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Lilian Lemmertz por Cleodon Coelho

Publicado em: 11/04/2013 |

*Introdução do livro “Lilian Lemmertz – Sem Rede de Proteção”, da Coleção Aplauso da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (para ler a obra, na íntegra, clique aqui)

Em 1º de junho de 1986, a seleção brasileira fazia sua estreia na Copa do México, em busca do tetracampeonato. O placar foi apertado: 1 x 0 contra a Espanha. No dia 6, diante da Argélia, penamos para festejar outra vitória, novamente com um único gol. Mas copa é copa e, mesmo quando a campanha não é das melhores (a daquele ano é lembrada até hoje pelo pênalti perdido por Zico nas quartas de final, quando acabamos eliminados), o Brasil parece ficar suspenso no ar. Não há outro assunto aqui na pátria de chuteiras.

Só mesmo esse estado de euforia coletiva pode justificar a pouca atenção que a morte de Lilian Lemmertz – craque em outro campo: o das artes – mereceu dos jornais e da TV. Foi em 5 de junho, entre os dois primeiros jogos do time capitaneado pelo técnico Telê Santana, que ela saiu de cena. Cedo demais, aos 48 anos. Os espaços dedicados à notícia não estavam, nem de longe, à altura do valor da atriz para a cultura nacional. Os bons serviços prestados no teatro, no cinema e na TV fizeram de Lilian um dos maiores nomes de sua geração. Como lembra Antônio Abujamra, o homem que a lançou no ofício de representar, ela se jogava sem rede de proteção. E como foram belos os saltos. De Tennessee Williams a William Shakespeare, de Edward Albee a Ivani Ribeiro, de Walter Hugo Khouri a Manoel Carlos. Para a gaúcha, uma boa personagem era o que importava. Laura, Benzinho, Ofélia, Cordélia, Eugênia, Elza, Nancy, Martha, Helena, todas habitaram essa mesma mulher.

Tudo começou em Porto Alegre, meio por acaso, numa parceria inusitada de Abujamra com dona Lila, mãe da atriz. Os anos 1950 já haviam passado da metade quando ela subiu ao palco. E não é que, logo no primeiro trabalho, foi festejada com boas críticas? Continuou no ofício, quase sem querer, mas o teatro acabou lhe dando alegrias e até um casamento. Linneu Dias, que a dirigiu em “A Bilha Quebrada”, apaixonou-se e virou pai de sua única filha, Julia. O casal ficou junto por pouco tempo, mas ele nunca escondeu o amor que sentia por Lilian.

Foi a partir de 1963, já instalada com a família em São Paulo, que a atriz começou a impor seu estilo, em que menos era sempre mais. A sutileza, a economia de gestos, a beleza enigmática, o olhar profundo, os silêncios que diziam tudo… É bem verdade que as massas só puderam provar desse biscoito fino com a chegada dos anos 1980. O currículo de Lilian já era portentoso quando veio o convite para estrelar uma trama das oito, principal produto (até hoje) da TV Globo. Foi a primeira das Helenas de Manoel Carlos. A primeira das heroínas tortuosas que marcam a obra do novelista.

Repetindo o que acontecia em todo o Brasil, a novela “Baila Comigo” era um sucesso de audiência lá em casa. Todas as noites, minha mãe Nicinha, minha tia Deinha e minha irmã Cacá acompanhavam as agruras da protagonista, mãe dos gêmeos Quinzinho e João Vítor, criados separados sem que um soubesse da existência do outro. Eu também ficava de olho na história. Tinha 11 anos e já conhecia muitos atores pelos nomes. No entanto, aquele rosto era uma novidade para mim. Descobri, tempos depois, que não fui o único a pensar dessa forma. Aos 25 anos de carreira, a atriz até desistiu de explicar que, sim, ela tinha um passado de glória.

E na sala de TV daquela casa, lá na Rua Pereira Simões, 655, em Olinda, Pernambuco, aquele garoto nem de longe poderia sonhar que seu caminho, um dia, cruzaria com o da intérprete de Helena. Mas o tempo passou, tornei-me jornalista e, quase três décadas depois do lançamento da novela, recebi de Rubens Ewald Filho a missão de recriar a história de Lilian Lemmertz para a Coleção Aplauso. O nome da atriz já estava na lista. Um personagem à procura de um autor. Reli o e-mail algumas vezes até conseguir processar tamanha responsabilidade. Eu era o autor.

Ao longo de dois anos e meio de trabalho, não estive sozinho. Julia Lemmertz foi uma grande parceira. Por alguma coincidência, meu livro anterior, “Nossa Senhora das Oito” (sobre Janete Clair e feito em parceria com o jornalista Mauro Ferreira), apareceu nas mãos de sua personagem Noêmia, na novela “Celebridade”, num diálogo com Cristiano, vivido por Alexandre Borges, o genro que toda Lilian pediu a Deus.

Em um de nossos primeiros encontros, Julia fez uma listinha de pessoas que conviveram com sua mãe. Belinha Abujamra, Walmor Chagas, Edney Giovenazzi, Juca de Oliveira, Eva Wilma, Irene Ravache, Luís Gustavo, Cláudia Alencar, Ney Latorraca, tanta gente boa que poderia contribuir para reconstruir essa trajetória. E também Tony Ramos, Christiane Torloni, Elizabeth Savalla e Natália do Vale, seus filhos na ficção. Sem esquecer de Lídia Brondi, que esteve ao lado da atriz nas últimas novelas, fosse como nora, sobrinha ou filha. A cada telefonema, a cada encontro, risos e lágrimas se misturavam às lembranças.

Além de me confiar a memória de sua mãe, Julia me entregou uma mala antiga, daquelas de tecido, cheia de recortes. Lilian guardava tudo: matérias, entrevistas, resenhas. Até notícias pouco ligadas ao trabalho, como a do dia em que resolveu ir ao cinema descalça e virou caso de polícia, eram mantidas em meio a elogios de críticos como Sábato Magaldi e Yan Michalski. Nos arquivos do “Vídeo Show”, programa em que trabalhei como roteirista durante oito anos, encontrei duas entrevistas concedidas a Marília Gabriela na época do “TV Mulher”. Através delas, pude observar Lilian Lemmertz para além das personagens. Hoje, tenho a impressão que convivi com ela. A voz, o andar, o olhar, tudo está presente.

À medida que ficavam prontos, os capítulos passavam pelos olhos (e crivo) de meus amigos Josué Nogueira, Leonardo Ferreira e minha comadre Clara Angélica – a primeira biografia que li, sobre Leila Diniz, escrita por Claudia Cavalcanti, era dedicada a ela! –, todos também jornalistas, que formaram uma espécie de controle de qualidade. Luís Francisco Wasilewski, estudioso do teatro brasileiro, também contribuiu bastante para que a história pudesse ser (re) contada da forma mais fiel possível. Julia, quando o leu, sentiu uma saudade danada de sua mãe. E isso me deu a sensação de dever cumprido.