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VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Ruy Cortez

Publicado em: 05/08/2025 |

Ruy Cortez, por Bob Sousa

Diretor e pedagogo com mais de duas décadas de atuação na formação de atores, Ruy Cortez é um dos fundadores da Companhia da Memória, núcleo que retoma em 2025 sua vertente pedagógica com o programa SISTEMAS EM PERSPECTIVA. No Laboratório Stanislavski, Cortez conduz, ao lado de Ondina Clais, um mergulho nos fundamentos e desdobramentos do sistema criado por Konstantin Stanislavski, com foco na análise ativa, nas ações físicas e na criação de personagens por meio de études. O curso, voltado a profissionais das áreas de atuação e direção teatral, será realizado presencialmente na Casa de Liège, em Pinheiros, entre 11 de agosto e 30 de setembro, sempre às segundas e terças, das 19h às 22h. Nesta entrevista, Cortez fala sobre a potência formativa do sistema stanislavskiano, sua aplicação ao teatro e ao audiovisual e a importância de reviver os espaços de pesquisa e transmissão do conhecimento teatral.

 

Bob Sousa – A Companhia da Memória retoma agora sua vertente pedagógica com os laboratórios de atuação. Como essa retomada se articula com a história e os princípios fundadores da Companhia? Em que medida o ensino do sistema de Stanislavski se renova neste novo ciclo de formação?

Ruy Cortez – Em 2016, a Companhia da Memória abriu o seu Estúdio de Atuação, um espaço de laboratório  regular para a pesquisa do trabalho do ator e do diretor, inspirado pelos estúdios russos que se proliferaram na Rússia a partir da década de 1920 e que foram centros de pesquisa e inovação da arte teatral. Em 2016, a realidade paulistana era outra. Ninguém do teatro aqui abria cursos, eram experiências muito pontuais. Tinham as escolas de teatro e pronto, era esse o cenário. Lembro que parte da classe até olhava enviesado. Hoje quase todo mundo dá curso. Nosso Estúdio funcionou até 2020, hoje pensando acho que foi meu Mestrado na USP que me afastou do trabalho da investigação prática. Ficamos cinco anos sem abrir, mas agora com o Mestrado entregue dá até para voltar com uma contribuição teórica mais decantada. E também enriquecida pela intensa atividade de criação que temos vivido nos últimos tempos. A companhia amadureceu e queremos compartilhar esse conhecimento adquirido.

 

Bob Sousa – A análise ativa e a prática de études são ferramentas centrais no seu trabalho. Como você articula essas práticas no laboratório, de modo que não se tornem exercícios formais, mas estruturas capazes de gerar experiência cênica viva?

Ruy Cortez – O Estúdio não é e nem pode ser uma sala de aula maçante. A gente aprende e desenvolve técnica criando. Eu encaro a aula como ensaio, com os mesmos desafios que eu me coloco quando estou dirigindo profissionalmente. Por isso eu sempre trabalho com uma obra teatral como base do trabalho de investigação da arte do ator e do diretor. Já trabalhamos nos Estúdios com Nelson Rodrigues, Federico Garcia Lorca, Tchékhov. Agora vamos trabalhar com Shakespeare, Romeu e Julieta. Técnica é meio, nunca é fim em si mesma. Ao procurar os meios para criar, para abrir cenicamente uma obra artística é que surge a necessidade da técnica. E também a técnica sempre tem de passar pelo crivo da cena. Não adianta uma técnica ótima se a cena é ruim, o teatro que sai é ruim. Então é uma coisa viva.

 

Bob Sousa – A criação de personagens dentro do sistema de Stanislávski envolve uma delicada articulação entre ação física e imaginação. Como você orienta esse trânsito para que o intérprete não recaia em uma psicologização ou ilustração emocional da cena?

Ruy Cortez – Tem um capítulo muito importante no Stanislávski que fala sobre a perspectiva do ator e da personagem e que trata das duas instâncias simultâneas que acontecem no trabalho do ator em cena, a de marionete e a de marionetista. São processos concomitantes de aproximação e distanciamento e que estão em vários tratados da arte do ator, não é uma exclusividade de Stanislávski, aparece em Zeami, Diderot, Brecht, Artaud, etc… Mas o que marca a individualidade de Stanislávski neste quadro é o fato de que a escola russa foi a única que se propôs a resolver os problemas de identificação do ator com a personagem nesses processos. Então eu abordo isso, mas também trago a contribuição de Anatoli Vassiliev que a partir de Maria Knébel, desenvolveu muito o Sistema para fora dos limites do psicologismo. O ator criador, compositor, ou marionetista é uma instância muito importante também para Stanislávski e para a escola russa, mas muito pouco conhecida no Brasil, dada a enorme influência da vertente americana do Sistema por aqui. Mas o nosso curso aborda todos esses pontos, sempre com a existência da teoria lógico, mas imediatamente na experiência prática. Porque o ator tem que entender essas dimensões atuando, diretamente na cena, com elas acontecendo ao mesmo tempo. É como dirigir um carro e contemplar a paisagem. No começo não dá para fazer as duas coisas ao mesmo tempo, você pode provocar e sofrer um acidente. Mas uma hora dá para fazer as duas coisas juntas, elas não são excludentes. Mas também em termos técnicos, você só consegue juntá-las no momento do ato em si e não através de um entendimento intelectual. É o elán como diria Grotowski, essa mágica orgânica que de repente acontece, e que explica e resolve toda a equação, mas por uma caminho que não é exclusivamente intelectual.

 

Bob Sousa – No contexto atual, em que a atuação audiovisual muitas vezes exige tempos e registros distintos do teatro, como você adapta os princípios stanislavskianos para que mantenham sua eficácia e organicidade nesses dois campos? 

Ruy Cortez – Quando o ator aprende a base, a gramática desse ofício, ele é percebido como um profissional, aquele que domina a sua profissão. O problema no Brasil é que os atores acham que aprenderam a atuar, mas na verdade a maioria deles está só representando. E mal. E o Stanislávski que a gente ensina no nosso Estúdio redireciona esse ator para fora dessa imitação barata, dessa representação, para uma atuação viva, para um domínio da ação cênica viva. O Raul Cortez, meu tio, meu mestre e um dos maiores atores audiovisuais deste país, era totalmente stanislavskiano. Ele dizia por exemplo que no cinema, era preciso atuar no nível mais profundo, aquele da alma. E alma, é um conceito stanislavskiano central no Sistema. Mas precisa entender isso na prática. E é isso que procuramos ensinar para os atores e os diretores no nosso Estúdio.