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Experiência Bom Retiro 958 Metros

Publicado em: 21/03/2013 |

Por Joaquim Gama*, especial para o portal da SP Escola de Teatro

Atrás dele aborda o passado, esparramando pedregulho sobre asas e ombros, com um barulho como de tambores enterrados, enquanto diante dele o futuro está represado, afunda os olhos, dinamita os glóbulos como uma estrela, torce a palavra como uma mordaça, asfixia com sua respiração. Durante algum tempo ainda se vê o bater de asas, se ouve o ronco das pedreiras caindo sobre atrás dele, tanto mais alto quanto o movimento fica isolado ao tornar-se lento. Então aquele momento fecha-se sobre ele; sobre o lugar rapidamente entulhado o anjo infeliz encontra a paz, esperando pela história na petrificação do voo olhar respiração, até que um renovado rufar de poderoso bater de asas se propague em ondas através da pedra e anuncie o seu voo.

Heiner Muller (1975)

A incursão pelas ruas do Bom Retiro torna-se uma experiência poética e teatral com as propostas cênicas do Teatro da Vertigem.  Uma experiência pautada nos próprios materiais que coexistem no indivíduo urbano, morador de São Paulo e, provavelmente, de muitas outras cidades do mundo ditas civilizadas, modernas e potentes economicamente, tais como: assimetrias sociais, consumo, histórias petrificadas, incomunicabilidade, medos, memória, solidão e xenofobia.   Esses materiais se fundem e se chocam, para dialeticamente construírem as cenas que compõem a encenação.

A encenação ocupa edifícios e ruas do bairro por intermédio de uma série de aparatos tecnológicos que são meticulosamente estruturados e operados diante do público. Esses aparatos potencializam a plasticidade estética e poética dos espaços cênicos. Espaços que ganham formas sonoras, imagéticas e definições precisas com a luz.  Em face disso, tecnologia, artesania e arte ganham outros contornos e sentidos no processo de teatralização.

Luz, som e imagem dão forma aos espaços e, ao mesmo tempo, constituem a dramaturgia da cena.  Dessa maneira, as cenas ganham vigor imagético, colocando em xeque a tradicional hegemonia da palavra no teatro.  A experiência visual proposta ao espectador traz em si uma poética própria, com conteúdos capazes de promoverem reflexões e que prescindem das formulações de um texto dramatúrgico somente estruturado em bases tradicionais, envolvendo personagens e diálogos.

A experiência “Bom Retiro 958 Metros” nos coloca diante e no centro da cidade, revelando-nos anjos e infelizes. Parafraseando o texto poético de Heiner Müller, a vertigem cênica proposta pelo grupo dinamita nossos olhos, faz tocar os tambores do passado para que possamos tomar ciência da petrificação do futuro, asfixia-nos, fazem as pedras caírem, trazem-nos a certeza de que resta apenas a respiração e a possibilidade de um novo rufar de asas para outro voo.    

*Joaquim Gama é coordenador pedagógico da  SP Escola de Teatro