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Lélia Abramo por
Mario Persico

Publicado em: 19/07/2012 |

A Dama que Não Comia Alface

Conheci Lélia Abramo aos pedaços, ou aos pouquinhos. Sempre aqui em Sorocaba. Não, minto. Uma vez, e a primeiríssima, foi no Cultura Artística, em São Paulo. Era uma noite festiva em que o espetáculo “As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant”, com direção do Celso Nunes, completava 1 mil apresentações. Fernanda Montenegro convidou o público para comer um pedaço de bolo com o elenco, no foyer do teatro. Eu, sempre voraz por doces, me coloquei muito perto do bolo e vi num canto mais atrás, e sozinha, a Lélia em pé. Discretamente vestida.

Até que foi vista pela atriz Marcia Real, que fazia parte do espetáculo, e que a pegou pela mão e a trouxe para junto da Fernanda e do restante do elenco. Fiquei com aquela imagem por muito tempo. Uma senhora sozinha e discreta num canto do foyer. Isso foi em meados da década de 80. Alguns anos depois, e já em Sorocaba, torno a reencontrá-la em diversas ocasiões. A primeira delas foi como júri do extinto Festival Tropeiro de Teatro – isso já nos anos 90. Lélia era uma das juradas, e como tal, deu uma palestra à tarde em um dos dias do Festival. Começou a palestra pedindo ajuda a Sebastião Milaré, que também participava do evento. Mas não foi preciso.

Lélia falou sobre sua carreira, sobre a ditadura militar e sua atuação política no sindicato e o preço que pagou por isso. Lélia foi colocada na geladeira da Globo. Esse jejum só foi quebrado, segundo a própria, para uma belíssima participação na minissérie “O Tempo e o Vento”, e mais nada. Um ator, naquele tempo, entrava para gravar e só saía no outro dia. Lélia colocou um fim na festa e pagou por isso. Contava com certa tristeza, mas feliz por ter colocado ordem na casa.

Lembro-me que, numa das noites do Festival, estou eu em meu bar, o Embriagai-vos, espaço que reunia, à época, a classe artística sorocabana, quando, de repente, chega uma comitiva da prefeitura trazendo todo o corpo de jurados do Festival e atores de algumas peças. Sou logo procurado e informado de que o debate havia se estendido muito e o restaurante que iria atendê-los fechou. E eles precisavam de comida. Informei que servia só lanches e porções, e o iluminador Roberto Gill de Camargo, que os conduzia, respirou aliviado. Foi um alívio também para mim. O bar estava praticamente vazio àquela hora e eu mesmo fui tomando os pedidos e explicando  a todos como era o cardápio. Em determinado momento, chego à Lélia. Gill havia me solicitado que trouxesse o pedido dela antes, pois ela estava cansada e queria ir ao hotel assim que comesse. Ela pediu o Casablanca, um sanduíche de frango no pão sírio, que era um dos sucessos da casa. No cardápio, informávamos que alface era um dos ingredientes. Lembro que ela questionou o porquê da alface ali, pois “alface com frango não cai bem”. Expliquei que o alface era apenas um montinho devidamente picado e colocado sobre o pão sírio, cortado em quatro pedaços. Era mais um ponto decorativo, um contraste de cores, do que propriamente para ser comido.

Ela pareceu entender, mas pediu que fosse suprimido assim mesmo. E assim foi feito. E eu, que não gostava muito de alterar os pratos da casa, até porque todos tinham um toque artístico, tive de ceder ao desejo da velha senhora. Ela deixou o bar após comer, e não a vi sair. Apenas notei que não estava mais ali. Era uma turma grande e todos falavam muito alto. Atores, enfim. Mais uma vez ela permaneceu discreta à mesa. Como no dia que a vi no Cultura Artística.

Depois disso, a veria novamente em uma montagem sobre a vida de Rosa de Luxemburgo, da qual acabei fazendo a produção local e vendendo duas sessões para escolas. Lélia fazia uma participação afetiva. Entrava em cena, ficava pouco mais que cinco minutos e saía. Ao final, no agradecimento, lembro que alguém do elenco quis trazê-la à frente, e ela murmurou que aquele lugar era da atriz Dulce Muniz, que protagonizava o espetáculo. Mais uma vez se reservava junto ao coro.

Na sequência, eu a veria em uma entrevista na TV, que também me marcaria fundo. Ela era entrevistada em seu apartamento em São Paulo e, ao final, dizia que ninguém naquele prédio falava com ela, nem ao menos um bom dia, e sentenciava: “Burguesia burra”. Soube, muitos anos depois de sua morte, que ela veio muitas vezes a Sorocaba e se hospedava na casa da atriz Ligia de Paula, atual presidente do Sated (Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões). Foi assim, pelas beiradas ou de passagem, que a conheci. Mas sempre sabendo quem ela era e tendo memória de seus muitos trabalhos, principalmente na TV. Lélia Abramo foi também militante e fundadora do Partido dos Trabalhadores, tendo assinado a ata de fundação com Mário Pedrosa.

Por mais discreta e sóbria que fosse, eu sabia que estava ali, com ela e nela, toda sua história como atriz e líder sindical. Nada de grande diva. Nem nas roupas. A atriz, que foi a primeira Romana de “Eles Não Usam Black Tie”; personagem-título em “Mãe Coragem”, de Brecht; Pozzo em “Esperando Godot”, e tantas outras personagens e textos importantes; a mulher de teatro que foi dirigida por Antunes Filho, Alberto D’Aversa, Antônio Abujamra, José Renato, Walmor Chagas, Maurice Vaneau e Augusto Boal, para citar apenas alguns, sairia de cena, discretamente, em 9 de abril de 2004, aos 93 anos, vítima de uma embolia pulmonar.

Muitos hoje, vítimas da memória ou da falta de uma que preserve nossas tradições, não sabem quem ela foi ou desconhecem sua importância histórica e artística. Burguesia burra!

Veja os verbetes de Lélia Abramo e Mario Persico na Teatropédia.