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Confecção da Cena | Subjetividade e cenografia: recepção da estética visual teatral", de Suellen Teixeira

Publicado em: 18/10/2016 |

Subjetividade e cenografia: recepção da estética visual teatral

Subjectivity and scenography: reception of the theatre visual esthetics

 

 

RESUMO: O presente artigo discute a relação entre sujeito e dispositivo. Considerando o sujeito enquanto espectador e o dispositivo enquanto concepção visual de uma peça de teatro, discorre acerca das relações que se estabelecem entre eles, tendo como base as teorias da recepção, subjetividade e o entendimento de estética e espaço cenográfico. Através desses pontos, busca chegar a um entendimento do fazer artístico e da cenografia enquanto disparadores de processos de subjetivação.

Palavras-chave: Subjetividade; Cenografia; Teatro

 

 

ABSTRACT: This article discuss the relation between individual and device. Considering the individual as an espectator and the device as a visual conception of theatral scene, it discourses about the relations that are established between them, using as baselines the theories of reception, subjectivity, as well as knowledges about esthetics and scenographic space. Through those means, this paper seeks to expose the artistic perfomance and scenography as triggers of the subjetification process.

 

 

Keywords: Subjectivity; Scenography; Theatre

INTRODUÇÃO

A dinâmica do encontro público/obra no teatro se dá através de vários elementos em jogo no processo de encenação. O teatro é o trabalho conjunto de várias áreas que convergem a fim de dar vida à cena: dramaturgia, direção, iluminação, sonoplastia, cenografia, figurino, atuação, entre outras. Nem todas as obras utilizam necessariamente de todas as áreas possíveis no processo de criação teatral. Cada encenação usufrui daquilo que é conveniente para a cena. O teatro dispõe de linguagens múltiplas que agregam em si particularidades que as compõem, seja a linguagem narrativa, realista, naturalista, performativa, ou de qualquer outra ordem.

Quando a relação público e obra se estabelece, uma série de efeitos decorrem desse processo. Isso porque, uma força produtiva é gerada nos encontros, propiciando uma construção coletiva viva. É nessa força produtiva que consiste a subjetividade: é o que se produz no sujeito a partir do encontro com o outro e quais efeitos essa troca propicia. É importante ressaltar, aqui, que esse “outro” não é necessariamente outro sujeito, mas sim o outro como uma série de elementos, que vão desde: pessoas, meios de comunicação, obras de arte, natureza, espaço, etc., uma infinidade de instâncias que estão dispostas no campo social.

Assim, uma peça teatral por si só já é um dispositivo, é esse “outro” com o qual o sujeito pode se encontrar. Adentrando ainda mais em sua natureza, notamos que a peça é, também, composta por uma série de dispositivos, dentre eles a estética visual, dentro dela: a cenografia.

Os modos de subjetividade provenientes do encontro espectador/obra – aqui, em especial com foco na estética visual – lidam diretamente com as questões da recepção do público em relação à mensagem visual que lhes chega ao assistir uma peça de teatro. Cada sujeito é passível de subjetividade, geração de valores, sentidos, ideias que alimentam e reverberam tanto no campo pessoal (na particularidades de cada um), quanto no campo social (esse sujeito em relação à sociedade).

Por que entender a cenografia teatral enquanto dispositivo disparador de processos de subjetivação no sujeito? Como a estética visual das obras teatrais propicia essa produção de sentido em quem assiste, gera nesse público sentidos, valores e outros tipos de subjetivação que permitem uma modificação no estado desse sujeito em relação a si e ao mundo?

A fim de responder a essas questões, se faz necessária uma discussão preliminar acerca de alguns conceitos, tais quais: recepção e experiência estética, do campo da comunicação social; subjetividade e percepção, da filosofia; bem como teatro, atmosfera e espacialidade cênica. Conceitos sobre os quais esse artigo perpassa brevemente.

ESTUDOS DA RECEPÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA

A ideia de recepção é um conceito proveniente do campo dos Estudos Culturais e da Comunicação e trabalha o entendimento da relação do espectador/público/receptor com as mensagens que lhes chegam através de diferentes meios. Inicialmente voltados para o campo da literatura, os estudos da recepção passaram por diferentes momentos de compreensão, e começaram a ser investigados em meados da década de 50, através dos primeiros modelos, que tinham em vista o processo de comunicação como uma instância mecânica, na qual o receptor estava inserido em um processo de via única. Nesse entendimento, as ações do emissor se dariam de forma automática no receptor, que estaria pronto a ser preenchido com as mensagens que lhe chegam, sem qualquer possibilidade de interação/questionamento/investigação acerca do que lhe é apresentado.

Ao longo do tempo, esses conceitos foram investigados e trabalhados por diferentes autores, o que permitiu que, por volta das décadas de 80 e 90 do século XX, novos modelos surgissem contrariando os estudos condutistas anteriormente apresentados. É nesse contexto que começa-se a entender o receptor de uma maneira diferente, deixando de ser inerte e vazio, e passando a ser um sujeito portador de vontade, interesse e filtro. Assim, as mensagens provenientes de um emissor, seriam decodificadas, interpretadas e lidas de maneiras diversas considerando uma série de questões tais quais: vivências, memórias, cultura, entre tantas outras.

Essas teorias da recepção, que fogem às condutistas inicialmente trabalhadas, deslocam a ênfase no processo de construção criativa. Isso porque, tira o foco do autor da obra em questão e o abrange para a relação interativa que se estabelece entre: espectador, obra e meio social. Essa relação interativa não é engessada e única, pelo contrário, é moldável e mutável, uma vez que o próprio meio social circundante também o é.

Tendo como expoente notório o teórico Hans Robert Jauss, a Estética da Recepção surge de maneira mais clara em 1967, quando em aula inaugural na Universidade de Costança, Jauss questiona a maneira pela qual a teoria literária vem trabalhando/abordando a história da literatura. A palestra foi intitulada: O que é e com que fim se estuda a história da literatura?. Através desses novos questionamentos, Jauss põe em cheque um modelo que aborda a produção literária pelo viés da vida e obra de autores e suas cronologias, o que não deixava espaço para o reconhecimento de novos e menores autores, assim como desconsiderava a historicidade da obra e sua relação com o tempo. Assim, o que Jauss faz a seguir é uma tentativa de estreitar os laços entre conhecimento histórico, estético e literário. Para isso, apropria-se das concepções teóricas até então vigentes, ressignificando-as a partir das novas questões.

Nos primórdios das investigações de recepção, alguns parâmetros foram utilizados para compreendê-la de uma nova maneira, tais quais: a historicidade da obra de arte, que é a natureza histórica que a permite viver e reviver de diferentes maneiras, com diferentes leituras sucessivas através dos tempos; o conjunto de expectativas que rodeiam obra e artista e o que os diferenciam em seu tempo; a forma como o horizonte de expectativas do receptor pode ser satisfeito ou rompido pela sensação de estranhamento, e como ele varia no decorrer do tempo;  a relação público/crítica e as interferências causadas pela obra nos códigos já instituídos; bem como a metodologia que prevê os estudos através de processos diacrônicos e sincrônicos, e o diálogo desses processos para a compreensão total da obra.

O processo diacrônico se refere à recepção da obra literária através do tempo, valorizando o fato de que essa obra transcende a época de sua aparição e se ressignifica. O processo sincrônico compreende obras produzidas na mesma época e que provocaram rupturas e novos rumos, permitindo verificar o diferente horizonte de expectativas de obras simultâneas. Os Estudos da Recepção propõem que leve-se em consideração a intersecção entre diacronia e sincronia para que a historicidade da literatura revele-se.

Além desses aspectos, para falar de recepção e experiência estética é importante falar de três ângulos que envolvem o processo de troca entre artista e espectador: a póiesis, a aisthésis e a kátharsis. Essas três fases, que podem acontecer concomitante ou separadamente, configuram-se como momentos da experiência estética, que, por sua vez, se dá pelo viés da expectativa e da emancipação. A expectativa se refere aos códigos, às experiências sociais, à bagagem cultural; e a emancipação se refere à finalidade e efeito da obra de arte.

A partir de três ângulos privilegiados – a póiesis, a aisthésis e a kátharsis – no percurso do processo dialógico que envolve o artista e o espectador, fica claro que, mesmo dispensando ênfase à estrutura de significados e interações comunicativas advindas do contato com a obra, a estética da recepção é uma operação comprometida com o processo artístico. (MOSTAÇO; Eldécio, 2015, p. 48)

A póiesis,  do grego poien, está relacionada ao prazer da criação, seja como autor da obra, ou como  leitor da mesma, uma vez que entende-se o ato de ler e interpretar como um refazer; configura-se, então, uma apropriação do mundo exterior que alcança um ponto de conhecimento, o que difere do fazer meramente produtivo.  A aisthésis por sua vez, configura-se pelo prazer adquirido da experiência estética, através da leitura da obra, momento no qual o horizonte de expectativas do leitor pode se ampliar ou renovar; segundo as teorias da recepção, quanto mais um texto/obra se distancia das expectativas, mais chances de ampliar os horizontes, já que acrescenta e modifica o estado da bagagem do receptor. Por fim, a kátharsis, compreende a efetiva possibilidade de transformação, no espectador, das concepções advindas do senso comum, é a dimensão em que nos deixamos levar pelo prazer dos afetos provocados pela obra.

ESTÉTICA VISUAL TEATRAL ASSOCIADA À RECEPÇÃO

A literatura foi o campo de investigação inicial dos estudos de recepção. Entretanto, boa parte dos conceitos se aplicam a obras diversas e diferentes tipos de linguagens, contemplando não só a literária. Quando falamos de teatro, os franceses e italianos, a princípio, foram os responsáveis por conectar os estudos de recepção à área, alguns nomes que podem ser citados são: Marco de Marinis, Anne Übersfeld e Patrice Pavis. Boa parte dos ensaios produzidos estavam voltados para o processo de decifrar a composição tanto do texto como do espetáculo, mas a recepção teatral do ponto de vista da estética visual, contemplando a questão imagética, ainda pouco se tem de referências teóricas.

A estética visual de uma obra teatral é a sua composição imagética. Ou seja, tudo aquilo que chega aos olhos do espectador enquanto imagem é a estética visual da cena. Dentro dessa estética existe uma direção artística composta por diversas áreas plásticas, tais quais: cenografia, figurino, iluminação, maquiagem – entre outros, dependendo do espetáculo -, ou seja, todas as opções visuais feitas para a cena, criarão no palco a estética desejada pelos realizadores da peça. Assim, pode-se dizer que, não é apenas a cenografia a responsável pela estética visual, ou uma outra área sozinha, mas sim o conjunto de escolhas. Entretanto, aqui nesse trabalho, dá-se ênfase à espacialidade, à cenografia, mas sem ignorar o papel fundamental das demais áreas no processo de criação.

A ideia de recepção associada à cenografia vem a ser, portanto, um estudo de como o espectador de uma obra se afeta com a leitura visual do espetáculo. Se os estudos da recepção, a princípio, se restringiam à literatura, hoje se aplicam à relação das pessoas com diversas formas de mensagem. Assim, para entender melhor como todas as questões da experiência estética, que foram ditas no início dessa reflexão, se associam com a cenografia, é preciso esclarecer alguns pontos.

A cenografia de uma obra teatral é, de maneira simplória, a arquitetura do espaço. Porém, para muito além desse conceito estrutural, a cenografia e o desenvolvimento do espaço são, na verdade, uma maneira de instaurar em um determinado lugar uma atmosfera. Assim, podemos dizer que o espaço cenográfico de uma cena se estende até onde sua atmosfera consegue alcançar. Cada obra teatral possui uma série de possibilidades de espaço, seja na configuração estilo palco italiano, seja ocupando um espaço no qual cena e público se misturem. Para entender o jogo da estética visual com o espectador é importante entender o espaço como algo vivo e pulsante, “(…) a atmosfera e a qualidade afetam profundamente  tanto a plateia quanto os atores. Um espaço é uma personalidade viva, com passado, presente e futuro”, (HOWARD, 2015).

Quando se fala de afetação do público pelo espaço, estamos diretamente falando de recepção. O espaço comunica, porém não comunica de maneira condutista, por via de mão única, tal qual as primeiras teorias da recepção supunham em relação à forma como as mensagens chegavam aos espectadores. É importante entender o espectador como um sujeito desejante e completamente capaz de dialogar com todas as mensagens que o chegam, sejam elas de qualquer ordem. O reconhecimento de um espaço lida com nossa constância perceptiva, que é a forma como reconhecemos as coisas no mundo devido aos elementos invariáveis que nos cercam. Sabemos que uma mesa é uma mesa ainda que existam dez mesas diferentes, reconheceremos que todas são mesas devido a essa constância perceptiva. Assim, “(…) a percepção visual põe em ação, quase automaticamente, um saber sobre a realidade visível”, (AUMONT, 2012).

Quando uma proposta cenográfica afeta, ela se relaciona com esse saber acerca da realidade visível, podemos dizer que ela foi reconhecida no horizonte de expectativas do espectador ou se distanciou, gerando uma modificação no seu estado; quanto mais distante do horizonte de expectativas, mais essa afetação pode gerar um estado novo, caso contrário, estará no campo da recognição. Assim, ao assistir a uma peça de teatro, o espectador está sujeito às fases da experiência estética anteriormente citadas: póiesis, aisthésis e kathársis, assim como o espetáculo está sujeito ao processo de ressignificação através do tempo, tal qual a literatura. Mais que isso, o espetáculo passa por essa ressignificação de uma maneira ainda mais rápida, uma vez que o estado vivo do teatro o faz se modificar a cada encenação.

SUBJETIVIDADE, PROCESSO DE SUBJETIVAÇÃO E DISPOSITIVO

A subjetividade é um processo constante de produção em que nos encontramos e do qual tiramos matéria-prima para expressão de nossos afetos. É, portanto, e também, uma forma de o sujeito existir e se entender no mundo, em sua relação com tudo o que existe. A maneira como nos entendemos enquanto sujeitos está relacionada ao conjunto de pensamentos de uma época, à cultura que emerge de uma sociedade em determinado momento, portanto, suas crenças, condições sociais, sua construção política e tecnológica. Assim, na compreensão do que é subjetividade, processo de subjetivação e dispositivo, podemos começar falando acerca da subjetividade moderna e da subjetividade medieval para melhor explicitar o pensamento atual. A primeira, se trata da forma como o homem ocidental se entendia enquanto sujeito num período que compreende aproximadamente o final do Renascimento e o início do século XX. Nesse período cabia ao homem o papel de observador de si mesmo e o papel de produtor de conhecimento, como ser responsável por buscar e desvendar o funcionamento do mundo. Diferente da segunda, na qual o homem se compreendia enquanto parte de uma criação divina, e, portanto, não contestadores, mas sim protetores, dessa verdade, que estava acima da sua compreensão.

Já o sujeito pós-moderno, é entendido como o resultado de um processo de subjetivação. Esse processo de subjetivação nada mais é do que a relação do sujeito com uma série de elementos, variáveis a cada época ou momento, os quais, em interação com o sujeito, possibilitam novas formas de compreensão, afetação, produção de (auto)conhecimento. Assim, diferente da subjetividade moderna, o sujeito não é mais entendido como puramente autoconsciente, como se todo pensamento e compreensão partisse de si mesmo, sendo ele o produtor/gerador único de onde parte todo o conhecimento. Na compreensão pós-moderna, e que vem da filosofia pós-estruturalista francesa, o sujeito é resultado de um processo interativo (encontro) com uma série de dispositivos. Esses dispositivos são desde práticas e mecanismos, às linguagens, outros sujeitos, espaços, objetos, imagens, ou seja, qualquer coisa que gere algum tipo de afetação a partir do encontro.  A arte, e portanto o teatro, é um desses mecanismos. Assim como, dentro do teatro, a cenografia o é.

O sujeito pós-moderno é compreendido como resultado de um processo de subjetivação, ou seja, da relação do indivíduo com um conjunto heterogêneo de elementos compostos do contexto cultural, social, tecnológico e político no qual ele está inserido. (VEIGA; Luana Marchiori, 2008, p.30)

Esse processo de afetação, está diretamente relacionado ao tempo, que é o fundamento da nossa subjetividade. O que isso quer dizer? Quando nos deparamos com algo – seja esse algo qualquer dispositivo – estamos diante de uma percepção. Nossa percepção opera um recorte no fluxo material, isso porque perceber é apreender apenas uma imagem recortada e simplificada, o que implica em excluir uma série de outras imagens. Ou seja, nossa percepção é o real menos aquilo que, nele, não nos interessa, é como escolher o enquadramento de uma fotografia. “(…) toda percepção já está misturada com a memória, constituindo o aspecto subjetivo daquele que percebe” (FERREIRA, 2016).

Quando ocorre o encontro, os dados da percepção se tornam passados com relação ao percebido a todo momento, uma vez que o tempo transcorre ininterrupto. Isso quer dizer que, por uma fração de sgundos, o que percebemos logo deixa de ser presente e se torna um passado imediato em relação àquilo que, então, presentemente vemos. Esse passado imediato, que é senão os próprios dados da percepção, é sobreposto por camadas de lembrança, tudo que há em nós de bagagem, seja cultural, social, linguística, aquilo que, não obstante, nos permite interpretar e por vezes reinterpretar o que está diante de nós, nos auxiliando na ação a ser tomada.

Assim, ao perceber, nos afetamos e, na medida em que possuímos uma memória que nos orienta, o futuro se presentifica em forma de expectativa/antecipação em nossa consciência. Um exemplo simplório: estamos, enquanto espectadores, diante de uma peça de teatro na qual, em determinada cena, um ator sobe em uma plataforma de altura considerável e ameaça se jogar. Ao perceber a cena, ela se configura em passado imediato – ainda que em escala infinitesimal – que, concomitantemente atravessado pela nossa memória, nos faz antecipar: cair daquela altura implica em se machucar. Opera em nós uma expectativa, um futuro iminente: sentimos medo, aflição, curiosidade sobre o que vai acontecer dali em diante. Esse intervalo entre o passado imediato e o futuro iminente, é o presente em si.

O afeto é aquilo que tinge nossa consciência, um devir que nos remete à categoria do possível. Sendo a consciência um intervalo de movimento entre perceber e agir e sendo o afeto um devir que liga o passado imediato da experiência sensível ao futuro iminente de uma ação possível, nos cabe a pergunta: o que preenche esse intervalo, constituindo o fundamento mais profundo da nossa subjetividade? E ainda: de que maneira a experiência artística nos remete a tal fundamento?

A arte, enquanto dispositivo, está aqui não para favorecer a nossa expectativa tão somente, mas sim para romper com ela, para frustrar as expectativas ao levar para caminhos inimagináveis. A arte não deve estar no campo da mera recognição, mas sim existir enquanto uma forma de criar singularidades no mundo, uma forma de nos deslocar dos campos de saber que demarcam as nossas experiências.

(…) algumas experimentações artísticas podem nos mostrar saídas, através de outras perspectivas, ou outros modos de relação entre corpo-cultura-subjetividade, na medida em que traçam rotas desevidenciantes, isto é, põem em questão o corpo, a cultura, a subjetividade. Experimentam-nos em seu poder de contágio, no improvável e provisório de seus devires. Na verdade, enchem-nos de plurais, trazendo à tona a multiplicidade surpreendente desses elementos e das suas misturas. (SANDER; Jardel, 2011, p. 140)

CENOGRAFIA: ESPAÇO E TEMPO

O que entendemos por espaço? Na maioria das vezes a nossa noção de espaço está diretamente ligada a limites: o espaço do quarto é esse delimitado por quatro paredes; o espaço da escola é esse definido pelas paredes do prédio, e assim vamos entendendo o espaço na medida em que vamos reconhecendo onde ele começa e termina. Essa noção nos faz associá-lo, frequentemente, a algo tangível e palpável, e ao conceituá-lo acabamos, por consequência, encontrando também limites.

Outra sensação coletiva é a de que, se existe um espaço, ele precisa ser habitado; por coisas ou pessoas, matéria em geral. A princípio estranhamos o vazio, depois aos poucos vamos nos acostumando com ele. Tudo isso está relacionado ao nosso horizonte de expectativas e à nossa experiência visível, constância perceptiva. Não que o espaço não seja também isso: esse lugar delimitado por paredes ou muros, ou objetos, ou divisões quaisquer. Mas não só. Um exemplo muito interessante em relação a essas questões – e que, embora se trate de um exemplo cinematográfico, não é menos teatral – é o filme Dogville de Lars Von Trier. O filme todo se passa em um estúdio preto com marcações brancas definindo e limitando os espaços e servindo, ao mesmo tempo, de cenografia, dando ao espectador a função e a possibilidade de criar.

Quantos espectadores deixaram o filme pela metade, ou nos primeiros minutos pela sensação de estranheza à qual foram acometidos ao não encontrarem as paredes, as árvores, as casas e ruas bem definidas? Não encontrarem o espaço ocupado tal qual nossa constância perceptiva está acostumada? A estranheza de não encontrar uma cenografia para o filme tal qual nossa expectativa ao assistir qualquer filme supõe? Ora, estamos então diante de algo que rompe com esse horizonte, com a expectativa. É isso que nos dá uma nova proposição, um novo estado diante de algo que já conhecemos, hesitamos diante do novo.

O espaço é ingrediente fundamental da cenografia e da dramaturgia: corresponde aos modos pelos quais a experiência dramática é vista e moldada. Com a adição de cores, imagens e palavras, os espaços ficam carregados de vida e ação, envolvendo-se diretamente com o público por meio do discurso e do diálogo. (HOWARD; Pamela, 2015, p. 35)

Quando Cláudio Willer em seu poema Carta diz que “as cidades não existem, só os encontros são reais…” ele sintetiza poeticamente muito bem uma compreensão de espaço que pode ser muito cenográfica. O que constrói o nosso espaço, indefinido, ilimitado, passível de expansão, de mudança: é o encontro. O encontro não apenas com o outro, enquanto ser social, mas o encontro com as palavras, com a natureza, com sons, com acontecimentos, imagens, enfim, com qualquer coisa que possa nos afetar. O que é o teatro senão um grande encontro? O que é, portanto, o espaço do teatro? Seria somente o palco? Essa reflexão traz a cenografia e o espaço para uma ideia de tempo. Como a cenografia se relaciona com o tempo?

O fundamento da subjetividade, como dito anteriormente, é temporal. Nós, enquanto sujeitos, possuímos uma característica particular, que é a característica da hesitação. É o que nos torna centros de indeterminação. “Bergson quer nos dizer que os seres vivos são centros de indeterminação, porque eles percebem e sofrem afecções, permitindo-os escolherem livremente as suas ações.” (FERREIRA, 2016). Nosso aparelho sensório-motor se configura pela percepção, afecção e ação. Acontece que há um intervalo de movimento entre perceber e agir. Esse intervalo é preenchido pela memória, e entre nossa a percepção e a nossa ação, hesitamos por natureza.

Assim, temos um reconhecimento do fluxo material, que pode ser automático ou atento. O segundo prescinde necessariamente da hesitação, da indeterminação. Pois, quanto maior a suspensão da nossa resposta em relação a algo, quanto maior o intervalo entre nossa percepção e nossa ação, mais hesitantes nos tornamos e, consequentemente, mais investidos de tempo. Da mesma forma, nos distanciamos mais da dimensão do automatismo, nos tornando menos previsíveis. Voltamos então para a marca temporal da subjetividade e da própria arte: criar é, portanto, uma experiência temporal, visto que, a arte nos faz imergir nesse tempo, nesse deslocamento de ênfase, nos reorientando na direção de um reconhecimento atento e nos distanciando do automatismo.

A partir do momento em que a experiência artística não favorece a nossa expectativa, ela proporciona um distanciamento de uma resposta imediata. Assim, ao colocar o espectador num maior estado de hesitação, o teatro, nesse caso em questão a estética visual, nada mais faz que direcionar o espectador a uma experiência temporal. Nesse sentido, se a cenografia produz impacto na subjetividade, sendo a subjetividade tempo, a cenografia deixa de lidar apenas com a questão espacial e material que é originalmente de sua natureza, passando a lidar com uma dimensão temporal e psicológica: atua, portanto, tanto no tempo quanto no espaço.

O teatro está onde é encenado. Pode ocorrer em um edifício especialmente construído para isso ou então em um improvisado ou circunstancial; assim como na rua, nos adros ou colinas que as cidades albergam para, como clareiras, serem livremente ocupados. O espaço cênico pode integrar os espectadores na cena ou mantê-los apartados. Pode ainda ocorrer em meio aos espectadores ou, como sucede algumas vezes, ser estruturado no próprio local dos espectadores, ensejando, nesses casos, forte convite à interação. O espaço de jogo, fator fundamental para a teatralidade, propicia muitos diagramas de relações entre atuadores e audiência. (MOSTAÇO; Eldécio, 2015, p. 72)

Quando vamos assistir a uma peça, comumente entendemos por cenografia aquilo que a nossa vista alcança de tangível: a cadeira onde o ator está, aquele abajur ao lado da mesa e todos os demais elementos que compõem o espaço da encenação. Porém, a cenografia é, para além dessa concepção muito básica, um elemento de comunicação e, dentro dessa ideia, ela funciona como potencializadora da dramaturgia, disparador de jogo e criação para a encenação, bem como elemento forte de discurso. A cenografia é, portanto, uma linguagem dentro do fazer teatral e, como tal, repleta de possibilidades de leitura e recepção por parte do espectador.

O espaço, anteriormente dito, aqui tem um papel fundamental. A cenografia pode estar no espaço, ser o espaço, usufruir do espaço, modificar o estado desse espaço. Por isso mesmo seria muito limitador definir espaço e cenografia baseado na ideia do palpável. Existem camadas de subjetivação no encontro desses dois elementos e uma infinidade de resultados podem ser gerados nessa confluência. Dentro desses resultados existe a atmosfera e a dimensão temporal, anteriormente citada.

(…) pode-se definir a atmosfera como sendo um espaço mais ou menos energético, composto por forças visíveis ou invisíveis, que têm o poder de desencadear sensações e afetos nos receptores. É a natureza dessas forças, o seu ritmo e a sua relação que determinam o seu caráter. (GIL; Inês, 2005, p. 22, apud MARTINS; India Mara,  2010, p.2)

Essa atmosfera é que faz da cenografia elemento vivo e pulsante, é ela que amplia também a noção do espaço e nos direciona no tempo, uma vez que através das sensações modifica e abrange a nossa perspectiva espacial. Seria injusto considerar a cenografia a responsável pela criação de uma atmosfera. Essa atmosfera é resultado de um trabalho de integração plástica, o que envolve a iluminação, a cenografia, sonoplastia e a própria encenação trabalhando com esses elementos. Porém, já que estamos nos debruçando aqui sobre a ideia de espaço/cenografia, quais ferramentas ela pode utilizar a fim de contribuir com essa construção de atmosfera? Sabemos que a cenografia trabalha com uma série de escolhas para a criação, por exemplo: textura, materiais, disposição dos elementos no espaço, cor, níveis, etc; lembrando que tudo isso parte de um conceito desenvolvido, dependendo do processo/projeto, partindo do texto ou de outro elemento disparador. O conceito desenvolvido e o andamento do processo vão determinar as escolhas do cenógrafo, ou seja, quais ferramentas ele julgará necessárias para a criação.

A atmosfera é a integração no complexo plástico de elementos ativos (dinâmicos) – personagens e objetos, e elementos passivos (estáticos) – lugar e cenário, num clima cuja origem é sempre psicológica. A atmosfera é o ligante da componente fílmica ou pictórica. É a atmosfera que dá o tom à obra. É através dela que o visual relembra à nossa memória – que acumulou as nossas experiências vividas, que os pendências psíquicas, que se traduzem por desconforto, tristeza, mistério, medo, angústia, felicidade, alegria, etc. (ALEKAN; Henry, 1984,  p. 67, apud MARTINS; India Mara,  2010, p.3)

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