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“Arte, educação e democracia”, por Edelcio Mostaço

Publicado em: 05/11/2020 |

Por Edelcio Mostaço

 

1 – A interação entre arte, educação e democracia nos parece tão óbvia que nem sempre nos dedicamos a aprofundar essas correlações. Os vínculos entre arte e educação são inúmeros, podendo ser abordados através de múltiplos vieses, situações e confrontos. Sendo a arte um modo de fazer – muito específico, é claro, uma vez que existem inúmeros modos para esse fazer – ele requer um aprendizado prévio, ou seja um jeito de adquirir esse modo. Essa aquisição se dá exatamente através da pedagogia, da educação, seja formal ou informal. Todo artista necessita mobilizar um instrumento de expressão e uma técnica para viabilizá-lo. No caso do teatro, esse instrumento é o ator e sua expressão possui muitas maneiras diferentes para se exprimir, tudo dependendo das necessidades artísticas que os produtos artísticos demandam.
Essas técnicas mobilizam instrumentais próprios, adequados, selecionados por certa metodologia; de modo a cumprirem um dado objetivo que almejam conquistar. E aqui já vislumbramos um outro nó que essa cadeia de relações envolve. O objetivo de um produto artístico também é variável, pois depende de uma vontade do artista: qual a direção e qual a intenção que o orientam em suas escolhas. Como sempre, existem boas e más escolhas, aquelas úteis e justas e outras que seguem para o inútil e o injusto.

Assim, o caráter de um produto artístico possui direta relação com o comprometimento de seu autor consigo mesmo e com os demais, seu coletivo, sua sociedade, uma vez que o produto artístico se destina a alguém, seja esse alguém obscuro ou perfeitamente identificado. O artista, portanto, tem sempre de fazer opções, seja frente à técnica que escolhe para se exprimir, seja o público para o qual destina sua produção, o que o torna um partícipe importante nos dois campos: seja no campo da pedagogia seja no da política. A ideia de uma arte neutra, desligada de suas contingências sócio cultuais, é bastante ingênua e reflete ainda uma postura liberal e burguesa, de talhe romântico, não só deslocada no tempo como no espaço.

O mundo em que hoje vivemos constitui uma realidade cheia de conflitos, confrontos, disputas e discórdias marcando os distintos poderes, as distintas forças e os vários movimentos que produzem sua dinâmica. Esse mundo é essencialmente político. Bem como é essencialmente polícia. Jacques Rancière distingue bem a diferença entre as duas coisas. A polícia é tudo aquilo que, na esfera pública, restringe, controla e boicota o Estado ou sua Constituição, exercendo seu poder através de mecanismos jurídicos, econômicos, de biopolítica e, em casos extremos, de necropolítica, através de mecanismos de extermínio. A política, ao contrário, se manifesta como a contrapartida dessas situações, aqueles momentos em que as forças sociais conseguem, ainda que momentaneamente, livrar-se desses mecanismos repressivos e instituir novas normas de ação – entre elas a democracia.

Nessa acepção, a democracia não é um regime político, como muitos pensam ou querem fazer crer. Regimes políticos possuem nomes próprios: são a república, o império, o feudo, e que podem apresentar diferentes matizes de poder ou composição, tais como a oligarquia, a ditadura, a monarquia, o autoritarismo, dependendo das variações jurídicas, legislativas, executivas que cada regime político apresenta. Ao contrário disso tudo, democracia não é um regime de poder, mas uma instância de subjetivação, de uma capacidade de enunciação que refaz o campo da experiência política. Em outras palavras, a democracia requer a emancipação, o pensar e o existir fora da caixa, fora das normas sociopolíticas instituídas pela polícia. É nesse sentido que voltam a se reunir os três termos que nos ocupam: uma arte e uma pedagogia somente serão democráticas quando promoverem a emancipação, seja do artista seja do público, no sentido de propiciar uma outra perspectiva para conhecer o mundo policialesco e nele vislumbrar brechas, saídas ou espaços de convivência onde novas experiências de mundo possam ser realizadas – democraticamente realizadas.

2- A democracia vive sob permanente ataque da polícia. Há mesmo isso que se conhece como ódio à democracia, as eternas repressões organizadas contra ela e que reiteradamente insistem em torna-la inoperante, inexequível ou distópica. Como antes colocado, a democracia é uma instância de subjetivação, cuja singularidade é reunir dois estados do ser social: governar e ser governado. Assim, ela é dialética e permanentemente construída sob uma condição movente, o ir e vir entre um estado e outro. Ela se opõe àquilo normalmente tomado como identidade, constituindo-se como pura performatividade, esse vir-a-ser que implica movimento, realocação e deslocamento, a condição básica de todo cidadão. Sendo que governar e ser governado não deve ser tomado como uma alternância no tempo, ora um ora outro, mas no próprio ser da subjetividade, ser uma e outra dimensão simultaneamente, isto é, comutar papéis políticos.

Comutar papéis é uma arte, aliás, a arte própria do teatro. É nessa acepção, portanto, que ele escolhe entre o justo e o injusto, o danoso e o útil, toma um partido ético no grande jogo da disputa social, nos confrontos simbólicos que constituem a realidade. E aqui chegamos enfim à outra dimensão pedagógica que caracteriza as artes cênicas em geral: servir como grande espelho projetivo para a sociedade, desvendando facetas de existências humanas ainda não consideradas, ainda não ouvidas, ainda fora dos discursos vigentes e que requerem, para a mais ampla consideração da democracia, sejam elas também contadas nas operações da biopolítica instituída.

As artes cênicas – e mais particularmente o teatro – tem imenso papel a cumprir nesse campo da expressão artística, posicionando-se ética e esteticamente frente à disputa simbólica que atravessa o real. Cada performer que entra em cena deve ter clareza quanto à oscilação entre governar e ser governado, entre ser útil ou ser danoso, entre ser justo ou injusto, essas opções que norteiam as boas ou as más escolhas. E que marcam, em todos os sentidos, os rumos da experiência. Escolher o viés democrático é repensar corpos, discursos, posturas, atitudes, posicionamentos e atuações de confronto com tudo o que a polícia representa ou garante como normativo.

Vivemos um grande período de arte relacional, marcado sobretudo pelos mecanismos de participação e transitividade. Frente ao mundo do espetáculo, das mídias de massa, dos discursos hegemônicos veiculados pelos star system e pelos streamings de milhões de seguidores, é preciso criar novas atuações, novas estratégias que possibilitem desestabilizar esse panorama normativo e de biopolítica.

Uma delas é a promoção das coabitações, convocações que entrelacem indivíduos e coletivos diversos para viverem em conjunto aspectos de seu cotidiano. Outra é o deslocamento, surgir quando menos esperado, operar em espaços institucionalizados mas fora da programação. Outra ainda é deslocar programas, circuitos e curadorias que imprimem dada ordem aos eventos artísticos, e assim provocando curtos-circuitos nos programas. É possível também deslocar cenários, escritas, performances, produzir contra discursos quando esses se mostram como mão única. Vivemos em um mundo atravessado pelas imagens, em telas de todos os tamanhos, o que tornou o meio digital dominante quanto ao estabelecimento da biopolítica. De modo que, especialmente em tempos de pandemia, quando as comunicações interpessoais foram drasticamente reduzidas, empregar as imagens tornou-se vital e indispensável. Nicolas Bourriaud fala em radicantes, esses vegetais que se espalham em vez de fincar raízes, nômades e sorrateiros, ágeis e híbridos, capazes de encontrar brechas no cotidiano social e ali se instalarem com suas vozes plurais. Quando o neoliberalismo insiste em decretar que “não existem alternativas frente à ordem da globalização”, é mais do que necessário produzir dissenso, construindo pontes, desvendando percursos, criando novas figurações que se contraponham a esse discurso dominante que se toma como inexpugnável. É preciso inventar novas formas de vida, quando toda vida parece ter sido esgotada.

*Edelcio Mostaço é crítico, dramaturgista e professor-doutor de Pós-graduação em Teatro da UDESC – Universidade do Estado de Santa Catarina. É autor, entre outras obras, de: “Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião” (Annablume Editora), e “Incursões e Excursões – a cena no regime estético” (Teatro do Pequeno Gesto).

 




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