
Vanessa Goulart, por Bob Sousa
À frente da direção de “Gertrude, Alice e Picasso”, em cartaz no Ágora Teatro até 29 de agosto, Vanessa Goulartt convida o público a mergulhar em um jogo cênico instigante e delicadamente construído. Com texto de Alcides Nogueira, a peça propõe um encontro inusitado entre a escritora Gertrude Stein, sua companheira Alice B. Toklas e o pintor Pablo Picasso, entrelaçando realidade e imaginação na Paris efervescente dos anos 1920. Mais do que uma recriação histórica, o espetáculo é um exercício de liberdade criativa, onde passado e presente se contaminam em reflexões sobre arte, memória e identidade. Sob o olhar sensível de Vanessa, essa convivência ficcional entre ícones culturais adquire contornos de manifesto sobre o poder da arte em tempos líquidos e urgentes. Nesta conversa, ela nos conta sobre os caminhos da encenação, os desafios de trabalhar com personagens reais e os sentidos do tempo no palco.
Bob Sousa – “Gertrude, Alice e Picasso” propõe um encontro atemporal entre figuras históricas reais. Como foi o processo de transpor esse jogo de ficção e realidade para a linguagem cênica, sem cair em caricaturas ou simples reconstruções?
Vanessa Goulart – Dar vida a Gertrude, Alice e Picasso foi como montar um quebra-cabeça, onde cada peça vinha de um tempo diferente, mas todas falavam conosco no presente. O texto do Alcides Nogueira já oferece esse jogo refinado entre realidade e invenção — então nosso desafio, na encenação, foi justamente acolher a liberdade criativa, sem desrespeitar a densidade dessas figuras históricas.
Não nos interessava reproduzir uma espécie de “docudrama vintage”. Também não queríamos cair na armadilha da caricatura — afinal, seria um desperdício de tempo e talento transformar pessoas tão complexas em meras imitações. A busca foi por uma verdade cênica: quais aspectos dessas personalidades ainda reverberam hoje? Que Gertrude, que Alice, que Picasso existem em nós, artistas e público de 2025?
A chave foi trabalhar na fronteira. O tempo da peça é a década de 1920, mas o espírito dela é absolutamente contemporâneo. Brincamos com anacronismos como quem mistura tintas num quadro cubista — e assim encontramos uma linguagem que não quer “parecer com”, mas “conversar com”.
No fim das contas, o palco virou esse espaço-tempo generoso, onde Gertrude Stein ainda escreve, Alice B. Toklas ainda ama e cuida, e Picasso ainda provoca — tudo isso através de corpos, vozes e coragem de artistas extremamente talentosos. E isso, pra mim, é teatro.
Bob Sousa – A montagem costura passado e presente de forma poética e fragmentada. Como essa costura temporal influenciou suas escolhas de direção – em especial no ritmo, na estética e nas atuações?
Vanessa Goulart – Essa costura entre passado e presente foi, na verdade, o fio condutor de todas as minhas decisões como diretora. Gertrude, Alice e Picasso é, por essência, um tecido de tempos — e a mim coube a costura com pontos ora delicados, ora assimétricos, como numa colcha de memórias e delírios.
No ritmo, isso se traduziu em uma fluidez quebrada, propositalmente fragmentada, como se o tempo se dobrasse sobre si mesmo. Há momentos em que o silêncio é mais potente que o texto, e outros em que as palavras disparam como se fugissem da cronologia. Quis que o público sentisse essa dança entre épocas, como quem navega por dentro de uma pintura cubista.
Na estética, busquei referências que não ficassem presas a um realismo datado. O cenário, os figurinos e a luz dialogam com o século XX, mas não se fecham nele — são evocativos, mais do que ilustrativos. Não é uma Paris de cartão-postal: é uma Paris imaginada por dentro da mente desses personagens e por dentro do nosso olhar de hoje.
E nas atuações, o principal foi encontrar a alma desses ícones sem transformá-los em estátuas. Trabalhamos a escuta, a respiração entre as falas, os afetos. Quis ver a humanidade por trás dos mitos. Porque, no fim, essa costura de tempos é, na verdade, uma costura de camadas: da arte, da memória, do desejo e daquilo que permanece vivo — apesar (ou por causa) do tempo.
Bob Sousa – Em um tempo em que a arte frequentemente se vê pressionada pela velocidade e pela superficialidade, que tipo de resistência ou permanência você acredita que esse espetáculo oferece ao espectador contemporâneo?
Vanessa Goulart – Vivemos uma época em que tudo precisa ser rápido, viral, performático — até o silêncio parece ter que gritar para ser notado. Nesse cenário, montar Gertrude, Alice e Picasso foi um ato de resistência estética e afetiva. A peça convida o espectador a desacelerar, a mergulhar em camadas, a escutar o que não é imediato.
Ela oferece permanência justamente por não se render à pressa. É uma experiência que exige presença, atenção, entrega. E talvez por isso mesmo ela seja tão necessária. Porque fala de amor, de arte, de pensamento — e faz isso com poesia, mas também com humor, com humanidade.
Ao ver esse trio no palco — figuras que atravessaram o tempo e ainda nos cutucam —, o espectador é lembrado de que a arte não precisa competir com a velocidade do algoritmo. Ela tem outro tempo. O tempo do afeto, da memória, da criação. E é nesse tempo que a peça se instala. Com delicadeza, mas com firmeza.
Acredito que esse espetáculo oferece um respiro. E, hoje em dia, respirar já é um ato político.
Bob Sousa – Você divide a cena da criação com uma figura muito próxima: sua mãe, Bárbara Bruno. Como foi essa troca entre diretora e atriz, filha e mãe, dentro do processo criativo? Houve momentos em que essas fronteiras se embaralharam?
Vanessa Goulart – Dividir a cena da criação com a minha mãe é sempre um presente — e um desafio delicioso. Trabalhar com a Bárbara Bruno é, antes de tudo, trabalhar com uma atriz imensa, generosa, rigorosa e absolutamente entregue. Mas, claro, é também estar com a minha mãe, o que traz camadas que nenhuma oficina de direção ensina a lidar.
A troca foi intensa e verdadeira. Houve escuta dos dois lados, e uma admiração mútua que atravessa o profissional e o pessoal. Talvez o segredo tenha sido justamente não tentar separar demais os papéis. Em vez disso, deixamos que essa mistura alimentasse o processo, enriquecesse a criação.
No fim das contas, acho que o palco é o nosso ponto de encontro desde sempre. É onde somos mãe e filha, mas também colegas de ofício — duas mulheres apaixonadas pela arte e dispostas a atravessar o tempo, as cenas e os afetos, juntas.