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Denise Del Vecchio por Tuna Dwek

Publicado em: 18/10/2012 |

Vencedora dos Prêmios Molière (por “Lua de Cetim”) e Governador do Estado(por “Lembranças da China”), Denise Del Vecchio tem uma carreira das mais consistentes em teatro, cinema e televisão. Participou, sempre com brilhantismo, de espetáculos como “Feliz Ano Velho”, “Electra”, “Florbela”, “O País dos Elefantes”, e de novelas e minisséries da Rede Globo(“JK”, “Chocolate com Pimenta”, “Força de um Desejo”, “Fera Radical”, “Anos Rebeldes”), TV Tupi (“Ídolo de Pano”) e Rede Record (“Amor e Intrigas”, “Bicho do Mato”). No cinema, esteve em “Lavoura Arcaica” e “Doramundo”.

Paulistana, Denise despertou para o teatro aos 15 anos, ao assistir Cacilda Becker no palco. Participou do grupo do Teatro de Arena, com Augusto Boal, e do Teatro Núcleo Independente. Sua parceria com Alcides Nogueira rendeu-lhe alguns dos maiores êxitos. Durante uma representação de “A Queda da Bastilha”, chegou a ser presa pela ditadura. Sua vida intensa e repleta de desafios é relatada com humor e sensibilidade pela atriz e escritora Tuna Dwek, no livro “Denise Del Vecchio – Memórias da Lua”, da Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (para ler a obra, na íntegra, clique aqui).

A seguir, a introdução do livro, assinada por Tuna Dwek

“Cai o pano. Corre o ator ao camarim despir-se de sua maquiagem e ainda povoado das emoções vivenciadas pelo personagem, vai encontrando sua unidade. Entre a cortina que se abre e os aplausos finais da plateia, vidas se cruzam, amores, embates, encontros e conflitos tomam corpo. Os refletores que aquecem a imaginação trazem aos nossos olhos fragmentos de nós mesmos e de nossas existências cotidianas.

O que chamamos de momento ideal é certamente aquele em que se diluem todos os percalços, tornando possível a realização de um desejo. Muitas vezes, este livro nos pareceu como que encantado, tamanhos os adiamentos e mudanças de planos aos quais ele se teve que submeter. Assim, tivemos que esperar, Denise Del Vecchio e eu, alguns meses desde nosso primeiro contato, para iniciarmos nossos encontros e vermos materializadas as condições mais favoráveis para o balanço de vida gerado pela proposta da Coleção Aplauso.

Atrizes que somos, estávamos continuamente às voltas com o trabalho. Desta vez, faríamos parte da mesma obra, a minissérie ‘JK’, de Maria Adelaide Amaral e Alcides Nogueira, para a Rede Globo de Televisão, gravada no Rio de Janeiro.

Enquanto eu gravava minha participação no Rio, Denise decorava suas falas em São Paulo e dedicava-se a profundas pesquisas sobre a adorável Naná, irmã do presidente Juscelino Kubitschek, sua personagem na terceira fase da minissérie.

Tão logo terminara minhas gravações, ela começava as dela e nosso ritmo de trabalho nos impossibilitaria iniciar o mergulho biográfico. Deixamos seguir o fluxo da vida, única solução possível para que se descortinasse o espaço necessário à realização do livro. Pouco a pouco, conseguimos organizar nossas agendas e nos dedicar apaixonadamente à feitura da obra. O processo de gestação vem acompanhado de saborosas coincidências talvez porque nos sentíamos aguçadamente receptivas a tudo o que o acaso nos pudesse proporcionar. Num de nossos encontros, Denise contou sua história artística com o ator e diretor Carlos Zara, saudoso colega de trabalho e amigo. Naquela noite, encontraríamos a esplêndida atriz Eva Wilma, grande amor de Zara.

No encontro seguinte, falaríamos do diretor Marcio Aurelio e da atriz Maria Fernanda Cândido. No mesmo dia em que inscrevia seus nomes, eu os encontraria numa estreia teatral. Era como ver personagens de um livro tomarem vida, saltarem das palavras para a realidade, caindo no colo de nosso imaginário.

Denise Del Vecchio é desses exemplos raros e preciosos de coerência entre a vida e a arte. Avessa a qualquer situação capaz de tolher a liberdade humana, Denise sempre que possível optou por personagens de forte impacto, libertárias e comprometidas com alguma luta interior. Desafiando limites, existências angustiadas ou enfrentando inimigos declarados como a censura e a repressão impostas pela de tão triste memória ditadura militar, Denise assumiu os riscos indissociáveis da consciência coletiva que reinava no universo teatral nas décadas de 60 e 70.

Quis mais uma coincidência que, para a Coleção, eu tivesse a honra de compor mais um livro sobre uma artista de obstinado e perseverante talento, consistente formação ideológica e sólidos princípios éticos. Alcides Nogueira e Maria Adelaide Amaral, anteriormente biografados, desbravariam um caminho em que falar de resistência era algo orgânico e inevitável.

A criação já é em si, um inescrutável universo. Aliado ao fato de que, muitas vezes, esquecemos o que vivemos, o processo de construção deste livro teve como pano de fundo a história do teatro brasileiro das últimas décadas. Do lendário e revolucionário Teatro de Arena, de Augusto Boal, à TV Globo, passando pela extinta TV Tupi, pela TV Record e a pela TV Bandeirantes, Denise teve a oportunidade, ao exercer seu talento, de construir uma história indelével nas artes cênicas do país, e ainda criou um filho, André Frateschi, ator e musicista, com quem já dividiu o palco.

Queríamos prolongar o tempo de feitura do livro tamanha a atmosfera lúdica, sensível, transparente e profundamente prazerosa que havíamos criado entre nós. As singelezas da memória e as armadilhas da psique, o riso frouxo e algumas teimosas lágrimas, a emoção crescente e a história pessoal geravam a bola de neve que desvenda o oculto.

Um novelo de lembranças ávidas por existir. Sentíamos ansiosa saudade, uma efervescência interior quando tínhamos que nos ausentar dos relatos e pouco a pouco, ainda que inesgotável o túnel da memória, era preciso delimitar, desenhar e definir não um ponto final, mas as reticências de um capítulo inacabado que promete ainda incontáveis emoções.

De conversa em conversa, me voltariam à memória as palavras de Tadeusz Kantor, o extraordinário encenador polonês que transformou o cenário teatral europeu de modo irreversível. As inesquecíveis montagens de Kantor, que tive o privilégio de ver, me remetiam tal o relato de Denise Del Vecchio ao conceito de liberdade como bem supremo, como objetivo e mote de vida. Dizia ele:

‘A liberdade da arte não é uma dádiva da política

ou do poder

Não é das mãos do poder que a arte obtém

sua liberdade

A liberdade existe em nós

devemos lutar pela liberdade

sozinhos

com nós mesmos

em nosso interior mais íntimo

na solidão

e no sofrimento

É a matéria mais delicada

da esfera do espírito.’

Uma vez mais eu podia vivenciar um círculo que se fecha, uma vez que este livro não se pode dissociar do dramaturgo e escritor Alcides Nogueira, nosso amigo comum, para quem Denise é um ícone e superlativa atriz. Da mesma forma que a finalização desta obra deu-se num dia ensolarado de outono, em que Sua Santidade, o 14º Dalai Lama Tensyn Gyatso proferia, em São Paulo, sua palestra sobre o poder da compaixão.

Ao escrever, constato, a cada livro, que a vida é decididamente mais rica e criativa do que a ficção e por isso já me emociona. Tal como a ‘Lua de Cetim’, de Alcides Nogueira, espetáculo dirigido por Marcio Aurelio que, rendeu à atriz um Prêmio Molière, a lua cheia cria um círculo perfeito, harmônico e hegemônico.

O céu é pontilhado de estrelas e de tanto em tanto algumas nos caem no colo, sendo que uma delas se chama Denise, não por acaso, em grego, a deusa do prazer.”