
Victor Nóvoa, por Bob Sousa
Memória, identidade e urgência ecológica atravessam Macuco, espetáculo que estreia no Sesc Pinheiros com dramaturgia de Victor Nóvoa e direção de Luiz Fernando Marques (Lubi). A peça acompanha a jornada sensível e política de Sebastião, um entregador de aplicativo que, ao sonhar com um incêndio na ilha onde nasceu, é convocado a retornar ao passado, à terra natal e às marcas da exclusão que o atravessam. A encenação articula linguagem audiovisual, narrativa onírica e forte componente afetivo para tratar de questões estruturais como a destruição da Mata Atlântica, o apagamento das comunidades tradicionais e as violências sofridas por corpos dissidentes. Nesta entrevista, Victor Nóvoa reflete sobre o processo criativo, o gesto de fabular a partir da memória e o papel do teatro frente às crises ambientais e sociais do presente.
Bob Sousa – Macuco entrelaça questões socioambientais com a trajetória íntima de uma personagem em crise. Como foi o processo de construir uma dramaturgia que articula memória pessoal, crítica política e fabulação?
Victor Nóvoa – Em geral, minhas dramaturgias nascem de alguma memória particular, ou situação que vivi, mas só essa experiência não me basta. Me aprofundo nessa memória, pesquisando os contextos sociais vinculados a ela e quais questionamentos faço aos tempos de hoje, a partir dessa memória. Em Macuco, meu esforço de artista era olhar para todo o material biográfico que pesquisei para mergulhar num debate público. Alguns pontos de intersecção se abriram: como a cultura caiçara e parte preponderante da mata atlântica foram destruídas, transformando este território em espaços com grandes investimentos privados no turismo, expulsando as comunidades caiçaras da região? Sempre formulo minhas dramaturgias a partir de perguntas e duas delas me orientaram na criação desta dramaturgia: Como a racionalidade capitalista apaga as experiências coletivas de socialização de comunidades tradicionais? Qual a relação entre disputa por terras e o novo regime climático em que vivemos? O contorno temático estava delineado, mas queria que a estrutura narrativa dessa história não fosse linear, e se apresentasse de forma espiralar, em que as subjetividades, afetos e memórias das personagens fossem trançadas com as questões sociais. Assim, poderia trazer esses debates políticos, despertando também na pessoa espectadora a sensibilidade, o desejo por relações mais afetivas e amorosas. Por entre os fios desta história, há o mais profundo amor que as personagens sentem umas pelas outras e por seu próprio território.
Bob Sousa – O espetáculo traz à cena uma figura historicamente invisibilizada: um homem que trabalha como entregador e é atravessado por múltiplas camadas de exclusão. Como essa escolha se relaciona com seu entendimento de representação e justiça social no teatro?
Victor Nóvoa – Na dramaturgia, há uma relação homoafetiva entre dois jovens que ocorreu no passado e que segue sendo muito importante para o protagonista. Além deste recorte, o texto traz marcadores territoriais, de idade e classe social. É de extrema importância que o teatro busque criticar as estruturas patriarcais, racistas e neoliberais em que vivemos. Para isso, é preciso que nossas obras reflitam sobre estas temáticas, trazendo à cena os corpos que são acometidos por estas violências históricas.
Bob Sousa – A imagem da revoada de macucos funciona como metáfora e também como alerta. De que forma a presença dos pássaros — reais e simbólicos — estrutura o tempo e o ritmo da peça?
Victor Nóvoa – Todas as personagens desta história correm risco de extinção, por isso elas se juntam e fortalecem seus laços afetivos para se colocarem em estado de luta. Queria que esta história tivesse o ponto de vista de um ser não humano que fosse abundante na mata atlântica e que hoje sofre risco de extinção. O exercício de imaginação que faço é bastante trabalhoso, desafiador e prazeroso. Como trazer o olhar de um pássaro em extinção para a cena e fazer com que este olhar transforme a narrativa da história? Para mim, tema e conteúdo são fios de uma mesma trança. Trazer a narrativa dos Macucos é também um exercício ficcional de questionar nossas formas de contar histórias.
Bob Sousa – A dramaturgia tem como base memórias familiares e histórias do bairro Macuco, em Santos. Como foi o desafio de transformar experiências pessoais em uma narrativa compartilhável e politicamente engajada?
Victor Nóvoa – Toda minha família nasceu – e grande parte dela ainda vive – em um bairro portuário, que antes se chamava Macuco e agora Estuário. Na época da minha mãe, o bairro vivia uma realidade vinculada à terra e à pesca, hoje a cidade já transformou esta realidade. Mas a dramaturgia não trata exatamente do bairro, e sim das lutas históricas do povo caiçara e como o bioma da Mata Atlântica segue sendo ameaçado de destruição. Em Macuco, parti de uma memória que me assombrava desde criança: um jovem (meu avô) vai embora da ilha em que nasceu, uma comunidade tradicional de pescadores, atravessa quilômetros de mar aberto em uma canoa de voga (embarcação caiçara), constrói sua vida no continente, trabalhando de forma precarizada, muitas vezes em situações análogas à escravidão e decide nunca mais falar sobre sua juventude nesta ilha. Como foi este imenso percurso no mar? Por que saiu da ilha? Fugiu? Por que não fala de sua juventude? Como conseguiu sobreviver? Como era a ilha em que nasceu? Como está a ilha agora? Estas perguntas me moveram a entender como a história do meu avô dialogava com a questão urgentíssima das disputas por terras e a destruição dos biomas naturais do Brasil.
Bob Sousa – Em tempos de crise climática e avanço da especulação sobre os territórios tradicionais, o teatro ainda é capaz de convocar o coletivo para o enfrentamento? Qual o lugar da arte nesse embate?
Victor Nóvoa – Vivemos um mundo extremamente individualista e mercantil, onde as relações humanas são atravessadas pelo interesse neoliberal. Lógico que esta racionalidade hegemônica também influencia os sujeitos históricos que trabalham com teatro e arte. Mas ao mesmo tempo, o teatro segue sendo um importante centro irradiador de questionamentos que nos ajudam a viver em um mundo mais justo e feliz. Penso ser urgente trazermos ao foro público do teatro, discussões socioambientais e aprendizados sociais com comunidades tradicionais e/ou originárias, pois elas seguem há muitos anos se relacionando harmonicamente com o meio ambiente em que vivem e propondo formas mais coletivas de pensar e sentir o mundo.