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Vertigem primeira: Pandemia, teatro e vida

Publicado em: 30/03/2020 |

Por Mauri Paroni
Chá e Cadernos 100.24

“O teatro deve ser como a peste, cuja virulência perturba a ordem constituída e dissolve o organismo que ataca, mas dissolve-o em seu cérebro e em seus pulmões, órgãos de que dependem diretamente a consciência e a vontade; é aí que a peste ataca. E a vítima morre sem destruição material, morre de um mal absoluto e abstrato, como o ator, penetrado e perturbado em seus sentimentos. No corpo do ator, como no da vítima da peste, a vida reagiu ao paroxismo, mas nada aconteceu. Teatro e peste são uma epidemia idêntica, uma combustão.” (*)

O trecho acima é do melhor livro sobre o teatro já escrito: “O Teatro e seu Duplo” (“Le théâtre et son double”), do francês Antonin Artaud (1896-1948) – poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro. Anarquista. Ligado ao surrealismo, foi expulso do movimento surrealista por se opor à filiação deste à rigidez ideológica do Partido Comunista Francês.

O escritor francês Antonin Artaud. Foto: Reprodução

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O livro trata principalmente da crise vital do teatro do ocidente e da crueldade – lida como essencial no ser humano. Utiliza a ideia da peste – importante: a sua metáfora teatral – como força destrutiva e regeneradora das ordens pré-estabelecidas, das crenças verdadeiras e falsas dos homens. Desnuda máscaras para compreender plenamente a verdade profunda de existirmos e morrermos no mundo.

“Se o teatro existe para permitir que o recalcado viva, uma espécie de atroz poesia expressa-se através de atos estranhos em que as alterações do fato de viver mostram que a intensidade da vida está intacta e que bastaria dirigi-la melhor” (**)

Publicado em 1938, confere a primazia do corpo sobre o texto e do diretor sobre o autor, num fenômeno estético extremo, numa experiência direta do sagrado. Não nega a ficção, mas erige o teatro como “meio apurado de compreender e exercer a vida”, meio de “quebrar a linguagem para tocar a vida; trazendo a metafísica à mente das pessoas”. […](**).

Artaud influenciou tudo o que vemos no teatro contemporâneo, quando exerceu teatro e vida como uma revelação exterior da crueldade da peste, libertadora de profundas e ocultas energias do ator. Autor de manifestos, trouxe uma visão radical da vida e uma metáfora do teatro incompreendidas. Artista extraordinariamente radical, foi trancafiado num manicômio.

Qualquer linha deste livro parece ter sido escrita pessoalmente para nós horas atrás – senão dita no exato momento presente.

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“Sob a ação do flagelo, os quadros da sociedade se liquefazem. A ordem desmorona. Ele assiste a todos os desvios da moral, a todas as derrocadas da psicologia, escuta em si mesmo o murmúrio de seus humores, corroídos, em plena destruição e que, num vertiginoso desperdício de matéria, tornam-se densos e aos poucos metamorfosearam-se em carvão. Será tarde demais para conjurar o flagelo? Mesmo destruído, mesmo aniquilado e pulverizado organicamente, e queimado em suas entranhas, ele sabe que não se morre nos sonhos, que neles a vontade atua até o absurdo, até a negação do possível, até uma transmutação da mentira com a qual se refaz a verdade. [grifo meu]

Ele desperta. Saberá mostrar-se capaz de dissipar todos os boatos de peste que estão ocorrendo e os miasmas de um vírus vindo do Oriente. […]”

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Abaixo, alguns números de pandemia na história da humanidade que puderam ser registrados sem se perderem na oralidade dos tempos ou na exclusão da narração dominante – o que ocorreu aos pré-colombianos, povos africanos e oceânicos.

Basta dar uma olhada para perceber que o número de mortes diminuiu na relativa proporção do aumento do conhecimento científico e cultural. Os maiores e mais remotos chegaram até nós através da arte. Aos artistas fica a responsabilidade de testemunhar fatos e vivencias. Prefiro, portanto, referir-me a elas como “peste”:

– Peste de Justiniano (541-542): 30-50 milhões de mortes;
– Varíola japonesa (735–737): 1 milhão de mortes;
– Peste negra (1347-1351): 200 milhões de mortes; as estimativas mais conservadoras sustentam que matou 30% da população europeia, as mas mais ousadas dizem que até 60% poderia ter morrido como resultado. O continente levou 200 anos para recuperar seu nível anterior de habitantes, embora algumas regiões, como Florença e arredores, demoraram até o século XIX. ;
– Varíola (1520): 56 milhões de mortes;
– Grandes pestes do século XVII (1600): 3 milhões de mortes;
– Grandes pestes do século XVIII (1700): 600 mil mortes –  foram diversas. Entre elas, a peste russa, de 1770 a 1772: morreram entre 52 mil e 100 mil pessoas;
– Cólera (1817-1923): 1 milhão de mortes;
– Terceira Peste (1855): 12 milhões de mortes;
– Febre amarela (1800): de 100 mil a 150 mil mortes;
– Gripe espanhola (1918-1919): 40-50 milhões de mortes;
– Gripe russa (1889-1890): 1 milhão de mortes;
– Gripe asiática (1957-1958): 1,1 milhões de mortes;
– Hong Kong Flu (1968-1970): 1 milhão de mortes;
– HIV/Aids (1981-presente): 25 a 35 milhões de mortes;
– Sars (2002-2003): 770 mortes;
– MERS (2012-presente): 850 mortes;
– Ebola (2014-2016): 11.330 mortes.

Em próximos artigos, intitulados “Vertigem…”, tentarei comentar e ilustrar o lado mais artístico e necessário de algumas delas.

 

(*) Tradução de M.P.
(**) Antonin Artaud, O Teatro e seu duplo, tradução de Monica Stahel e Teixeira Coelho, Martins Fontes, 2006
(***) Fontes: OMS e Encyclopedia Britannica