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É preciso emburrecer…

Publicado em: 29/01/2015 |

* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

1- Não há calor nem engano numa tela de computador. A máquina não tem alma. Eis por que a tecnologia é de uma objetividade desumana. O digital é mais perfeito (e mais moderno) que o analógico. Isso não quer dizer que seja melhor. A propósito, há quem prefira VINIL a CD.

 

Alguns músicos garantem que a antiga bolacha conserva imperfeições fundamentais. Imperfeições fundamentais. Imperfeições fundamentais. Imperfeições fundamentais. Imperfeições fundamentais. Imperfeições fundamentais. Imperfeições fundamentais…

 

Talvez isto queira dizer que entre perfeito e sublime há distância!

 

Meu olhar é bovino: sou incapaz de pensar diante da tela do computador. Preciso sempre escrever à mão e, depois do texto pronto, transcrever no word – passando assim os pensamentos pra dentro da máquina. Também não consigo, se o texto tem mais de três páginas, ler direto na tela do monitor. Tenho de ler no papel, como antigamente – coisa não muito sustentável hoje em dia…

 

2- Karel Čapek, como se sabe, foi quem criou a palavra Robô (“ROBOT”) – que aparece em sua peça de teatro “R.U.R.”, de 1921. Irônico que esse nome tenha surgido primeiro num texto dramatúrgico que, como tudo na arte, é tão longe da perfeição dos relógios suíços! Pois os erros, equívocos e desencaixes são ingredientes por excelência dos processos criativos. O teatro é um relógio que atrasa e nenhum relojoeiro do mundo felizmente conseguiu ajustá-lo!

 

A frase de Beckett reafirma sempre a sua sabedoria: “Tentar de novo. Falhar de novo. Falhar melhor”. Apoiado aí, o teatro poderia ser definido como uma oficina de errância. Ou um quintal onde o erro vem baixar! Pois improvisar não é abrir-se ao erro?

 

3- Em consonância com essa máxima, de que a verdade reside no desvio, está o ato falho, de Freud: é ele que torna humano o sujeito contemporâneo, hoje mais do que em qualquer época.

 

Os atos falhos são tropeços da língua, fonte de surpresa: nossas derrapagens revelam desejos ocultos.

 

Os momentos iluminados nos processos de uma psicanálise  e também nas artes  se dão quando, por distração, assistimos à eclosão de um “sem querer”, instante em que o touro liquida o toureiro. Pobre toureiro, tocado pelo engano num segundo fatal. Acasos, acasos, acasos.

 

4- O engano é o mais humano traço de vida. Ele revela o viés de cada um: o modo como cada um deforma o universo e o reconstrói. Impressão digital. Singularidades. Singularidades. Singularidades. Singularidades. Singularidades. Singularidades. Singularidades. Singularidades. Singularidades…

 

São justamente as distorções singulares que formam a matéria-prima do teatro. É este desvio que deve ser posto em cena. A matéria orgânica desviante é processada no estômago, que é o campo das artes, de maneira a ganhar forma e nome, e ser, assim, legitimada.

 

5- Um desvio! Na psicose, note-se, os delírios e as alucinações são mais-que-perfeitos e de uma nitidez atordoante – por isso veiculam uma realidade não distorcida, por assim dizer: realidade sem ambiguidades. O real traduzido em estado bruto.

 

De fato, o “erro” do psicótico é o fato dele levar tudo ao pé da letra. Ele não se submete à “nossa” gramática. Nós, castrados que, nalgum dia mítico, implicitamente combinamos de falsear um pouco todas as coisas, coletivamente, numa espécie de devising primevo.

 

O psicótico não foi cooptado por esse coletivo. A metáfora, na psicose, é tomada sempre em seu sentido literal. Como se o louco sofresse por uma falta de erro! Ou por uma defasagem de ritmo… Defasagem de ritmo. Defasagem de ritmo. Defasagem de ritmo. Defasagem de ritmo.

 

O jazzista Dave Brubeck (1920 – 2012) traduz essa questão do acerto e do erro na sua famosa composição “Take Five”. Ele acrescenta na música um tempo ali na batida (o cinco!), de maneira que escutamos um som muito próximo do aleatório, sem nunca desandar no caos. Mas isto, claro, é ilusório: dá uma impressão de quase-erro no acerto, façanha genial.

 

6- Nos processos criativos, é preciso ter cautela com o excesso de inteligência: o resultado bem-sucedido é consequência necessária de um descontrole. O sucesso ocorre (repetindo) sem querer! (na clínica, igualmente, a esperteza do analista parece ser nefasta ao tratamento…).

 

A criação de valor é (quase) involuntária – condição de autonomia da obra. Quando a inteligência adormece, o campo fica livre para que, com sorte, algo de inquietante seja produzido. A arte não admite ser usada para demonstrar uma tese, nem coisa nenhuma. Embora sempre responda ao seu tempo, ela (a arte) se situa longe de um receituário pedagógico, da militância política, das prescrições datadas…

 

Ao contrário: para criar, é preciso – e é urgente – distrair-se, enganar-se e emburrecer! Ser liquidado pelo touro. Tombar. Desaprender! Desvestir-se. Ignorantar-se!

 

7- O Teatro é milenar; a Psicanálise, uma ciência recente. Os dois campos, entretanto, se aproximam num ponto vital: ajudam a melhor adoecer. São generosos! Facilitam a que aquelas pessoas muito encontradas se percam melhor.

 

8- Nesse ponto, eu me pergunto: poderíamos considerar como atos falhos os erros de digitação que cometemos diariamente no computador? O erro na máquina (ou da máquina) revela também alguma coisa?

 

Em tempo: neste artigo, em certos trechos, a repetição não é erro de digitação! a repetição não é erro de digitação! a repetição não é erro de digitação! a repetição não é erro de digitação! a repetição não é erro de digitação!

 

Feliz 2015. Que seja um ano abundante de acasos e de enganos benignos…