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VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Vinicius Torres Machado

Publicado em: 11/09/2025 |

Vinicius Torres Machado, por Bob Sousa

Partindo da tragédia grega e atravessando o pensamento contemporâneo, Filoctetes em Lemnos é uma experiência cênica que transforma a dor em matéria de linguagem. Concebido e performado por Vinicius Torres Machado, sob direção de Marina Tranjan, o espetáculo, que ganha nova temporada no TUSP, convoca o público a habitar a ilha de Lemnos não apenas como espectadores, mas como testemunhas da persistência do corpo ferido. Ao utilizar o mito de Filoctetes — o herói abandonado pelos companheiros por causa de sua ferida incurável — para lidar com a própria experiência de doença, cirurgia e limitação física, Vinicius cria um encontro radical entre mito, autobiografia e presença. O resultado é uma cena sem palavras, em que gesto, espaço, terra, água e objetos constroem uma dramaturgia que interroga o que significa viver com a ferida sempre aberta. Nesta entrevista, buscamos aprofundar os atravessamentos filosóficos, técnicos e políticos que sustentam o trabalho.

 

Bob Sousa – O corpo em Filoctetes em Lemnos é, simultaneamente, um documento biográfico e um dispositivo de ficcionalização. Como você construiu a partitura de ações para que essa sobreposição não se tornasse ilustrativa, mas permanecesse em estado de tensão produtiva entre mito e experiência pessoal?

Vinicius Torres Machado – Essa é uma questão muito importante e que me atormenta como criador: a experiência ilustrativa na cena, que articula mais palavras e ideias do que presenças. Essa possibilidade está sempre rondando uma criação ao se adentrar um tema ou uma pesquisa de linguagem. No que diz respeito ao tema, há o risco de que, na realização de um espetáculo, a cena acabe por se tornar apenas a expressão possível de algo maior que não está ali; uma ilustração colocada ao lado da palavra, da ideia geradora, para melhor explicá-la. Acho que isso atormenta muitos artistas. Isso não quer dizer que haja uma negação do tema, mas me preocupo com o tema para que ele possa ser uma ideia teatral, e não uma ideia transformada em teatro, de maneira que aquilo que se expressa e aquilo que é sejam a mesma coisa. Tenho receio da cena se tornar uma tradução de algo mais puro e complexo porque é feito de conceitos. É uma vontade de deixar a vida que é própria do teatro ser expressa em forma poética. Esse respeito, às vezes, fica mais evidente em alguns trabalhos, enquanto em outros, mais submerso. Então, existem trabalhos que eu dirijo, sendo convidado para dirigir, em que a abordagem do tema e uma clareza do que estamos tratando são importantes. É uma diferença criativa muito produtiva que ocorre no meu caso por não ser diretor de um grupo fixo. Esse passeio como diretor me alimenta. Mas há os trabalhos em que eu posso me investir mesmo como criador de uma poética própria, como é o caso de Filoctetes em Lemnos. Quando comecei a concebê-lo, eu estava acabando de sair de um estudo aprofundado sobre uma ideia posta por Aristóteles de que a cena, embora emocionante, é menos afeita à poesia. Essa ideia tem servido de base para uma crítica a Aristóteles como se ele fosse anti-teatral, o que não é o caso. Seu livro, escrito para uso interno entre seus estudantes, era uma resposta ao desafio colocado por Platão na boca de Sócrates: a tragédia deve existir?  Aristóteles produz uma resposta afirmativa à teatralidade pois permite ver que, na cena, consciência e emoção trabalham integradas. Reconhecimento e peripécia são exercícios de consciência que acompanham os momentos de grande emoção. Assim, a cena não levaria as emoções do espectador para lugares que este mesmo não deseja ir. Mas há ainda um ponto: quando ele fala que a cena é emocionante, mas menos afeita à arte poética que trata (a construção do mito), o adjetivo utilizado no original é psicagogós. Essa palavra foi muito utilizada com relação ao poder de movimentação na alma que a arte e a retórica são capazes. Sua origem, no entanto, é mágica, pois está relacionada a trazer os mortos à vida. Então, pensava nessa possibilidade da cena de invocar a alma dos espectadores, mas, ao mesmo tempo, invocar a matéria: a vida e a matéria da vida. A vida nas coisas que a gente pouco vê. O fato de trazer uma ferida no meu corpo há vinte anos me fazia pensar na capacidade da ferida de mostrar a matéria da vida para além da forma. Mostrar que nós e as coisas não estamos tão afastados. Fazer ressurgir nossa percepção da vida. Então, meu corpo era uma ferramenta para apresentar a matéria. A questão da ferida de Filoctetes em relação à minha ferida tem o intuito de apresentar uma moldura de questões que eu gostaria de tratar. O fato de eu ter passado por muitas situações hospitalares em que você tem que lidar com seu corpo como matéria, como coisa, influencia muito essa percepção da vida. Então, me interessou focar a peça no momento em que Filoctetes fica sozinho na ilha e tem que lidar com a vida ao seu redor. A primeira cena que eu criei foi a calça torcida saindo água. Aquela era uma tentativa de fazer a matéria falar. Ao mesmo tempo, se relacionava com a minha perna; uma delas é mais torcida pelo atrofiamento da musculatura. Mas esse processo de exposição, de se imbricar na obra, não pode ser feito sem um entorno seguro. Eu comecei a realizá-lo com um grupo na Dinamarca, um coletivo chamado Cross Pollination. Lá, como ninguém me conhecia, eu pude me colocar em cena. São 23 anos sem estar em cena. Essa possibilidade de mudar de percurso foi muito importante. Então, quando voltei para São Paulo, convidei minha querida parceira Marina Tranjan para dirigir. Eu já tinha algumas ideias, como a mesa e algumas cenas. Mas precisava de uma artista capaz de receber minha expressão com sensibilidade e criatividade. Essa mediação da Marina Tranjan foi muito importante. Nós trabalhamos muito juntos. É muito lindo para mim, que venho da direção, poder ter um olhar que confio absolutamente e que dialoga comigo.

Bob Sousa – O silêncio da cena opera como linguagem central do espetáculo. Quais foram os critérios estéticos e éticos para decidir o que poderia ser comunicado apenas pelo corpo e pelo espaço, sem recorrer à palavra?

Vinicius Torres Machado – Esse gosto pelo silêncio acompanha minha criação há algum tempo. Posso colocar duas origens: de um lado, o trabalho com a máscara neutra e máscara expressiva inteira que realizei junto de Ésio Magalhães e Tiche Vianna; e, de outro, o trabalho desse gênio do nosso teatro paulistano, chamado Janô Januzelli. Suas aulas me ensinaram a entrar no silêncio para, a partir daí, buscar a expressão. A gente fica muito preocupado em procurar a presença em cena. Nós, que criamos teatro. Ultimamente, eu tenho pensado nessa presença que já está em cena, mas que não conseguimos ver. Quando passamos a escutar o espaço, uma outra qualidade acontece. Não o escutar como a metáfora que sempre utilizamos. É interessante que trabalhamos a escuta como metáfora para a presença e, ao mesmo tempo, nos dedicarmos tão pouco à escuta real. Eu tenho dito que, antes de criar a criação, ou seja, antes de criar o que queremos criar, nós temos que criar o espaço em que se cria. Criar esse espaço em que se cria não é uma formalização, uma rigidez. Mas é uma atenção de que a arte já está presente ali. Nós criamos com a sucessão de presentes, então temos que deixar esse presente acontecer, saber ouvi-lo e depois pintar por sobre ele. É uma operação delicada porque, quando começamos a pintar sobre esse presente, quando realizo um simples gesto, essa percepção do presente me escorrega, porque passo a conectar o que criei com a próxima criação, como se as cenas fossem sequências em uma corrente. Mas perco a tela de fundo, perco o presente. Nesse sentido, o que nos alimenta é a ruptura com a fábula, com a ordenação lógica, para sermos lançados no presente novamente. O trabalho com fragmentos nos permite voltar para o presente e ao realizar uma ação após a outra, o que as une não é o encadeamento, mas o retorno para o presente. Porque o presente da a unidade. É uma vontade de destacar esse fundo para que a arte possa falar mais da vida do que somente do ser humano, que é uma parte dessa vida. O silêncio, de fato, não existe, e com a escuta podemos ir em direção a uma matéria que somos incapazes de captar em sua totalidade. Forçar a escuta até o limite.  Penso muito no conto do Guimarães, São Marcos, que está no Sagarana. Quando aquele personagem começa a ouvir tudo e o desespero que lhe toma. Para mim, o silêncio, que não é silêncio coisa nenhuma, é um volume insuportável. E, nesse caso, toca com a ideia de sublime colocada por Kant na Crítica a Capacidade de Julgar e que me interessa muito. Com a escuta destacada enfrentamos a apreensão de uma matéria tão grande que não temos a capacidade de colocá-la inteiramente na nossa subjetividade. Para Kant o sublime seria o fato de ainda conseguirmos nos lançar à apreensão dessa matéria.Kant não acreditava no sublime na arte; para ele, o sublime era uma expressão da natureza. Mas tenho encontrado na escuta uma possibilidade de acesso ao sublime. Sei que essa palavra diz pouco; todas as palavras que temos para falar da sensação em arte são aproximações que uma determinada época tende a dar para o que o objeto causa: inquietante, belo, sublime…. O silêncio para mim tem o sentido de ir até o limite da percepção. O silêncio abre também o nosso olhar. Não tenho nada contra a palavra; aliás, me divirto muito dirigindo espetáculos com o uso da palavra. Mas, talvez pela minha dificuldade corporal, as possibilidades do corpo também me interessam de uma maneira especial. A Marina Tranjan partilha dessa relação com o corpo. Nós dois tivemos a mesma formação artística; somos da mesma turma de faculdade. Nossa vontade é chegar na carne da vida, nessa crueldade cognitiva de que fala Artaud e que passei a admirar com a Silvia Fernandez, que, junto com Luiz Fernando Ramos, Cassiano Quilici e Christine Greiner, criam um corpo teórico importante para o trabalho com a presença intensiva da cena que nos dedicamos a pesquisar. Eu me filio a essa tradição de pesquisa. Mas não de forma excludente. Acho que estamos, nesse aspecto, em um momento muito bom em que as lutas identitárias foram além da cisão que tínhamos entre o teatro racionalista e irracionalista. Os corpos podem agora se apresentar. Esse foi um caminho que se abriu. Se existe o risco – e é claro que, como sempre, toda a criação possui – de que a cena vire um lugar de apresentação de virtudes a partir de discursos, a cena tem em seu potencial a possibilidade de apresentar uma presença imediata destacada. Mas para isso os corpos precisam realmente se apresentar. Os corpos negros fizeram, nas últimas décadas, uma virada copernicana no teatro paulistano, em que, a partir desta virada, outros corpos puderam se revelar também. Vemos assim uma multitude de presenças. Houve, obviamente, um ganho político no teatro, mas também um ganho estético no que diz respeito à presença. Acho que meu trabalho é uma pequena contribuição a esse ganho estético, a partir de um corpo branco, obviamente privilegiado, mas que possui cicatrizes do real, cicatrizes derivadas tanto do terror do câncer quanto da saúde pública no Brasil e, portanto, um corpo com profundas marcas da realidade viva.

Bob Sousa – O espetáculo expõe o corpo em sua vulnerabilidade, mas evita cair na espetacularização da dor. Como você pensou o equilíbrio entre a exposição radical de si e a criação de um campo ético que convida o público à contemplação e não ao voyeurismo?

Vinicius Torres Machado – Eu acho que Filoctetes pode, às vezes, cair inevitavelmente em uma espetacularização da dor. Isso me chateia muito. Quando nos apresentamos no SESC Pompeia em julho de 2025, na nossa estreia, houve uma grande quantidade de apresentações em que estava com a coluna travada. Eu precisei de ajuda para ir até a cadeira e esperar o público sentar. Mas houve um dia em especial em que eu estava com muita dor. Como fizemos o trabalho sem verba nenhuma, não queria cancelar a peça; queria muito poder pagar todas as pessoas que contribuíram e ter uma verba mínima para a nossa temporada no TUSP. Então, me apresentei com muita dor. Senti, depois do espetáculo, que ele tocou o melodramático. Acho que essa aceitação de que, às vezes, a obra lhe escapa é algo importante para uma pessoa artista de teatro. Quando vamos para alguns limites, poucas coisas nos seguram dentro da zona artística que queremos manter. Fazer arte no limite é muito arriscado, porque às vezes expressamos exatamente o que não queríamos. Isso porque o teatro é essa arte da presença e o olhar da plateia puxa outras construções de signos. Falar de um espetáculo é escolher um espetáculo, em geral, e tentar me aproximar dele. Fico muito feliz com as pessoas que viram o espetáculo sem um voyeurismo. Quando conseguimos criar essa dinâmica de contemplação. Mas nem sempre é assim. Obviamente, temos alguns recursos. Procuramos muito evitar o impacto de uma busca por radicalidade característica do contemporâneo. Estávamos sempre muito ligados no simples e no movimento simples. Mas, quando você está com a coluna travada e já sem conseguir mexer a perna direita completamente, talvez algo em mim queira mostrar a minha doação para a plateia e, infelizmente, isso pode atrapalhar a percepção. Acho que todo desafio está naquilo que Grotowski coloca, na diferença de se fazer em frente à plateia e para a plateia. Qualquer zona de manipulação de emoção e percepção da plateia é muito perigosa para nós, mas, ao mesmo tempo, sabemos que estamos ali, no limite de um território que às vezes falha.

Bob Sousa – A cenografia de Eliseu Weide cria um espaço de isolamento e suspensão temporal. Como você pensou o diálogo entre corpo, terra, água e objeto, de modo que a visualidade se tornasse extensão da dramaturgia e não apenas contexto cenográfico?

Vinicius Torres Machado – A relação com os objetos e os materiais é fundante na minha prática artística. Eu tenho um estudo sobre isso que resultou no livro  A Cena em Devir, que trata justamente dessa relação com os materiais. Tem algo fundante aí que não é especificamente da linguagem teatral, mas da minha vida. Acho que da relação que tenho com as coisas, muito ligada à minha experiência com a morte, com o câncer  muito agressivo que tive aos 22 anos, e que me fez perder alguns movimentos. Eu fiquei apaixonado pela vida, pelas coisas da vida, pelos materiais. É engraçado você pensar em algum momento que não vai mais poder tocar o azulejo do banheiro. Esse azulejo vira a vida. Você e ele experienciam a vida ao mesmo tempo. Nosso contato cria a vida. A minha vida não está isolada em mim; está na experiência de estar vivo, de levantar, de colocar os pés no chão. Essas coisas simples que, quando você fica hospitalizado, aprende a perceber. Eu tive, então, essa mudança de chave aos 22 anos, mas não tinha quem me acompanhasse na minha vontade artística. Foi só quando encontrei o Eliseu Weide que a coisa toda foi tomando forma. Ele tinha trabalhado no Berliner Ensemble e tinha um tratamento para os materiais que nunca tinha visto. No espetáculo que criamos, A Porta, a contribuição dele foi o que certamente me ajudou a me lançar como diretor, a conseguir algum espaço mínimo de reconhecimento em São Paulo para continuar vivendo aqui com o meu trabalho. Então, eu trabalho com o Eliseu há muitos anos e nossa estética vai se moldando juntos. Ele é a minha maior parceria de teatro nesses anos. Em Filoctetes em Lemnos, tivemos ainda um ganho muito grande nessa pesquisa com a materialidade que foi o encontro com Beatriz Mendes. É difícil definir a sua função e, entre nós, chamamos de pesquisa de materiais. Essa pesquisa com materiais tirou a matéria da representação teatralizada para trazê-la a um encontro mais real. Buscando as potencialidades efetivas dos objetos. Nosso trato com aqueles poucos objetos é muito especial. Para se ter uma ideia, ficamos muitos meses pensando como seria aquela mesa. A Beatriz trazia propostas e nosso imaginário ia avançando. Nossa mesa virou uma amiga. Quando o Eliseu fez a mesa e entramos nela, foi uma grande alegria; essa mesa maciça que desafia meu corpo. Pesquisamos, então, todas as possibilidades dos objetos, o som da mesa, a sua inclinação para a queda de água etc… O copo que temos sabe dançar, que nem um passarinho. Descobrimos isso um dia, pesquisando com o objeto. Os objetos não são ilustração; talvez seja isso que queira dizer. Os objetos são ali a experiência de estar vivo. A Beatriz Mendes cuida desses objetos. Acho que encontramos aí uma parceria para anos de vida. Junto da Beatriz, temos pensado o que é essa cenotecnia do teatro contemporâneo em que o real está muito evidente. Isso faz parte da pesquisa de doutoramento dela. Eu acho que ela faz essa parceria com o Eliseu lindamente, com um respeito pela criação do cenógrafo e uma valorização das coisas. Ontem, estávamos marcando os objetos no espaço: eu, Luane (assistente de direção) e Laura (coordenação de movimento). Ficamos muito tempo decidindo os centímetros dos objetos, pois eles estão todos relacionados ao meu corpo. Quanto eu devo esticar o braço para pegar o copo e esse gesto ser visível para uma plateia  disposta em uma nova arquibancada, diferente do Sesc Pompeia, agora mais inclinada. É tudo feito com muito cuidado, como se fossem estações. Ao me relacionar com aqueles objetos, eu vou percebendo a vida. Vou tocando a vida. A terra sob meus pés foi uma ideia da Marina Tranjan. Pensávamos muito nessa ilha. Na ilha de Lemnos onde Filoctetes é abandonado. Quando piso na terra, meu corpo se altera. Eu não tenho muita sensibilidade na perna direita; é tudo um pouco alterado. Às vezes, sinto como dor insuportável uma pedrinha, e às vezes posso queimar o pé sem perceber. Acho que isso é fundamental dizer, porque eu tenho uma sensação viva no corpo muito alterada e isso destaca minha relação com as coisas. Tenho pensado muito nisso, em como essa relação invertida também me trouxe uma relação invertida para a criação artística. A desconstrução que se vê na dramaturgia, a falta de relações causais e de objetivos definidos, acho que tem raízes no meu corpo; na minha forma desconstruída de sentir o mundo. É engraçado quando você tem uma perna que está sempre naquele estado de dormência; ela também é um pouco um objeto para você. É isso o que acontece comigo. Eu, às vezes, me sinto parte do mundo das coisas.

Bob Sousa – Em O que vemos, o que nos olha, Didi-Huberman propõe que a imagem nos interpela e nos devolve o olhar. Como você compreende essa relação no espetáculo, considerando que o público decide o momento de sair e que a cena persiste mesmo quando não é mais vista?

Vinicius Torres Machado – Eu achei muito interessante quando, em sua crítica ao trabalho, você citou o livro de Didi-Huberman. Sem dúvida, uma das grandes referências contemporâneas sobre o nosso encontro com a imagem. O espetáculo Filoctetes em Lemnos tem uma relação com a espectação muito pensada, e sua pergunta revela isso. O peso do olhar é mola propulsora do trabalho. Já faz algum tempo que tenho trabalhado com alguns laboratórios de atuação em que uma pessoa vai para o centro do palco e sente o peso da observação do público. Essa pessoa tenta não fazer nada e, por isso, o grau de exposição vai se adensando, e o nosso olhar vai se adensando. Nós, no teatro, criamos muitas coisas no espaço. Nosso desejo de criação de vida é, muitas vezes, a vontade de dar expressão a essa vida mais intensa que a gente sente e que não consegue expressar na realidade. Estranhamente, muitas vezes, voltar para o real, na tentativa de des-teatralizar o objeto, pode ainda revelar muitas teatralizações. Novamente, é Grotowski quem nos ensina isso: as imagens de nós mesmos que criamos. Pelo menos foi um pouco assim que eu entendi. No palco, quando se tem o objetivo de não fazer nada, tanto quem está em cena quanto quem observa percebe as máscaras que nos encobrem. A gente usa costumeiramente essa palavra “máscara”, mas ela é muito genérica. São pequenos movimentos que nos escondem e que nos revelam: uma maneira de colocar o olhar, um sorriso. Acho que você, Bob, deve ter uma capacidade enorme para ver isso. Então, a questão é: o que fazer para retirar essas pequenas tensões? Chegou um momento na minha prática como diretor em que eu não me sentia mais tão à vontade de fazer esses laboratórios com os outros. Eles iam evoluindo para brincadeiras como cantar baixinho, fazer o rosto de quando chora, etc. Mas eu sentia que estava expondo as pessoas e não necessariamente era o que elas queriam. No espetáculo Filoctetes em Lemnos, eu resolvi fazer essa exposição comigo mesmo. Resolvi ser eu a base desses laboratórios. Então, ia para a sala de ensaio para me expor. Nesse processo de se expor, o peso do olhar do público é fundamental. É fundamental sentir que estou sendo observado. Eu observo vocês me observando. E é a partir dessa situação constrangedora, que a gente tende a pular normalmente quando vamos para a cena, criando coisas que impeçam que a gente seja visto, é nesse lugar,  que tenho vontade de que a peça aconteça. Eu não vejo necessariamente a plateia durante a peça, pois a luz não permite. Mas meu exercício é ouvir a plateia. Tudo que faço é influenciado pela plateia. Se uma pessoa arrasta a cadeira, aquilo mexe comigo. O fato de estar nu teve um pouco esse sentido de realçar minha exposição. Realçar o fato de que de fato estamos olhando. Não é algo fácil estar nu nesse trabalho, mas também não é algo fácil observar um corpo nu. A relação com a observação dos corpos é muito forte no Brasil, mas são determinados corpos e em busca de uma estrutura que se mantenha. Temos atualmente uma cultura de academia que está moldando os corpos de maneira muito semelhante. E todos nós ficamos um pouco submetidos a isso. Mesmo quando a nossa atitude é negar. Estranhamente, o que me constrange as vezes que vou entrar em cena, não é a minha perna que atrofiou, mas a minha barriga. O que nós fizemos da barriga? Criamos esse monstro dentro de nós de um ser humano que não pode ter barriga. Tenho medo desse ideal de corpo que criamos e como estamos deixando ele entrar na cena, de maneira que não conseguimos mais ver os corpos. Isso parece ser coisa pouca, mas me movimentar para a apresentação. Eu me preocupo em apresentar o corpo para uma nova vivência. Habitar nossos corpos está muito difícil ultimamente. Então, eu apresento esse corpo cortado e fora do padrão para retomarmos o nosso olhar. E a partir do olhar do público pode tornar público esse corpo privado, que fica escondido debaixo da calça. Às vezes, antes de entrar em cena, eu penso: “vou dar a oportunidade de verem meu corpo se mexendo”, para tentar tirar de mim aquele fantasma que quer conquistar a plateia, fazer algo legal. Faço algumas posições para que meu corpo seja visto em novos cortes. Novas formas. Tudo isso sem perder o peso do olhar de uma plateia. No fim do espetáculo nós nos encontramos, eu observo vocês me observando e retomamos juntos a possibilidade do olhar. Por isso não tenho vontade do aplauso. Eu não queria que a peça terminasse com um corte e que caissemos novamente  na realidade. Nós buscamos que a realidade fosse entrando na peça e todos nós sentíssemos que esse olhar que desenvolvemos pudesse continuar. Busco muito um olhar que ainda seja toque. Nosso olhar pode tocar a matéria? Tudo isso foi muito discutido no processo. Esse adensamento da percepção tinha que estar com a plateia ao final e não ser apenas algo meu, que eu manipulo. Essa é, para mim, a cena final de Filoctetes, quando ele entrega suas armas. Eu sentado ali entrego essa sensação de espaço para nós. Fico desarmado porque entrego o teatro que me encobria.

Bob Sousa – A ferida, no mito de Filoctetes, é, ao mesmo tempo, limite e destino. Na sua leitura cênica, ela se torna motor de criação. De que maneira o trabalho problematiza a ideia de cura e propõe uma política do corpo ferido, que não se resolve, mas insiste em permanecer visível?

Vinicius Torres Machado – No final do espetáculo, entregamos uma plaquete para a plateia: um livrinho em que eu conto um pouco da minha história com meu corpo, o comecinho da minha história com o câncer que tive. Escrevi esse texto no ano passado durante uma internação. Estava preparado para ir à noite encontrar os amigos e comemorar meu segundo aniversário quando precisei ser internado. Comemoro dois aniversários todos os anos; o segundo é do dia em que operei. Quando mostrei o livro para Luiz Fernando Ramos, ele me sugeriu entregá-lo no final do espetáculo. A Marina Tranjan também topou. Ele não foi escrito para a peça; é algo paralelo. Mas muita gente vê nele uma certa explicação em palavras, porque as palavras parecem existir para explicar. Algumas pessoas não gostam exatamente por esse caráter explicativo da palavra. Nosso interesse nunca foi explicar, mas achamos interessante que o espetáculo continuasse no dia seguinte, caso as pessoas se sentissem curiosas para ler. O Cassiano Quilici, quando foi ver o espetáculo, escreveu para mim sobre essa ferida que é a própria peça e que se mantém aberta. Acho que, se o espetáculo é recebido como essa ferida, eu gostaria de deixá-la aberta, para que pudéssemos ver a vida. Acho que o espetáculo em si é um corpo.

 

Agradecemos ao TEATROIQUÈ, do produtor Rica Grandi, pela acolhida e cessão do ambiente onde realizamos o ensaio fotográfico que acompanha esta entrevista.