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Mário Bortolotto por Marcelo Mirisola

Publicado em: 27/03/2012 |

Já faz dez anos. Reagi com preguiça e desconfiança quando o Reinaldão Moraes me convidou para ir ao teatro: minha experiência dionisíaca se resumia às coxas da Matilde Mastrangi. Uma bosta de peça chamada “Uma Cama Entre Nós” (1983 ou 1984), cujo autor – se não me falha a memória – é Walcyr Carrasco. Depois de todo esse tempo, Moraes me convenceu a ir ao teatro. Disse que a mulher do dramaturgo – que também era diretor e que também atuava na peça – era linda e sabia trechos inteiros do meu livro de estreia, “Fátima Fez os Pés para Mostrar na Choperia”. Foi difícil resistir aos apelos de todas as minhas vaidades de uma só vez.

 

Eu fui e agradeço ao Reinaldo todo dia, depois de dez anos, pelo que vi. Porque não se tratava apenas de teatro, mas da história de um cara chamado Mário Bortolotto. Escrevi um livro confuso sobre isso e reconheço que a mistura de ficção com realidade passou do ponto: devia ter aprendido com o Mário que essas coisas são minúsculas diante da amizade e da integridade das pessoas. De modo que não quero, aqui e agora, entrar no mérito dos vários talentos dele e da qualidade das peças que atua, dirige e escreve.

 

Não quero fazer nenhuma comparação e nenhuma conjectura. Nenhuma aproximação seria o bastante para dizer o que aconteceu, semana passada. Uma tragédia seguida de um milagre. Por isso, acho que não é hora de “cobrar responsabilidades” – nem das autoridades competentes e nem das incompetentes. Todos sabem das transformações ocorridas na Praça Roosevelt nos últimos anos – para o bem e para o mal. A conversa é outra. Num momento desses, em que meu amigo está passando maus bocados no hospital, a Praça é o corpo dele. E o entorno (inclua-se o dever da resistência e a especulação sobre o que virá daqui para frente) é pura redundância.

 

Não quero fazer ficção, nem tampouco me interessa a realidade imediata. Só quero dizer que o Bortolotto sobreviveu aos quatro tiros pelo mesmo motivo que a Bárbara Heliodora jamais vai entender o significado de sua obra. Ele sobreviveu porque é o Mário Bortolotto. Pelo mesmo motivo que me fez assistir a todas as peças dele, no mínimo umas vinte vezes cada uma.

 

Quero dizer que ele sobreviveu aos tiros porque é assim que acontece nos gibis que ele coleciona; ele sobreviveu para rir das piadas dos amigos, pelas noites de blues (das quais não participo), pelos tragos e pela sinuca, e porque ele vem de longe e isso já faz um bom tempo. Ele sobreviveu porque o Muttley e o Frankenstein de suas camisetas são à prova de bala e porque ele reveza esses dois com Milles Davis.

 

Ele sobreviveu porque veio lá do Jardim do Sol e porque já havia sobrevivido à violência e ao amor do pai. Ele sobreviveu aos quatro tiros porque nunca deixou de reagir à própria rotina e isso inclui (quem acompanha o blog dele sabe disso) levar

 

quatro tiros no peito toda madrugada e fazer uma oração antes ou depois de ir dormir e acordar dilacerado. Tanto faz sangrar na Santa Casa de Misericórdia ou na quitinete da Rua Avanhandava. Ele sobreviveu pelo amor de suas mulheres e pelo amor de sua filha, e porque a Fernanda D’Umbra foi mãe, mulher e filha e teve sangue frio e não esperou o resgate chegar. Mais vinte minutos – segundo os médicos – e ele teria morrido.

 

Acrescente-se a reposição de mais quatro litros de sangue tipo A. E, se você puder, leitor, doe sangue.

 

Um milagre é feito de coincidências e, às vezes, de um chiqueirinho de uma viatura policial, que chega na hora certa e é simples de entender. Ele devia estar ouvindo “La Carne” no seu mp3, quando virou pro filho da puta e disse “atira”, e depois disse outra vez, “atira, filho da puta”, e o filho da puta descarregou a pistola. O dramaturgo sobreviveu porque a luz que incide na poeira é exata e os seus diálogos são certeiros (quem viu as peças dele sabe o que estou falando).

 

Ele sobreviveu porque nunca precisou mais do que um sofá velho, três amigos e meia dúzia de latinhas de cerveja quente para contar suas histórias. “Vai lá garoto, vai fazer o que tem de ser feito” e também porque é um cavalheiro e porque é impossível um sujeito ser um cavalheiro se não for um touro também. Sim, um touro que, depois de cinco dias, já corcoveava na UTI, queria saber dos amigos e escrevia seu primeiro bilhete depois do milagre: “Não chora filha, senão eu também vou chorar”, porque um milagre fica bem melhor com um pouco de poesia e outro tanto de prosa.

 

Por isso que ele aguentou o tranco, porque, agora, finalmente, vai escrever o romance que eu e o Bactéria lhe cobramos faz um bom tempo. Ele sobreviveu para poder voltar ao Hotel Marina, no Rio de Janeiro; não aquele que acende, mas o Hotel Marina quando apaga, porque entendeu que é o mar que olha pra gente e não o contrário. Ele sobreviveu porque domina a técnica de seguir na contramão e porque, enquanto levava quatro tiros no peito, ao contrário do que muito filho da puta especulou, não estava brincando de representar.

 

Aliás, quando o cara tem uma 45mm apontada diuturnamente em sua direção, ele não tem alternativa diferente de dizer “atira, filha da puta”, mas ele sobreviveu, também, porque, intuitivamente, sabia que a associação falsa que o jornalista almofadinha iria fazer sobre o assalto ao teatro e a “violência de suas peças” era tão mortífera quanto a 45mm que o atingiu, e ele sobreviveu para mais uma vez desmentir os canalhas, porque ele tinha de repetir que eles eram canalhas e que, embora estivesse pouco se cagando para a mentira deles (inclusive quando o ignoraram durante todos esses anos), ele não estava ali, no bar dos Parlapatões, fazendo teatrinho interativo para a distração de ninguém.

 

Ele sobreviveu porque teve a manha de assimilar golpes desleais até o último disparo e o nome disso é generosidade. Ele sobreviveu porque seu anjo da guarda é casca grossa e, agora, ele quer saber onde é que foram parar seus coturnos. Ele sobreviveu porque, entre muitas e iluminadas parcerias, fez dupla com o Carcarah, esse outro maluco que

 

sabe o que é dar uma voadora na morte. Mário Bortolotto sobreviveu porque a mesma delicadeza que tira a vida de uns traz a vida de volta para outros.

 

E dentro de pouco tempo – como ele mesmo escreveu no último post antes da cagada – ele voltará ao bar, o mesmo Bortolotto de sempre, o Brucutu fundamental. Agora, com uma bala alojada no coração. Os mesmos cabelos grisalhos espetados, os bons e velhos coturnos, ele vai entrar no bar daquele jeitão dele, entre o desconjuntado e o lacônico, alguém vai cumprimentá-lo e ele responderá com um sorriso cansado: “E aí, brother?”, e, então, os seus amigos que ainda não se acostumaram com milagres não vão acreditar quando ele encostar no balcão e pedir mais uma ficha para pôr na porra da jukebox.

 

Em seguida, a Marcinha vai trazer uma garrafa de água mineral, para limpar o sangue que coagulou na serpentina, só para começar a noite. Porque ele está vivo. Porque ele sempre volta. Seja bem vindo, Mário Bortolotto.

 

Observação: Este texto foi escrito por ocasião do assalto ocorrido no Parlapatões. Naquele momento, Mário Bortolotto encontrava-se entre a vida e a morte na UTI.

 

Veja os verbetes de Marcelo Mirisola e Mário Bortolotto na Teatropédia.

 

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