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Vertigem quarta: Pandemia, amor, Boccaccio e Pasolini

Publicado em: 27/05/2020 |

Mauri Paroni
Chá e Cadernos 100.29

Giovanni Boccaccio (1313-1375) inicia assim o seu Decameron: “Embora,  ó lindas mulheres, ao lembrar-me do quanto todas vocês são naturalmente misericordiosas, tantas há para quem este trabalho principie sério e chato pela sua lembrança dolorosa da mortalidade pestilenta que passou (…) para todos os que a viram ou não (…), não temam essa leitura (…) por [provocar] suspiros e lágrimas. Esse começo horrível não será mais que caminhar por uma montanha íngreme para  uma bonita e deliciosa planície; portanto quanto maior a subida, menor será a gravidade. E assim, como a exaustão da dor para vencer as misérias trará felicidade (…), a doçura e o prazer que prometo (…) – não fosse dito, não seria esperado -, logo virão. Na verdade, se eu pudesse, honestamente, ter trilhado outro caminho, (…), com prazer o teria feito: mas tal (…) não foi possível sem aquelas lembranças, pois, quase por necessidade, fui forçado a escrevê-las (…). “

O Decameron são cem “romances” – estórias – contadas por sete mulheres e três  rapazes, durante dez dias (deca + meron), durante a epidemia de peste que eclodiu em Florença em 1348. Para escapar dela, os dez jovens decidem ficar por duas semanas em duas residências no campo, onde passam o tempo dançando e cantando. A cada dia, um rei ou rainha é eleito para decidir o tema dos contos a serem contados, uma balada é cantada e o rei do dia seguinte é escolhido.

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Os temas incluem elogios a amores, zombarias, generosidades e cortesias, enquanto alguns dias são livresum dos contadores de histórias, Dioneo, nunca adere ao tema proposto, todos muito diferentes entre si, a representar a vida cotidiana pela pluralidade de tipos humanos, atitudes morais, comportamentos, virtudes e vícios; O livro é uma celebração dos valores terrenos surgidos na primeira metade do século XIV e oferece uma visão extraordinária da época. Boccaccio ressalta o privilegio  daquelas pessoas que conseguiam mais tempo para se dedicar à leitura.

<< Giovanni Boccaccio, por Andrea del Castagno (1450)

No início, faz uma narração longa e teatralmente “performática” da doença que atingiu Florença – confrontando sua experiência pessoal e a História gentis Langobardorum, do beneditino friulano Paolo, o diácono (720-799); além de dizimar a população, a epidemia destruiu todas as normas sociais, usos e costumes. Os jovens criam uma espécie de realidade paralela para demonstrar como o homem, graças à ajuda de sua própria força e inteligência, é capaz de dar ordem às coisas. Logo no prefácio, lamenta que as mulheres encontrem menos distrações das dores do amor do que os homens. De fato,  eram barradas de certos lazeres permitidos aos homens, como caça, jogo e comércio. Assim, nas histórias curtas, as mulheres encontrarão prazer e soluções que aliviarão seu sofrimento.

 

Os jovens são: Dioneo (“concupiscente”), nome originado de Diona, mãe de Vênus; Filostrato (“conquistado pelo amor”); Panfilo (o “Amor Total”, que costuma contar histórias com alto conteúdo erótico); Elissa (o outro nome de Dido, a rainha da Eneida de Virgílio); Emilia; Fiammetta (a mulher amada por Boccaccio); Filomena (“amante do canto” ou “a que é amada”); Lauretta (como Laura de Noves, a musa de Petrarca); Neifile (“nova amante”); Pampinea (“exuberante”).

Essas figuras revelam uma dinâmica sexual longe daquela dos detentores de poderes eclesiásticos, feudais e senhoriais, onde ocorrem enganos matrimoniais, vinganças de honras, arranjos de influências, arranjos de conveniências comerciais e até violação de cadáveres e suas joias funerárias.

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<< Pier Paolo Pasolini no filme O Decameron (1971)

O filme homônimo de Per Paolo Pasolini (1922-1975) – aliás censurado durante a ditadura militar brasileira – ressalta esse aspecto com suas imagens e roteiro em que a força do desejo sexual é pura alegria e revolução no amor e no eros. Este, como tal, não é condenado ou julgado negativamente, mas é reafirmado como algo absolutamente natural e cujos instintos são irreprimíveis:  grande parte dos romances do livro tem como protagonistas personagens que destravam desejos sexuais sem hesitar religiosa ou moralmente.

 

O recipiente narrativo do filme é uma metáfora em que o autor do todo não é um literato, mas o próprio diretor do filme (Pasolini) na função performática de seu “organizador” de imagens,  trabalhando no papel de um discípulo do pintor Giotto (1267-1337 ), que afresca uma parede  de igreja“Filma” e “projeta” uma narrativa afrescada.  O emprego de populares napolitanos confere uma vertiginosa força alegórica para a pandemia, disparadora da prosa mundana de Boccaccio, em meio a poderosas sequencias de imagens de viagens e paradas coletivas ao campo, para longe das cidades. Como poucos filmes, este “trai” a literalidade do livro para torna-lo fiel ao espírito precursor do humanismo pré renascentista. Ao mesmo tempo, traz a temática do emprego da sexualidade como força libertaria para a atualidade. Mais Boccaccio, impossível.

 

Houve confronto entre a obra e a Igreja que, na época, representava o modo de produção feudal: propriedade da terra, oração e trabalho. Os melhores arautos e narradores  desse longo período são: a fé  de Santo Agostinho (Em um Deus magnânima e perfeitamente bom, onde até o mal seria uma função do bem, que justifica a sua existência e também o combate a ele, através  da oração e do trabalho – este, exclusivo em função do mesmo bem divino); e a transcendência  de Dante Alighieri (1265-132) na sua Divina Commedia, cuja viagem ao além túmulo organizava o Universo nos três reinos do Inferno, Purgatório e Paraíso. A domesticação final do paganismo se dá partir do momento em que Dante é guiado, nos dois primeiros reinos, pelo poeta pagão Virgilio – que por isso mesmo vive no limbo; já no Paraísoa guia é o amor casto de Beatrice Portinari, a  menina de nove anos vestida de vermelho que o fulgurou, mas foi dada em matrimonio a outro. Amor idealizado, e paganismo (compreenda-se África Setentrional e Médio Oriente) isolado.

 

A Igreja de então promovia culturalmente a imagem do pecado para estabelecer o seu controle da atividade procriativa, da produção da mão de obra para o campo (terras), que foi colocada em xeque pelas cidades e o comércio. A pestilência dizimou quase dois terços da população urbana do Ocidente, com consequências que ditaram o fim do que, hoje, convencionou-se se chamar de Idade Média, e deu início ao Renascimento. Mais ainda: instilou condições para a descoberta de um novo caminho das Índias que, importantíssimo ressaltar, tomou conhecimento da África subsaariana, tangida somente por raros exploradores antes. Isso ainda não acabou.

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O recado de Boccaccio: diante de uma Pandemia, não carpir nos acontecimentos um momento propício a livrarmo-nos da ignorância, ou associar a gravidade das coisas ufanismo para acentuar as injustiças da distribuição iníqua de riqueza e de saberes é verdadeira questão moral do grave problema da conduta anti-humanista adotada por por governantes e governados. Exasperadores, terroristas, sem empatia, calculistas da morte, mentirosos, fujões. Pessoalmente, tudo o que aprendi está colocado em discussão, seja para afirmar, seja para refutar. Para mim, nem cabe escolher: é conduta crítica imperativa na medida em que sou responsável por passar conhecimento teatral.

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Tendo pensado, inicialmente, em quatro artigos, a continuação de nossa pandemia contemporânea trará mais “vertigens” antigas: Vale a pena continuar a explorar os registros artísticos das catástrofes – quase sempre como punição divina: o Êxodo, com as pragas mandadas por Deus ao povo egípcio; o que historiador grego Tucídides  contou, de maneira precisa e com efeitos dramáticos, da peste que atingiu Atenas durante a Guerra do Peloponeso em 430 a.C.; Virgílio narra também outra, em seu poema Geórgias. Petrarca, em algumas de suas cartas,  traz de volta a epidemia de 1348. Por minha forte ligação a Milão, não tenho como não mencionar Alessandro Manzoni que conta a peste na cidade em1630, no seu clássico I Promessi Sposi.

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No original: “Quantunque volte, graziosissime donne, meco pensando riguardo quanto voi naturalmente tutte pietose siate, tante conosco che la presente opera al vostro giudicio avrá grave e noioso principio, sí come è la dolorosa ricordazione della pestifera mortalitá trapassata, universalmente a ciascuno che quella vide o altramenti conobbe dannosa e lagrimevole molto, la quale essa porta nella sua fronte. Ma non voglio per ciò che questo di piú avanti leggere vi spaventi, quasi sempre tra’ sospiri e tra le lagrime leggendo dobbiate trapassare. Questo orrido cominciamento vi fia non altramenti che a’ camminanti una montagna aspra ed erta, appresso la quale un bellissimo piano e dilettevole sia riposto, il quale tanto piú viene loro piacevole quanto maggiore è stata del salire e dello scendere la gravezza. E sí come la stremitá dell’allegrezza il dolore occupa, cosí le miserie da sopravvegnente letizia sono terminate. A questa brieve noia; dico brieve in quanto in poche lettere si contiene; seguirá prestamente la dolcezza ed il piacere il quale io v’ho davanti promesso e che forse da cosí fatto inizio non sarebbe, se non si dicesse, aspettato. E nel vero, se io potuto avessi onestamente per altra parte menarvi a quello che io disidero che per cosí aspro sentiero come fia questo, io l’avrei volentier fatto: ma per ciò che qual fosse la cagione per che le cose che appresso si leggeranno avvenissono, non si poteva senza questa rammemorazion dimostrare, quasi da necessitá costretto a scriverle mi conduco.”