofísica que pode resgatar tanto o passado quanto o futuro.

Não podemos esquecer que a memória também pode ser imaginativa e, por isso mesmo, pode trabalhar nas camadas das possibilidades. Seu conteúdo é seu suporte e deve ser credenciado como algo vivido.

Sim, a memória torna visível o invisível quando seu uso é feito através de seu processo, nunca de seu conteúdo, e, assim, temos organizadas as nossas experiências, recuperando, desta forma, nossas trajetórias.

Hegel irá dizer, em algum momento que a reflexão sobre a arte acaba por ser mais interessante que a própria arte. Se tomarmos Platão como referência, podemos pensar que o atraente desta relação seria, então, a operação que desencadeia a mimesis.

Há, ainda, uma outra teoria de Aristóteles que irá contrapor Platão falando sobre a imitação das ações. Para ele, a mimesis é sempre ativa e também criativa, pois resgata o mundo nos mesmos moldes pelos quais se organiza.

Ainda para Aristóteles, o teatro trabalha com o paralelo da imitação das ações cotidianas. Nesta ordem, o dramaturgo imita pessoas quando cria suas personagens; e o ator, por sua vez, duplica estas personagens que são, em si, as pessoas realizadoras destas ações.

Em nossos tempos, o mito da caverna descrito por Platão pode apresentar, simplesmente, a dialética como movimento ascendente da libertação de nosso olhar. Um olhar que nos libera da cegueira para vermos a luz das ideias, real e quase absoluta.

Mas estamos falando de teatro, nesse caso, o teatro das maravilhas, que tão bem nos apresentou Cervantes. Nele, suas personagens, ao imitar as ações cotidianas, nada mais são do que reflexos de suas próprias apreensões. E parece que nada mudou desde que aqueles artistas mambembes se atiraram aos seus próprios paradoxos. A peça, embora delire vocabularmente, é grandiosa no satírico. E ainda que estejamos no contexto da inquisição, não podemos esquecer que, neste meio, é fatal ser bastardo.

* Ivam Cabral é ator, dramaturgo, diretor executivo da SP Escola de Teatro e mantém o blog Terras de Cabral