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Carta à cena franca

Publicado em: 23/09/2013 |

* por Paulo Renato Minati Panzeri, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

 

Escrevo para vocês no dia seguinte do Experimento do módulo Vermelho como que em suspensão, aguardando o que pode decantar nestas palavras. Apesar de já termos tido um contato ontem, prefiro assumir que não há entre nós uma convivência que possa amparar esta reflexão para além do apresentado. Há somente a lembrança de um conjunto de propostas para as duas posições fundamentais do teatro: artista e espectador. 

 

A partir deste ponto de vista, posso afirmar que aquele que aqui escreve ocupa uma posição ambígua e confortável. A posição é ambígua por se tratar de um observador que não participou dos processos artístico-pedagógicos dos núcleos, mas que pretende apresentar sua colaboração a estes processos. E é uma posição confortável, porque o autor do texto não enfrentou e nem enfrentará os desafios da tarefa de reunir diversas áreas nestes processos. Ocupamos todos, portanto, posições muito diferentes. 

 

Talvez, a ideia de posição seja muito relevante para este momento. Isto porque acredito que é o reconhecimento de um estar no mundo (específico e único) que fundamenta a parresia. Este reconhecimento me permite associar o estar no mundo ao processo de individuação. Estou pensando em um processo de individuação artística (talvez um cuidado de si!) resultante de diferenciações e separações, capaz de reconhecer que na ausência de sua fala franca o sujeito da criação artística desaparece.

 

Talvez a parresia seja um exercício pleno de autonomia, imerso na consciência de suas implicações. Toda autonomia tem consequências que evocam responsabilidades! Responsabilidades proporcionais à radicalidade com que se empreende a fala franca. Entretanto, quando escrevo “fala franca” sei que o teatro tem lugares para a fala. E se tomarmos a cena como fenômeno polifônico, teremos que nos perguntar: onde e como desejamos exercer nossa fala franca? Naquilo que o ator fala? Na relação com a plateia? Uma parresia da luz? Do espaço? Se a parresia dialoga com uma autoridade constituída, qual é o objeto de meu discurso parrésico? E a quem dirijo este discurso? Aos colegas ou ao espectador? A autoridade que desejo enfrentar é a convenção teatral? O próprio elenco? O espectador-juiz? Os formadores? Qual seria a fala franca na fala teatral? A fala irônica? A mentira revelada? Os comediógrafos poderiam ser tomados como nossa tradição de parresia na dramaturgia? O que é falar francamente a verdade em uma arte tão servida pela mentira? A resposta estaria na Performatividade ou na Teatralidade?

 

Acho que em um módulo no qual o eixo temático pode ser escolhido pelos artistas, o desafio da escolha se instaura permanentemente. A parresia (operador) pode ser eventualmente deslocada para esse “buraco” deixado pela liberdade de escolha. Qual seria a diferença entre a parresia como eixo (sei lá… parresitividade?!) e a parresia como operador? A parresia é teatral? É possível assumir na parresia uma potência de linguagem artística?

 

Eu me recordo de alguns textos filosóficos que sempre tive vontade de dizer como ator, mas que não eram teatrais do ponto de vista da ação dramática. Textos que traziam minha posição no mundo, como o “Discurso sobre a servidão voluntária”, de La Boétie – que me veio à cabeça durante vários experimentos. Tentei tomar a oportunidade de escrever sobre os experimentos de 4 núcleos do Módulo Vermelho como um passeio. Eu me dei ao luxo de passear entre a conivência e a coerência, porque acredito no paralelo com o desafio de habitar entre a lisonja e a parresia. Este foi o desafio que testemunhei na tarde de sábado em todos os experimentos e que resolvi, de alguma forma, também empreender neste texto.

 

Nesta paisagem textual, a armadilha da conivência se manifestava no desejo de agradar vocês, um desejo de não me posicionar em relação ao teatro (como se isso fosse possível!!) ou de deixar tudo como está. Por outro lado, o convite à coerência se manifestou na compreensão de um desejo de intervir conscientemente e de me colocar verdadeiramente diante do que testemunhei. Penso que habitar o entre (conivência-coerência ou lisonja-parresia) remete, sobretudo, ao deslocamento possibilitado pela presença destas oposições. Pude observar nas cenas tentativas de habitar os espaços de tensão criados por estas e por outras oposições (real-ficcional, ator-espectador, sujeito-objeto).

 

Estes espaços de tensão eram igualmente espaços de potência porque resultavam do atrito entre aquilo que poderia ser parresia e aquilo que poderia não ser. Como se a cena fosse um exercício de aproximação que só seria possível em oposição a algo, uma aproximação auxiliada principalmente pela negação. Talvez, a melhor palavra seja desconstrução, pois foi a principal tônica das cenas que vi. E mesmo que os resultados eventualmente ainda não operem a presença da verdade, a presença da desconstrução como um primeiro passo parrésico atesta a teatralidade e autenticidade da sua busca.

 

 

Domingo, 22 de setembro de 2013

Paulo Renato Minati Panzeri