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José Celso Martinez Corrêa por Celso Sim

Publicado em: 27/03/2012 |

Zé Celso, excelso, inventou o Windows, entre tantas criações.

 

A versão tragicomediaorgia brasileira de “As Bacantes”, Eurípedes, em 1995:

 

Recebi um texto que, hoje, sei, já era uma janela de computador em papel. Cada página tinha, no mínimo, três janelas com texto, imagens, música e, às vezes, outras indicações de cheiro, luz, som ambiente, figurinos, comida, bebida. Foi Zé Celso quem inventou o Windows. Junto ao texto, recibi três fitas cassetes com as canções da ópera de carnaval, na versão tropical e brasileira: Zé Celso.

 

Li e ouvi uma vez, estranhei; duas, estranhei mais um pouco; três, estranhei total. Pensei que todos haviam enlouquecido. Aquela janela de papel, com texto e músicas, era indecifrável. Não aceitei o convite para fazer parte da montagem, infelizmente. Na estreia de “As Bacantes”, novo impacto profundo de um tsunami teatral. O que havia visto em “Hamlet”, e vivido em “Mistérios Gozosos”, de Oswald de Andrade, agora, explodia em carnaval atômico. A tragédia da mãe que dilacera seu próprio filho aconteceu como mergulho absoluto em tropicalismo, tudo ao mesmo tempo e, agora, na ágora do Brasil. Na estreia de “As Bacantes”, comovido, pedi para comungar o rito com o tyaso da Uzyna Uzona e, como uma mulher que sabe de si, comunguei.

 

As janelas abertas que Zé Celso desenha são os convites mais iridescentes para um artista sem paredes, para alguém sem medo do abismo do auto-desconhecimento, que é o mais profundo ritual de individuação e de estraçalhamento do ego em criação coletiva, Te-ato.

 

O jovem Nietzsche escreveu, em “Nascimento da Tragédia”, que Eurípides suicidou a arte trágica, desidratando-a e eliminando desta arte tanto o apolíneo quanto o dionisíaco. Se assim for, Zé Celso ressuscitou, consertou e concertou a tragédia em tragicomediorgia, adicionando e multiplicando novos mitos, heróis e toda a potência da música brasileira, dilarerando os limites do otimismo da lógica: Nietzsche estava equivocado? Não. Nietzsche nada sabia sobre a nova civilização brasileira, apesar de saber que a música é a ideia imediata da vida eterna. Como Hélio Oiticica, Zé Celso canta: tudo o que faço é música!

 

Zé Celso é um enigma como um acarajé, é uma criança descobrindo o corpo, o corpo sem orgãos da vida cênica e da fé elétrica e os limites da liberdade que, para ele, é sem limites. É um mestre sem discípulo, prenhe de primavera e de humano demasiado humanos, é o samba suportando uma paixão.

 

Mais além desta declaração de amor, é imprescindível reconhecer Zé como construtor de teatros; ele nos deu de presente três teatros na Rua Jaceguay, este que lá está, de Lina Bo Bardi, o que foi construído sobre o segundo teatro, de Flávio Império. Como uma boneca russa que, dentro de si, recolhe outras bonecas, Zé desenha um sonho, a transformação

 

de um quarteirão no bairro do Bixiga em um complexo arquitetônico de arte e educação, ação de urbanismo humanista.

 

Só um Apolo (vestido de espaço = nu, como Dioniso) é sagaz ao ponto de imaginar, durante tantos anos de luta, e vencer contra os desígnios da força da grana, varando como um pau duro toda a adversidade, e oferecer à esta cidade de São Paulo, sede do modernismo, da antropofagia e do tropicalismo, uma universidade nova: uma oficina de florestas de arte no meio da selva da cidade. Zé Celso é muito mais do que o grande diretor de teatro, dramaturgo e ator, é um urbanista, eterno como uma pletora renascentista.

 

Este cara ressuscita-me desde antes de começar a trabalhar no Teatro Oficina, em 1994, e, depois, como um farol assum preto cego ilumina meu canto e dirige meu trabalho que está aterrado na Rua Jaceguay, 520, fazendo e cantando música popular, cinema, teatro e outras reinações.

 

Zé Celso me cantou: não é mais preciso mover montanhas, é necessário comover montanhas!

 

 

Veja os verbetes de Celso Sim e José Celso Martinez Corrêa na Teatropédia.

 

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