Tive longos anos de convivência diária com Alberto Guzik na editoria de Variedades do Jornal da Tarde, onde ele atuava como crítico de teatro, além de fazer perfis, entrevistas e reportagens. Eu trabalhava como chefe de reportagem e depois como editor do Caderno 2 do jornal O Estado de S. Paulo. As duas editorias ficaram anos uma ao lado da outra nos tempos da chamada “sinergia” entre as redações do Estadão, Jornal da Tarde e Agência Estado.
O jornalismo é uma maravilhosa escola de vida, mas há muitos efeitos colaterais que costumam fustigar cruelmente quem tem uma pureza artística a ofertar ao mundo. Em primeiro lugar, a razão cínica, o maior de todos os males, fruto da banalização, por vezes inevitável, até mesmo como instinto de autodefesa, das desgraças e falcatruas do Brasil e do resto do mundo na sofreguidão cotidiana de se produzir edições em ritmo industrial. Nesse contexto, em que quase todas as outras editorias são tratadas com uma deferência e uma importância de “hard news”, o jornalismo cultural tende a ser jogado para escanteio, até mesmo tratado como atividade fútil de “pederastas”. Trabalhei vários anos na Sucursal Rio da Agência Estado e, quando vim para São Paulo trabalhar no Caderno 2, logo fui informado de que o apelido da editoria de Variedades do Jornal da Tarde era “A Gaiola das Loucas”.
Nos mais de 20 anos em que atuei no “jornalismo cultural”, sempre procurei dignificar a alta cultura, mesclando-a um pouco com a cultura de massa, até mesmo para não ser demitido por ignorar grande parte do lixo que a indústria cultural praticamente nos obriga a focalizar na cobertura diária das redações. Ao entrar na redação do Caderno 2 para mais uma edição, lembrava de Euclides da Cunha, Décio de Almeida Prato, Paulo Emílio Salles Gomes e de Sábato Magaldi, só para citar alguns exemplos que escreveram para o Estadão, e procurava a cada dia fortalecer a minha convicção em dignificar a Arte, de maneira geral, no jornalismo cultural. O luminoso semblante de Alberto Guzik na redação do Jornal da tarde era um alento cotidiano, um cúmplice tácito que estimulava a minha luta, também um companheiro com o qual desabafava de quando em quando sobre as agruras diárias que era obrigado a enfrentar nesse território de idealismo e impotência, romantismo e razão cínica que é o jornalismo.
Guardo de Alberto Guzik a coragem e o despudor em se lançar sem rede de proteção no cenário artístico brasileiro como escritor, dramaturgo, ator e encenador. Essa garra também me estimulou a seguir a minha verdadeira vocação depois de mais de duas décadas no jornalismo: fazer filmes e escrever peças de teatro. Ao documentar a trajetória do grupo Satyros, voltei a ter uma convivência mais freqüente com Guzik, assistindo a peças em que ele trabalhou como ator, filmando-o em algumas encenações e até mesmo fazendo uma entrevista histórica com ele para a última parte de uma trilogia de documentários que estou fazendo sobre essa companhia tão importante para mim e que deu novos rumos à Praça Roosevelt, local que liderou durante muitos anos o ranking de violência na Grande São Paulo. Guzik e os Satyros de algum modo, ou de todos os modos, me contaminaram com o máxima punk: “Do it yourself!”. Eles me ensinaram que um artista não pode ter medo do abismo. Eles me ensinaram a ter coragem e, sobretudo, despudor em tentar, tentar sempre, fazer independentemente dos resultados, mas sempre em busca de processos, novos processos artísticos, e só assim conseguimos crescer como criadores.