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VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Ronaldo Serruya

Publicado em: 14/08/2025 |

Ronaldo Serruya, por Bob Sousa

Em CHECHÊNIA: um estudo de caso, Ronaldo Serruya leva ao palco um dispositivo cênico que mescla palestra, ficção e autobiografia para investigar os mecanismos da homofobia institucional no Brasil e no mundo. Inspirado pelas notícias sobre prisões exclusivas para homossexuais na República da Chechênia, o artista constrói uma distopia que dialoga diretamente com suas memórias de infância queer em uma família tradicional judia. Entre realidade e imaginação, o trabalho convida o público a refletir sobre como diferentes territórios podem compartilhar a mesma fronteira simbólica quando se trata de opressão. A encenação, que integra o Projeto Teatro Mínimo no Sesc Ipiranga, aposta na proximidade com a plateia e no uso de recursos audiovisuais para provocar, tensionar e reinventar narrativas. Nesta conversa, Serruya aprofunda as motivações, escolhas e implicações dessa nova obra.

 

Bob Sousa – A peça parte da pergunta “Quantas Chechênias existem no Brasil?”. De que maneira essa provocação atravessou sua escrita e moldou a construção dramatúrgica?

Ronaldo Serruya – Acredito que essa pergunta é uma das teses centrais da peça. Pra mim só fazia sentido criar um trabalho a partir de uma realidade na Chechênia se eu pudesse de alguma forma relacionar isso com o Brasil. E na peça isso se dá a partir da ideia de similaridade, um conceito que inclusive é esmiuçado na dramaturgia . Então a comparação vai se dando por semelhanças e diferenças. Posso dizer que o meu desejo é que as pessoas possam se perguntar: porque acreditamos que essa realidade vista na Chechênia é algo tão distante de nós? No Brasil, os limites dessa violência institucional estão borrados. Aqui o Estado não “mata”, mas deixa morrer. A necropolítica, para existências LGBTQ, é real no Brasil.

Bob Sousa – Você tem pesquisado o formato de peça-palestra desde “A doença do outro”. Quais elementos deste formato se revelaram mais potentes para tratar de um tema tão urgente como a homofobia institucional?

Ronaldo Serruya – Pra mim o que mais interessa na ideia da peça-palestra é estabelecer o que tenho chamado de “uma dramaturgia da conversa”. Construir no percurso da dramaturgia a reflexão sobre algo (no caso aqui a homofobia institucional) que vai se desdobrando em camadas, onde uma coisa puxa à outra como se o fio da meada fosse sendo desenrolado ali na cena.

Ronaldo Serruya – Tem também o uso dos elementos reconhecíveis nessa ideia da palestra: a mesa, os materiais da pesquisa à mostra, as projeções, o microfone. E tem também algo que durante o trabalho atravessa e transforma a palestra, como se ela fosse virando outra coisa conforme avançamos. Em “ A doença do outro” era a festa, a celebração. No caso do “Chechênia” é a ficção, uma história que é contada e depois recusada.

Bob Sousa – Em CHECHÊNIA: um estudo de caso, realidade e ficção se misturam constantemente. Como você equilibra o relato autobiográfico com a invenção cênica sem perder a força de ambos?

Ronaldo Serruya – Nossa, essa pergunta é bem boa. No caso do Chechênia, são 3 eixos narrativos bem distintos: a conversa com o público, o depoimento pra câmera (como um doc) e a ficção. E o desejo é que todas elas se misturem e estejam a serviço de uma coisa só: a tese que é defendida durante a peça. Todos esses eixos alimentam essa tese, que não é única, porque vai se desdobrando. A ficção é pura invenção, mas ela tb é atravessada por elementos autobiográficos, assim como a conversa com público e os próprios relatos autobiográficos tem algo de ficção.

Bob Sousa – A encenação recusa se contentar apenas com a denúncia da violência, buscando também afirmar a alegria como ato revolucionário. Quais caminhos artísticos você encontrou para que essa alegria não fosse ingênua, mas politicamente contundente?

Ronaldo Serruya – O processo de construção do Chechênia foi longo, e feito por meio de várias pequenas aberturas. Na primeira delas, no MIX Brasil, tinha apenas a parte ficcional, que é extremamente violenta, eu acreditava ainda que era importante escancarar essa violência nos mínimos detalhes. Mas isso caducou em mim, acho que entendi que o único caminho possível, então, era recusar essa ficção. E não é uma recusa ingênua, porque ela não finge que a violência não mais existe, ela apenas recusa que ela nos defina em si mesma. É importante afirmar o teatro como o lugar onde é possível especular outras possibilidades de mundo. A Ursula K. Le Guin, que eu uso na dramaturgia, fala que existem dois tipos de estórias: a que dizemos o que aconteceu (essa é a história da violência que atravessa corpos LGBTQIA+) e aquelas em que contamos o que não aconteceu ( essa é afirmação da alegria como ato revolucionário). Se contarmos cada vez mais essas estórias, elas passarão a ser reais para além do espaço da cena, tenho essa convicção.

Bob Sousa – O espetáculo cria uma clínica de reabilitação fictícia, inspirada na ideia da “cura gay”. Que reações ou reflexões você espera provocar no público ao confrontá-lo com essa distopia tão próxima da nossa realidade?

Ronaldo Serruya – Acho que imaginar as prisões chechenas como uma clínica de “cura gay” faz parte desse movimento de fricção com o Brasil. Quando comecei a escrever a dramaturgia, essa discussão estava posta aqui, e continua posta. A gente vê cada vez mais o avanço da religião como instrumento político, estabelecendo uma relação fundamentalista com o país. Isso se reflete num Congresso cada vez mais conservador pautando retrocessos para a comunidade. Queria fazer as pessoas refletirem sobre isso. Uma distopia é sempre uma lente de aumento sobre a realidade. Ela só distorce e leva ao limite aquilo que já está aí.