Como a gente já contou por aqui, a Cia. de Teatro Balagan ocupa, desde a primeira semana de outubro, o 1º andar da Sede Roosevelt da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, com a mostra “Recusa e Prometheus: Uma Simetria Invertida”. A programação conta com a apresentação de dois espetáculos, além de outras atividades, como a exibição de filmes e a realização de encontros e shows.
Um dos espetáculos é “Recusa”, dirigido pela pesquisadora e pedagoga Maria Thais, que já foi consultora pedagógica da SP Escola de Teatro, a peça tem o texto assinado por Luís Alberto de Abreu. Nesta semana, a montagem conquistou o Prêmio da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), na categoria Melhor Ator. Os atores Eduardo Okamoto e Antonio Salvador, que trabalham no espetáculo, empataram e deverão receber o troféu juntos, em cerimônia prevista para março de 2013.
Na trama, que se passa em 2008, dois índios da tribo Piripkura – que até então era dada como extinta – aparecem perto de uma fazenda em Rondônia, virando notícia em todo o País.
A seguir, Joaquim Gama, coordenador pedagógico da SP Escola de Teatro, fala sobre a montagem:
“Recusa”: Não É Uma Questão de Cocar de Pena, Urucum e Arco e Flecha
[…] índio não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco e flecha, algo de aparente e evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma questão de “estado de espírito”. Um modo de ser e não um modo de aparecer. Na verdade, algo mais (ou menos) que um modo de ser: a indianidade designava para nós um certo modo de devir, algo essencialmente invisível mas nem por isso menos eficaz: um movimento infinitesimal incessante de diferenciação, não um estado massivo de “diferença” anteriorizada e estabilizada, isto é, uma identidade.
Eduardo Viveiros de Castro
Parafraseando Eduardo Viveiros de Castro, o espetáculo “Recusa” está para além da estereotipia visual, na qual o universo ameríndio é reduzido ao cocar de pena, urucum, ou arco e flecha. Ao contrário, somos conduzidos a penetrar no espírito da indianidade, por meio de dispositivos cênicos que, segundo a encenadora do espetáculo, Maria Thais, não busca substituir o discurso dos índios, nem tampouco ser a voz deles. O grupo tem a plena consciência de que são artistas falando das suas perspectivas sobre a cultura ameríndia. Assim, fundada na capacidade que os seres pensantes têm, a encenação potencializa a imaginação dramática dos espectadores, colocando-os diante de um universo múltiplo de sentidos, de estranhamentos, de deslocamentos entre o humano e não-humano, entre o mundo dito dos brancos e dos índios, entrelaçando olhares sobre o material de pesquisa escolhido pela Companhia.
Trata-se de uma encenação contemporânea, sem os ranços da contemporaneidade. Ou seja, o trabalho dos artistas não está ancorado no experimentalismo formal, no qual o teatro torna-se o espaço da inventividade, do hermetismo cênico que pouco contribui para a própria natureza do encontro com o público. Dessa maneira, encontramos nos atores, Antonio Salvador e Eduardo Okamoto, capacidades impares de atuação sem que elas sejam apenas demonstrações de virtuosismos artísticos. Seus corpos estão amalgamados ao texto cênico do espetáculo, criando composições narrativas e sonoras, que possibilitam ao público viver uma experiência. Em face disso, com certeza, após o espetáculo, o espectador terá dificuldades em contar uma história com começo, meio e fim. Provavelmente, só conseguirá relatar a experiência vivida durante a apresentação. E é aí que reside o sentido de contemporâneo na proposta cênica de Maria Thais.
Dentro dessas perspectivas, vale destacar o trabalho de dois artistas: a dramaturgia de Luís Alberto de Abreu e a direção musical de Marlui Miranda. Esses artistas, juntos, criam um universo sonoro e poético de qualidades poucas vezes vistas em cena. A forma como o discurso é construído e os cânticos entoados permitem que os espíritos dos animais e de outros seres sejam fisicalizados pelos corpos dos atores. Somam-se à materialidade da cena a Cenografia e Figurino de Márcio Medina e a Iluminação de Davi de Brito. As proposições desses artistas contribuem para a plasticidade da cena, redimensionando a sala retangular de espetáculo em espaços diversos, que vão da ideia de infinito à restrição que os índios estão sujeitos. Em outros momentos, criam uma materialidade cênica que nos permite identificar a peculiaridade do universo indígena, com suas elaborações estéticas imbricadas com as suas formas de representar e pensar a existência.
“Recusa” é um espetáculo no qual o rigor da artesania do artista ganha dimensões e qualidades grandiosas. É uma peça que permite repensar o sentido da convivência, da diferença, da identidade e da própria existência da arte teatral. “Recusa” é uma encenação, mas também de uma experiência fundada no devir, algo que fala e toca profundamente o “estado de espírito”.
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