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Conversa de Banheiro

Publicado em: 18/03/2011 |

Em uma proposta que busca a troca de experiências e sensações entre os colegas, além do estímulo ao olhar crítico sobre o teatro, Savina João, aprendiz de Direção da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco, colocou em prática um projeto em local inusitado: o banheiro.

 

Batizado com o nome “Conversa de Banheiro”, o projeto nasceu durante a leitura de um texto que estimulou os questionamentos sobre a escritura performática de Savina. Ainda sem ter uma ideia concreta, a aprendiz foi assistir “A Dócil”, com direção de Pedro Mantovani e, inspirada pela temática do espetáculo, sentiu necessidade de se comunicar e falar sobre as emoções suscitadas pela peça. “Queria dividir isso com as pessoas. Então, decidi escrever uma crítica sobre a montagem e colocar nas portas dos banheiros. O fato de a porta ter um vazio me chamou a atenção e, também porque lá é o único lugar em que você está sozinho”, revela a aprendiz.

 

“Em ‘A Dócil’, o enredo tem um estímulo inicial de falar sobre a cordialidade, só que eles sepultam esse sentimento para dar vazão à crueldade, para mim, sua face mais familiar”, explica a aprendiz.

 

Assim, Savina colocou em cada porta dos banheiros femininos e masculinos da SP Escola de Teatro, um sulfite xerocado que continha sua visão sobre o espetáculo. Ela conta ainda que pretende dar continuidade ao projeto. “Quero fazer as minhas críticas e convidar outras pessoas para fazer as suas também”, revela.
 
 

Caso você não seja frequentador dos banheiros da SP Escola de Teatro, leia, abaixo a crítica de Savina para o espetáculo “A Dócil, retirada diretamente das portas do banheiro da Escola para integrar essa matéria.

 

A Dócil

 

Nada mais estranho do que aquilo essencialmente familiar. Este ponto de vista encontrado no artigo “O Estranho”, de Sigmund Freud, é uma maneira de ver o espetáculo “A Dócil”, que nasceu da vontade de seus criadores em discutir o tema da cordialidade. Mas por que que estranho? Porque, em todo o espetáculo, a única circunstância, de fato cordial, é o público ser isentado de receber o elenco, após o apagar das luzes, com palmas e ovações.

 

Estranho também porque a cordialidade é sepultada em cena para dar vazão à crueldade, sua face mais familiar. Ou seria uma esquizofrenia? Ou a euforia que nos cega? Ou todas ao mesmo tempo? Quer dizer, neste espetáculo, a “cordialidade” ganha matizes para além daquela conhecida por todos nós como o “jeitinho brasileiro”. Ela é desenvolvida desde a disposição do público, que rivaliza por espaço com os atores –  circunstância paradoxal até, pois, ao mesmo tempo, impele o espectador a sentir-se como testemunha e conivente dos requintes da crueza empregados em cena – até a encenação musical, cordata com os estratagemas discursivos da personagem narradora.

 

E a crueldade? Ah, ela é a modalidade, por excelência, empregada para salientar o tema original. A crueldade “autorizada” pelo raciocínio, pelo silêncio e pela miséria. Crueldade, em rápida análise, reflexo das esquizofrenias e euforias sociais, das quais somos cotidianamente convidados a nos servir ou não. Ou seja, como a imagem uruboros, a serpente de duas cabeças, o espetáculo chega ao objetivo pretendido, devorando (ausentando) o mote inicial.

 

Enfim, “A Dócil”, inspirada na obra homônima de Dostoiévski, é uma oportunidade para nos deparamos com uma versão de casualidades de fenômenos sociais (conhecidos nossos), como postulava Brecht.