EN | ES

Em mim, como cantiga doce

Publicado em: 15/10/2013 |

por Marici Salomão, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

 

Lutar para trabalhar no que amamos

 

Sou absolutamente a favor de que lutemos (IMENSA e INTENSAMENTE) para trabalhar no que amamos. O tento (num mundo que parece se divertir em nos arrastar para decisões erradas) pode ser uma das maiores benesses que um ser humano, inserido na sociedade do capital tenebroso, pode conquistar. Mesmo que pareça impossível, não se deve desistir. O sistema foi contra mim, minha insegurança e também meus muitos delírios juvenis foram contra mim, meu pai em determinado momento foi contra mim (ele tinha razão, porque era pai e queria que eu trabalhasse na profissão em que estava me formando, Jornalismo). Mas eu fui indo, indo, não sabia muito bem se estava certa ou não, mas FUI INDO, sem me transformar numa insana, sem atropelar ninguém, mal imaginando qual seria de fato o futuro, mas FUI INDO.

 

Por anos achei que seria médica (talvez dos delírios com profissões, esse tenha sido o mais persistente). Felizmente, só “achei que” – até entrar num curso de instrumentação cirúrgica, aos 19 anos, imaginando que esse curso poderia apontar afinidades com o ambiente médico. No primeiro dia de curso, eu que já estava no segundo ano de Jornalismo da PUC-Campinas (também não sei explicar muito bem porque escolhi àquela época o Jornalismo), ouvi da professora: “Menina, o que você está fazendo aqui?” Eu não sabia. Rimos a classe toda. A maioria dos participantes já tinha como carreira a Enfermagem. Eu, o Jornalismo. Se eu tivesse bem respondido à pergunta dela, diria: “Eu acho que gosto da coisa, porque admiro um tio meu, que é médico bem-sucedido, e acho que instrumentação cirúrgica é uma maneira de provar se gosto ou não”. Fui para o estágio e realizei 11 cirurgias, de um total necessário de 20. 

 

Nunca obtive o diploma. Desisti na 11ª., e me lembro vivamente do mal estar que senti em participar de uma operação de varizes. Foi a gota d’água. Estava num ambiente que não tinha nada a ver comigo. Céus, o que eu estava fazendo lá, manipulando instrumentos que não eram extensão das minhas mãos? Vivenciando uma responsabilidade incondicional, que é lidar literalmente com o corpo do outro? Sentindo-me uma incompetente ao lado de um médico renomado, que me adotou como estagiária? O medo e o desprazer haviam atingido um limiar insuportável. Eu estava fora de lugar.

 

Terminei Jornalismo e trabalhei durante anos em várias funções: repórter de TV, repórter de jornal, subeditora, assessora de imprensa, assessora de um secretário de Cultura (Célio Turino), assessora em uma reitoria (UNESP) etc. Nessa época, anos 80 para os 90, senti que estava chegando perto de algo que me agradava muito mais: entrevistar gente de teatro, assistir a espetáculos, fazer parte do ambiente cultural. Posso dizer que só fui me encontrar de fato no jornalismo quando o querido Evaldo Mocarzel me convidou a freelar no Caderno 2, do Estadão. Trabalhar na seara do teatro era TUDO o que eu amava. Não havia dúvida que eu amava escrever sobre teatro. Ainda não sabia de fato que era ainda melhor escrever PARA teatro. Na sequência, comecei a produzir MATÉRIAS e CRÍTICAS para a revista Bravo!. Foram felizes anos de vida, aquela década de 90 e o início dos 2000. 

 

**

 

A palavra DRAMATURGIA soa em meus ouvidos como cantiga doce, é como se fosse uma velha amiga. Desde muito jovem ler peças de teatro era alto deleite: MARTINS PENA, SHAKESPEARE, MOLIÈRE, RACINE, JORGE ANDRADE… Na verdade, a leitura era um gozo e tanto na minha vida. Ler um excelente livro me reconectava com a ideia de integridade. Completude. Portanto, a Dramaturgia entrou quase que naturalmente na minha vida: aos 20 e poucos anos, participando de um grupo amador de teatro em Campinas, ouvi de um colega, que havia acabado de sair do CPT, do Antunes: você escreve muito bem. Por que não faz uma oficina com Luís Alberto de Abreu, que acaba de sair de lá e vai dar uma na OSWALD DE ANDRADE. No dia seguinte, já estava na Oswald de Andrade, buscando informações sobre as oficinas oferecidas (naquela época, ainda não havia Internet). 

 

Fui aceita no curso. Seis meses de duração. No primeiro dia de aula, meu corpo, sentimentos, minha mente foram varridos por uma EMOÇÃO GENUÍNA: Abreu começava pelos pré-socráticos e colocava tanto empenho e tanta sensibilidade no que falava que senti que aquele seria meu LAR ETERNO – a DRAMATURGIA; por extensão, o TEATRO. Anos depois, tínhamos o nosso NÚCLEO DOS DEZ, liderado por Luís Alberto, e na sequência fui para o CENTRO DE PESQUISA TEATRAL (CPT), de Antunes, onde fiquei por cerca de seis anos. Escrevi peças, que foram montadas por nomes de respeito, como FERNANDO PEIXOTO, HELIO CICERO e CELSO FRATESCHI, entre outros. Penso hoje que Mestre Abreu foi a “senha” que eu precisava para viver para sempre na minha maior CERTEZA: que meu caminho era a Dramaturgia – escrevendo, estudando as engrenagens do texto (quanto áreas correlatas), dedicando-me à formação de novos dramaturgos. 

 

Sinto que percorro/cumpro o meu DASEIN e que nada devo a mim mesma nas minhas escolhas do presente. Coordenar o NÚCLEO DE DRAMATURGIA SESI-BRITISH COUNCIL e o curso de DRAMATURGIA da SP ESCOLA DE TEATRO é função que me preenche, dá um prazer incrível. E conhecer autores, aprendizes, formadores, coordenadores e artistas – como quem conheço e com quem posso compartilhar dos mesmos deleites – é pura água da fonte, para quem passou alguns anos da vida com uma sede muito grande de certezas. Não devo nada a mim mesma. 

 

Minto. Sinto que estava vendo o ato de escrever a uma distância que não me agrada muito. Com medo e coragem, a um só tempo, voltei a abrir um pequeno tempo a cada dia só para mim, o que significa: voltar a anotar ideias, imagens, esboços de diálogos, sensações da forma, a ler e escrever. Confesso que o ato de escrever sempre me trouxe medo, porque a escrita, se for de verdade, se faz misto de exposição íntima com invenção. A mim é assim. Mas como disse em outra coluna, o medo me IMPULSIONA, porque amo o que faço. Do contrário, o medo talvez me fizesse desistir – como me fez da instrumentação cirúrgica.

 

*A coluna de Marici Salomão é publicada mensalmente. Clique aqui para ler outras colunas