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O advento do som sincronizado no cinema

Publicado em: 15/04/2014 |

* por Martin Eikmeier, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

Com frequência usamos a expressão “cinema mudo” para nos referirmos às experiências cinematográficas anteriores ao advento do som sincronizado, ou seja, anteriores à tecnologia que permitia registrar sons em um suporte (em um disco ou na própria película cinematográfica) e reproduzi-los em sincronia com o tempo das imagens que corriam no projetor. 

 

No entanto, essa é uma expressão no mínimo descuidada e incorreta, quando consideramos seu equivalente em inglês – silent movies (cinema silencioso). Isso porque registros garantem que as primeiras imagens exibidas pelos Irmãos Lumiére em 1895 no Grand Café de Paris já teriam sido acompanhadas por música; apesar dessas imagens não terem naquele momento qualquer pretensão em contar histórias, já que o espetáculo que ofereciam era sua própria existência como tecnologia. Em outras palavras, o que atraía o público para assistir ao que os irmãos tinham para oferecer não era o conteúdo de suas imagens, mas a existência de tais imagens em si. Fato que levantou uma importante questão: se essas imagens eram desprovidas de linguagem, de intensão narrativa, qual o propósito de apresentá-las com música?

 

Kurt London, um dos primeiros teóricos a dissertar sobre o tema, sugeriu que a música era uma forma de abafar o som desagradável e dispersante dos projetores. Hans Eisler e Theodor Adorno acreditavam que a experiência de assistir pela primeira vez a essas imagens cinzentas e virtuais em uma sala escura e silenciosa poderia ter evocado um sentido fantasmagórico desconcertante. A música teria sido incorporada para amenizar este efeito. 

 

Mas foi na condição em que essas primeiras imagens foram exibidas, assim como aquelas que as seguiram, que a pesquisadora Claudia Gorbmann encontrou a resposta que melhor encaminha esse artigo. O invento tecnológico batizado de cinematógrafo foi apresentado em um Café Concerto em Vaudevilles, Teatros de Variedades e Music Halls. Tratavam-se de casas que abrigavam todo o tipo de espetáculo de entretenimento no final do século XIX e começo do século XX: números musicais, acrobacias, mágica e ilusionismo, teatro, comediantes e palhaços; em sua grande maioria acompanhados por música. Não foram raras as vezes em que um invento tecnológico foi apresentado como um número entre outros. Sendo assim, um acompanhamento musical para a demonstração do equipamento era da natureza do contexto no qual ele foi apresentado.

 

E foi justamente o fato de ter sido apresentado nesse contexto que garantiu ao cinematógrafo a trajetória que teve até os dias de hoje. O equipamento seduziu artistas e profissionais do entretenimento que circulavam nessas casas, como o mágico George Meliés, que percebeu a enorme vantagem potencialmente contida no seu emprego como veículo de suas atrações. No espírito da lógica industrial o cinematógrafo permitia que uma mesma atração, como um número de mágica, fosse registrada em película e reproduzida em cópias na quantidade que fosse necessário. A presença do artista na casa já não seria mais uma condição necessária. No seu lugar circularia o equipamento e a película. O artista poderia fazer dinheiro com uma única apresentação, que certamente tomaria mais trabalho do que o que ele estava habituado a realizar no teatro, mas seria de qualquer maneira um episódio único. 

Aos poucos, mais e mais artistas, das mais diferentes áreas, voltaram suas atividades para o cinema encaminhando seu papel à prática de contar histórias. Para tanto, uma linguagem específica teve de ser elaborada – veja o artigo –  e os primeiros cineastas passaram a incorporar recursos do teatro, da ópera e da literatura. Entre eles o emprego da música e da sonoplastia como elementos narrativos, que auxiliavam na caracterização de lugares, personagens, comportamentos ou emoções.

 

Logo nos primeiros anos de sua existência como veículo narrativo, o cinema contava com uma variedade considerável de sons que, em alguns casos, estavam inclusive sincronizados às imagens, mesmo que de forma precária. O som mais comum era a música. Praticamente todas as salas de exibição possuíam pelo menos um pianista e as mais sofisticadas chegavam a ter orquestras inteiras. Além dos músicos, algumas  salas possuíam ainda um mestre de cerimônias que narrava e explicava a história, além de ler as legendas, pois muitas vezes o público que frequentava essas sessões era analfabeto, ou as legendas estavam em uma língua estrangeira. Efeitos de som de todos os tipos também foram incorporados: enormes órgãos com nomes peculiares como Noiseograph, Dramagraph, Kinematophone, Soundograph e o famoso Wurlitzer, o pai dos sintetizadores, podiam reproduzir sons de galope, vidro quebrando, passos, sinos, animais, buzinas, tiros, entre outros.

 

Por mais sofisticadas que pudessem ser essas intervenções sonoras e musicais, do ponto de vista artístico, os produtores esbarravam em um limite lógico. Por um lado, o cinema tinha potência para ser uma atividade industrial. Era possível registrar e montar imagens com o objetivo de se contar uma história e entreter, e em seguida multiplicá-las em série para que fossem consumidas no mundo todo, como qualquer outro produto feito em série no modelo da indústria. Por outro, o som e a música ainda eram realizados de forma artesanal; produtores e cineastas não tinham qualquer controle sobre o que era gerado nas salas de exibição no momento em que seu produto – a imagem – era exportado para outras cidades ou outros países. 

 

Na tentativa de uniformizar o repertório executado pelos músicos e sonoplastas, e evitar arbitrariedades que pudessem contrariar a natureza de seu negócio, a indústria de cinema, em um esforço conjunto com os editores de partituras, passou a publicar as antologias musicais. Eram livros que organizavam uma série de temas derivados do repertório erudito, da música de salão, bem como do teatro. Os temas eram separados em um índice por categorias que contemplavam uma ideia geral da cena, da ação ou do lugar no qual a ação se passaria: música para perseguição, música misteriosa para assalto, música para duelo, música para cena de morte, música oriental, música indígena. Os mais conhecidos foram o Sam Fox Moving Picture Music, o Kinothek e o Motion Picture music for pianists and organists. Quando os filmes eram distribuídos, os produtores enviavam uma planilha especificando o momento no filme e o tema que o intérprete na sala de exibição deveria executar ou sobrepor às cenas. 

 

Era claro que o passo definitivo em direção à completa industrialização do cinema seria a introdução do som sincronizado à película, tanto para os produtores de cinema quanto para os inventores e engenheiros que investiram esforço e enormes quantias de dinheiro na pesquisa e no desenvolvimento de soluções para este fim. 

 

Duas tecnologias foram desenvolvidas praticamente ao mesmo tempo: o som em disco e o som ótico. Aqui devemos considerar, sobretudo, a primeira intenção em sobrepor sons às imagens em movimento, e essa é, inclusive, mais antiga que a própria exibição dos Irmãos Lumiére em 1895. Já em 1888, ou seja, sete anos antes, o pesquisador Edward Muybridge escreve para Thomas Edson especulando a possibilidade de associar seu zoopraxiscópio ao fonógrafo, cuja patente já tinha 11 anos (1877). A parceria entre os dois nunca aconteceu; porém, em 1895, no mesmo ano daquela que foi reconhecida como a primeira  exibição de cinema, Edson adapta seu fonógrafo ao Kinetoscópio e produz cerca de 50 máquinas, batizadas por ele de Kinetofone. Esta máquina não teve sucesso comercial, pois a exibição como com o Kinetosópio, só era possível de forma individual – o espectador olhava por uma pequena tela presa a uma caixa enquanto o som era escutado em fones de ouvido. A prerrogativa do cinematógrafo era justamente a projeção em uma tela e sua exibição para grande público, o que fazia com que experimentos como o de Thomas Edson fossem rapidamente abandonados.

 

Na tentativa de superar esse limite, o pesquisador e pioneiro do cinema alemão, Oskar Messter, apresentou, em 1904, na feira mundial de St. Louis, o Biophon, projetor que, conjugado através de um sistema de correias a um toca-discos posicionado na frente da plateia, sincronizava imagem e som. O filme exibido para o público internacional era falado em inglês e teve sucesso considerável, tanto com o público quanto com o seu objetivo que era a sincronização. O problema que o condenou e que viria a condenar outros inventos da mesma natureza era a amplificação do som. Como o som nesse momento ainda era registrado de forma mecânica, sem o recurso da eletricidade, o volume e a qualidade eram muito ruins para uma sala, comprometendo a exibição. Sistemas como o Biophon estavam de certa forma competindo com as orquestras, os músicos e os artistas que procuravam sonorizar as imagens em tempo real. Naquele momento, esse procedimento, com o qual o público já estava habituado, permitia uma qualidade sonora muito superior ao sistema mecânico. O Biophon teve seus equivalentes como o Kinetofone para salas de exibição, patenteado por Edson em 1913, e o sistema de Leon Gaumont, apresentado na França. Entretanto, todos fracassaram por conta do mesmo limite: a falta de amplificação e a baixa qualidade de reprodução sonora.

 

Nos anos 1920, a gravação elétrica de som trouxe novas perspectivas para as pesquisas em reprodução de som sincronizado no cinema. A gravação elétrica, além de prática, permitia uma qualidade de reprodução muito mais fiel que a mecânica, pois os sinais mecânicos registrados pelo disco eram amplificados eletricamente por um sistema de válvulas. Consequentemente, seguindo a lógica dos sistemas patenteados por Messter, Edson e Gaumont, em 1926 a Warner Brothers apresenta o Vitafone. A diferença em relação aos seus predecessores era que o toca-discos ficava agora ao lado do projetor, já que o som reproduzido por ele podia ser transmitido por eletricidade através de cabos conectados a caixas de som instaladas de frente para a plateia. Esse recurso evitava possíveis problemas de sincronia que o antigo sistema de correias possuía.

 

Correndo em paralelo a essas pesquisas, outros pesquisadores vislumbraram uma segunda possibilidade de sincronizar o som às imagens em movimento. Gravar o som diretamente na película. Os prognósticos para essa tecnologia eram definitivamente animadores, pois o som e a imagem estariam correndo no mesmo suporte. Além de reduzir custos de produção, eliminava-se o risco contido no sistema de disco, que tinha som e imagem correndo em suportes separados, e que poderiam a qualquer momento deixar de funcionar conjuntamente comprometendo a sincronia. E foi nisso que esses pesquisadores apostaram.

 

Tudo começou com a primeira tentativa de fotografar o som: em 1878, E. W. Blake publica o artigo “A method of recording articulate sounds by means of photography”. Dois anos depois, Graham Bell patenteia a célula de celênio para a detecção de sinais sonoros transmitidos por luz. Em 1886, dois sistemas se dividem: um permite que a luz reconheça o som através da variação de densidade da célula e o outro através da variação da área. Já nessa época patentes são registradas para os dois sistemas.

 

O primeiro a patentear a ideia de associar essa forma de registro ao cinema foi Eugene Lauste, antigo colaborador de Thomas Edson, em 1907. Entre 1910 e 1914, Lauste produz uma série de filmes sonoros, mas encontra os mesmos problemas que os colegas engenheiros dedicados à pesquisa da sincronia com o disco: a amplificação.

 

Contribuindo para contornar esse problema, Jakob Kunz inventa, em 1913, a célula fotoelétrica, muito importante para o futuro do som ótico, pois permitia uma fidelidade e precisão na gravação e na reprodução do som, muito maior que a célula de celênio.

 

E, finalmente em direção à gravação elétrica, os pesquisadores Hans Vogt, Jo Benedict Engl e Joseph Massole registram em 1919 a patente de seu sistema que usava a tecnologia da densidade variável para a modulação da luz na película. Batizaram de Tri-ergon, palavra que vem do grego e significa “Trabalho de três”. O sistema traduzia vibrações mecânicas de som em impulsos elétricos que eram convertidos em sinais óticos, usando a célula fotoelétrica de Jakob Kunz. Esses sinais óticos poderiam então ser gravados diretamente no canto da película por um processo fotográfico, inventado por Eugene Lauste, mas aprimorado por eles. Outra célula fotoelétrica transformava estes sinais em impulsos elétricos, que, por sua vez, eram amplificados e transformados em vibrações sonoras.

 

Em 1920, Joseph Tycociner, um importante pesquisador do som ótico no cinema, retoma seus trabalhos, realizando, dois anos depois, a primeira demonstração de seu phonoactinion e apresentando um filme sonoro que usava a célula fotoelétrica e os recém-criados amplificadores valvulados para um público restrito.

 

Neste mesmo ano os pesquisadores Hans Vogt, Jo Benedict Engl e Joseph Massole exibem o filme “Der Brandstifter”, primeiro longa-metragem com som sincronizado. De acordo com registros, o filme continha cenas de perfeita sincronia labial. Este sistema foi o primeiro a apresentar um mecanismo de roldanas que mantinha a velocidade do filme constante, favorecendo, assim, a qualidade da reprodução sonora. O desenvolvimento do Tri-Ergon havia custado muito dinheiro ao Governo alemão, que desistiu de investir na exibição de filmes com o sistema. Os pesquisadores venderam-no por apenas 200.000 marcos alemães para Willian Fox, cinco anos depois.

 

Theodore Case desenvolve, neste mesmo ano de 1922, a AEO light – uma lâmpada a base de hélio de grande intensidade, adequada para a gravação sonora –, e se torna um dos nomes mais importantes na pesquisa de som ótico. Associou-se a Willian Fox em 1926, criando a Fox Case Co.. Nessa empresa desenvolveram o Movietone, equipamento que seria concorrente direto do Vitafone dos irmãos Warner.

 

Neste final de década a disputa entre os sistemas de gravação em disco e os sistemas de gravação óticos era muito grande. E apesar do som ótico ter se tornado o padrão em gravação e reprodução de som para cinema, o grande estopim da revolução sonora foi o lançamento do filme “O cantor de Jazz”, feito pela Warner com seu sistema Vitafone.

 

Na história do cinema, nenhuma outra inovação tecnológica provocou tanto impacto e mudança na forma e na estrutura de trabalho, na atuação, no conteúdo e no tema quanto à introdução comercial do cinema sonoro (ou cinema falado). As experiências realizadas até então indicavam uma introdução paulatina dos sistemas de som nas salas de exibição. O cinema mudo estava muito bem do ponto de vista comercial e não havia necessidade da introdução imediata de qualquer tipo de novidade. O motivo que provocou essa entrada tão brusca e repentina do som foi a falência dos irmãos Warner, que na época investiam no sistema Vitafone e haviam contraído muitas dívidas. Sua última tacada foi apostar no filme “O Cantor de Jazz”. O efeito que o filme produziu na indústria surpreendeu a todos. Da noite para o dia as pessoas simplesmente não queriam mais assistir a filmes não falados. Os chamados “talking pictures” haviam conquistado o público, e o filme “O cantor de Jazz“ fazia enorme sucesso nas bilheterias, salvando os irmãos Warner da falência.

 

Os demais estúdios não queriam e nem podiam ficar para trás. Desse modo, todos se apressaram em produzir ou até mesmo adaptar projetos que estavam em andamento para filmes sonoros (ver o filme “Cantando na chuva”). Para que isso fosse possível, muitas adaptações tiveram de ser feitas, mudando completamente a rotina nos estúdios. Todas as categorias foram atingidas, do eletricista ao diretor, todos tiveram de se adaptar para uma nova maneira de fazer cinema. Atores que estavam acostumados a interpretar com a pantomima precisaram aprender a falar para as câmeras. Muitos atores que trabalhavam em Hollywood eram estrangeiros e mal falavam o inglês, e outros eram visualmente muito bem aceitos pelo público, mas tinham péssima voz ou dicção.

 

Músicos que tocavam nas salas de exibição se viram sem emprego fixo em questão de meses.

 

As salas de exibição tiveram de se adaptar, e muitas fizeram empréstimos em grandes bancos, para poderem adquirir os sistemas de reprodução de som. Geralmente os bancos exigiam como garantia de retorno que os exibidores só reproduzissem filmes de produtoras para as quais eles também haviam emprestado dinheiro, o que implicava exclusivamente os grandes estúdios, já que estes lhes davam maiores garantias. Esta jogada afetou de forma drástica os pequenos produtores, que ficaram de fora dos circuitos de exibição, fortalecendo ainda mais o poder dos grandes estúdios.

 

Como neste começo o som era gravado ao vivo, os diretores que estavam acostumados a dar instruções enquanto a cena era rodada tiveram de deixar este hábito de lado e encontrar novas soluções para a direção dos atores. Além disso, todo aparato sonoro era uma grande novidade e todos os membros da equipe precisaram se acostumar com a sua presença nos estúdios.

 

As câmeras nessa época eram muito ruidosas, portanto precisaram ser colocadas em cabines isoladas. A incorporação do som impediu que o cinema se manifestasse como antes. Todos os recursos e movimentos de câmera que haviam sido conquistados nestes 30 anos de história e que faziam do discurso fílmico uma linguagem refinada tiveram de ser ignorados. Sendo assim, o resultado estético dos primeiros filmes sonoros ficou muito aquém dos filmes mudos feitos até então. Muitos cineastas, como Charlie Chaplin, se recusaram a rodar filmes falados e publicaram declarações criticando a chegada do som.

 

Por fim, neste primeiro período do cinema sonoro, a gravação de som ainda era feita em uma única pista e ao mesmo tempo em que a imagem era gravada. Isso encarecia bastante as produções, pois além dos atores não estarem acostumados a falar, havia a orquestra que precisava estar em perfeita sincronia com a sua atuação. As tomadas tinham de ser feitas inúmeras vezes e o gasto com negativos e com tempo de trabalho aumentou consideravelmente. Entretanto, não era possível mais  retroceder, o público só estava interessado nos “Talking pictures“.