EN | ES

José Renato por Ernevaz Fregni

Publicado em: 28/03/2012 |

Você só estava indo ao Rio e… Iria resolver assuntos pendentes, participar de reuniões e… De repente… Mudou o itinerário.  Há cerca de 50 minutos, às 23h30, eu o havia deixado na estação do metrô Barra Funda… Seu ônibus sairia às 24h30.  Bem que insisti em levá-lo até o Terminal Rodoviário do Tietê… Você não quis, preocupado com a chuva, com o trânsito caótico de São Paulo daquele 1º de maio, um domingo… Tinha havido jogo, a corrida da Fórmula Indy…   

 

Já em casa, liguei para comentar sobre a morte do Osama Bin Laden… Você não atendeu. Passados uns instantes, o telefone tocou…  Não era você… Era a enfermeira do Hospital  Santana… Pegou meu número no seu celular… Você passou mal no Terminal e… 

 

“Creio que erra quem pensa que os ciclos de experimentação se fecham; se completam. Uma experiência no teatro dificilmente se conclui: no máximo, atinge estágios, patamares. A vida, sim, de repente, se conclui.” (José Renato, no programa da peça “Carlos Gomes – Sangue Selvagem”.)

 

Sim, foi de repente… Mas você parece que sabia – pressentia – alguma coisa… Assim que saímos do Teatro Imprensa, onde acabara de atuar no espetáculo “Doze Homens e uma Sentença”, comentou inconformado: “Como é que fui errar o texto?”. O texto era “O velho queria mais atenção!”, de onde tirei “O velho queria mais tempo?”.  Jantamos na Cantina Luna di Capri e, preocupados com o horário de seu embarque, combinamos as tarefas da semana. Fiquei, inclusive, de contatar alguns atores para a leitura de um texto que adaptei.  As cópias, você já havia providenciado.  Entristeci-me quando, ao passarmos por sua casa para você pegar os projetos que levaria ao Rio, em um  suspiro,  lamentou: “Ah… Se eu tivesse mais uns vinte anos…”, referindo-se aos projetos que pretendia realizar. Você sabia… “O velho queria mais tempo.” 

 

Incansável José Renato… Ainda nos anos cinquenta, em um artigo sobre seus feitos,  mereceu o título “O Incansável José Renato”, adjetivo que o acompanhou por toda a vida.

 

Outro dia, juntamente com o João Ribeiro, separando material do seu acervo, encontramos uma xerox de uma carta que você escreveu, em 1947, ao amigo Nenê.  Da época que você trabalhava como protético, em um laboratório de próteses na Praça da Sé… Rimos ao ler “as dentaduras me impediram de lhe responder antes”… E também quando contou que, sem saber a resposta a uma questão na prova de geografia, escreveu um poema… Pobre professor. Se você pudesse imaginar que também se tornaria um professor… Ou melhor, um mestre. E logo na UniRio, na cadeira de direção teatral, onde ficou dezesseis anos, até se aposentar. Aposentado, continuou ministrando aulas, palestras, sendo jurado de concursos de dramaturgia e de montagens e, principalmente, dirigindo peças… Mais de cem.    

 

Naquela mesma carta, você contava ao Nenê que estava formando um grupo de teatro no Esporte Club Pinheiros, onde militava como jogador de basquete. Foi sua primeira incursão no mundo mágico das artes cênicas.  

 

Sempre se orgulhou de ter se formado na primeira turma da EAD… A ideia de criar o Teatro de Arena surgiu a partir de um livro emprestado pelo professor Décio de Almeida Prado, sobre o Theater in the Round… Você pretendia realizar um teatro despojado que priorizasse o texto, sem qualquer ênfase ao espetacular. Fundou o teatro em 1952 e suas expectativas foram superadas. Aliás, a comemoração dos 50 anos da Fundação do Arena foi um arraso! 

 

E quando nasceu a televisão brasileira? Convidado a participar, juntamente com Graça Melo e Miroel Silveira, vocês praticamente colocaram a TV Record no ar.  Nem imagino como conseguiam fazer, ao vivo, três a quatro programas por dia.

 

“Aí, o Paulo Machado de Carvalho, que era o dono da Record naquela época, me chamou e disse: ‘Olha, eu quero que você continue aqui, gostaria muito, mas você tem que optar: ou o Arena ou a Record’. Porque eu me desdobrava. Pulava de um galho para o outro o tempo todo. Então, eu disse: ‘Muito obrigado, eu prefiro o Arena.’” (José Renato, em entrevista de Rodolfo Lucena, no Blogs, da Folha) 

 

E, assim, você optou por ser um homem de teatro.  Entre outros feitos, foi presidente da SBAT, onde implantou cursos de dramaturgia, ciclos de leitura dramatizada e, em 1998, promoveu, no Rio de Janeiro, um encontro internacional de dramaturgos, que contou com a presença de importantes autores europeus e americanos.

 

“Quando você identifica, corretamente, o motivo que te leva a fazer teatro, como por exemplo, descobrir o infinito mistério de um espetáculo bem realizado, o prazer enorme de sentir um ator fazendo bem a sua personagem, um pensamento sendo transmitido com clareza e sugerindo mil outras conclusões fantásticas no espectador que assiste em silêncio, no escuro, ao teu espetáculo… Que prazer enorme sentir um espetáculo fluir alegre, dominar a plateia, fazer reagir com emoção e felicidade ao que você quis propor. São momentos fantásticos em que tua responsabilidade terá sido diluída ao longo do exercício do prazer de dirigir.” (José Renato)

 

Eu o admirava muito, meu amigo.  Primeiro, aprendi a admirá-lo como professor, quando estudei direção no Projeto Ação Cultural, da Secretaria do Estado da Cultura, do qual participei por dois anos; depois, como diretor, quando tive o privilégio de acompanhar seus trabalhos nestes dez anos que convivemos no grupo Casa da Comédia, sediado no Teatro dos Arcos, que você fundou e onde dirigiu, inclusive, duas peças minhas, “Aroma do Tempo” e “Carlos Gomes – Sangue Selvagem”.  Aprendi a admirar sua retidão de caráter, sua generosidade com seus pares, amigos e familiares, sua humildade, sua preocupação com os rumos do teatro no Brasil e, principalmente, com os problemas brasileiros.  

 

“O que o teatro me deu? Eu acho que me deu conhecimento de mim mesmo. Acho que, principalmente, me deu a percepção da vida. Eu, pelo menos, acho que sei onde é que está a verdade das coisas que me dizem. Eu não acredito em tudo o que me dizem. Eu sei perceber onde está a verdade. Não ser aquela que me é oferecida quase sempre.

E, é isso, eu espero um amadurecimento nas relações humanas, uma possibilidade de ser generoso e receber generosidade; isso tudo eu aprendi no teatro. Eu sou feliz com as coisas que eu tenho, apesar de não ter muita coisa.” (José Renato, em entrevista de Rodolfo Lucena, no Blogs, da Folha)

 

Demorei em entender porque, às vezes, você não respondia de pronto. Hoje, compreendo que era por respeito. Você guardava o espaço do silêncio para ponderar. Ponderar antes de responder. Você sabia ouvir. Nunca se mostrou o dono da verdade, mesmo com toda sua experiência e sabedoria.    

 

“A primeira lição que pode indicar que alguém está alcançando um bom patamar criativo, é quando ele assume a consciência que não é dono da verdade, mas sim que tem uma enorme responsabilidade: encontrar essa coisa: a verdade! E quanto já se escreveu sobre a verdade! Tratados e tratados de filosofia, de metafísica, de mistificação e muitas peças de teatro. Vejam Pirandello! Suas peças expressam a sua preocupação e obsessão: a verdade! Qual é a verdade? Seus personagens se debatem infindavelmente na tentativa de defender a verdade… A verdade de cada um deles! Portanto, esse tênue equilíbrio, esse fio da navalha da procura da verdade, de uma verdade… É o primeiro passo! E essa mistura, responsabilidade, verdade… Vai fazer aparecer outro substantivo com final de ‘dade’. A  integridade!”  (José Renato)

 

A você, meu amigo íntegro, gentil e verdadeiro, agradeço do fundo do coração o  privilégio de ter compartilhado sua amizade, seu carinho e sua confiança. Até breve. 

 

 

Veja o verbete de Ernevaz Fregni e José Renato na Teatropédia.

 

Para ver os outros depoimentos que compõem a semana em homenagem ao Dia Mundial do Teatro, clique aqui.