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VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Reginaldo Nascimento

Publicado em: 03/09/2025 |

Reginaldo Nascimento, por Bob Sousa

Com “As Três Velhas”, o Teatro Kaus Cia Experimental realiza um mergulho radical no universo de Alejandro Jodorowsky, autor que o grupo desejava encenar há mais de 15 anos. Dirigido por Reginaldo Nascimento, o espetáculo propõe uma experiência estética intensa, onde o grotesco se torna via de investigação artística e política. Em cena, o corpo, a casa e o mundo aparecem em ruínas, mas dessas fissuras brotam beleza, humor e estranhamento. Nascimento conduz o público por uma travessia que mistura melodrama e absurdo, explorando a violência, o patriarcado e a velhice com uma linguagem que provoca desconforto e fascínio. A encenação reafirma o compromisso do grupo com uma pesquisa que tensiona limites, buscando no riso nervoso e no desconforto um convite à reflexão sobre as feridas abertas da sociedade. Nesta entrevista, o diretor comenta as escolhas estéticas, o diálogo com a obra de Jodorowsky e os desafios de montar um espetáculo que provoca desconforto e reflexão.

 

Bob Sousa – O que motivou o Teatro Kaus a finalmente montar um texto de Alejandro Jodorowsky, depois de mais de 15 anos com esse desejo latente?

Reginaldo Nascimento – Desde a encenação do texto O Grande Cerimonial, de Fernando Arrabal em 2010, e depois com as montagens dos textos de Angélica Lidell, fomos preparando o terreno para adentrar no universo de Jodorowsky. A motivação parte da necessidade do coletivo de aprofundar a pesquisa estética acerca do teatro do absurdo e, em As Três Velhas, mais especificamente o grotesco e o melodramático. Já havíamos transitado com o grotesco nas obras de Arrabal e Lidell, mas aqui nessa obra foi possível aprofundar o trabalho corporal, vocal e dar vasão a estética que vinhamos tateando nos últimos processos. Trazer a cena a obra As Três Velhas é nossa busca pela manutenção dos processos criativos sobre esses seres desconstruídos, expandindo a potência corporal e investigando com mais profundidade a poética grotesca para dar conta de trazer a cena uma obra tão emblemática e que foi muito bem apresentada pela querida Marial Alice Vergueiro, há mais de 15 anos. Para nós, os universos desses homens e mulheres da dramaturgia que constroem histórias tão contundentes e desafiadoras, são matéria fértil para aprofundar os processos criativos do coletivo e de todos os profissionais envolvidos na empreitada.

 

Bob Sousa – “As Três Velhas” são definidas como um melodrama grotesco. Como essa estética se traduziu na direção das atrizes e na concepção visual da montagem?

Reginaldo Nascimento – A investigação estética passa pelo corpo e pela voz das atrizes, buscando descontruir a cena em direção a um corpo expandindo, uma voz gutural que transita entre o grunhido, o grito e o silêncio. A cena construída transita entre o horror e humor, buscando de alguma forma adensar o universo de Jodorowsky, tudo é um imenso ritual bebendo do grotesco e vertendo na cena uma experiência sensorial. Cada momento vivenciado adentra o universo dos sonhos e pesadelos que cada ser humano carrega em seu interior, estamos buscando encontrar esse estado bruxuleante da cena. O cenário, figurinos, luz e som buscam também esse lugar de desconstrução. O corpo em decomposição, como uma pele descamando, foi a ideia dos figurinos, que trazem tons claros para contrastar com a escuridão da obra. Os tons escuros do cenário remetem a ideia de um espaço parado no tempo, envelhecido, uma casa em ruínas. Então, a estética e a visualidade se traduzem nessa busca por um universo onde tudo está em decomposição, a casa, os corpos, a vida.

 

Bob Sousa – O espetáculo aborda de forma incisiva questões como velhice, violência e hipocrisia social. De que maneira você buscou equilibrar o desconforto e o humor na encenação?

Reginaldo Nascimento – Diante de tantas as violências cotidianas, do etarismo, dos feminicídios, diante de um mundo cada vez mais permeado pelo preconceito, é tanta falta de humanidade que beira o patético. As violências de todas as formas a que estamos todos e todas submetidos todos os dias (econômica, física, cultural, emocional), vivendo um tempo sombrio, como dizia Brecht, é onde tentamos encontrar equilíbrio para transitar entre horror e humor. Vivemos a observar o tempo como que aguardando boas novas, sobretudo, para quem vive e pratica o teatro de grupo, estamos sempre entre a sombra e a luz, e, nesse sentido, dor e humor estão sempre impregnadas em nossos ossos. Humanos que somos, espantados diante do mundo coisificado, sensíveis a tantas as lutas, vamos equilibrando o desconforto do ser e sua luta diária pela vida, rindo para não chorar. De alguma forma aquilo que nos mantem vivos e dispostos a seguir na luta permeia o processo criativo, e, nesse sentido, o desconforto está ali nos silêncios, nas falas guturais, nos corpos desconstruídos. É como se nos revirássemos ao avesso para ver o que tem dentro da gente, e aí a dor é tamanha que beira o patetismo, e é nesse lugar que reside o humor, eu diria o riso nervoso, o riso de nós mesmos e de nossa vida fraturada pelas coisas do tempo, pelas lutas cotidianas para existir e resistir dia pós dia. Envelhecem os artistas, as ideias, o tempo é outro e, entre o desconforto de viver diante das tantas angústias do mundo contemporâneo, vamos encontrando caminhos para rir da desgraça, e, de alguma forma, nos curar de nós mesmos. Não vi outra forma de adentrar esse universo a não ser bailando entre humor e horror.

 

Bob Sousa – A trajetória do Teatro Kaus inclui uma pesquisa contínua sobre o surreal e o absurdo. Em que medida “As Três Velhas” representa uma continuidade e, ao mesmo tempo, uma ruptura dentro dessa pesquisa?

 Reginaldo Nascimento – Não vejo ruptura, é um aprofundamento desses universos Arrabalescos, Liddelianos e gora Jororowskyanos, é descer um pouco mais nesse mundo das figuras, das absurdidades e do grotesco que permeia a obra destes autores. O Teatro Kaus encontra nesse universo matéria fértil para pensar e praticar um teatro onde a cena é do Ator/Atriz, onde se torna possível o exercício constante de criação e investigação na busca por uma cena experimental, poética, estética e, sobretudo, teatral. É nossa busca por obras que potencializem as interpretações e aguce os sentidos de todos os criadores e criadoras, para dar a ver esses universos e revelar cada vez mais dramaturgias que contribuam para dialogarmos com esse mundo das coisas. É um processo contínuo de pesquisa em diálogo com essa sociedade plastificada, é um mundo surreal mesmo no qual estamos submetidos. “Chegou o momento de concentrar a atenção no olhar interno. Liberar-se da personalidade como de um casaco velho. Chegar à pura Consciência, aquela que pode ver a face do Ser Supremo. Submergir na alegria total do resplendor infinito…” (Garga As Três Velhas)

 

Bob Sousa – O trabalho tem uma atmosfera marcada pela decadência e pela potência do apodrecimento. Que efeito você espera provocar no público ao apresentar o grotesco como forma de resistência estética e política?

Reginaldo Nascimento – O Grotesco historicamente foi um modo de desestabilizar, o belo, aceitável e normal. Mikhail Bakhtin ao estudar Rabelais percebeu que o grotesco popular e carnavalesco desmontava a seriedade oficial. O Corpo Grotesco é aberto, exagerado e traz a cena figuras e situações deslocadas ou deformadas pelo olhar dominante, o Grotesco desorganiza os discursos de poder. Então, o desejo é que possamos nos ver uns nos outros, enxergar esse lugar onde estamos todos e todas colocados na prateleira das vaidades, apodrecendo em pensamentos ultrapassados, vendo um mundo repetir gritos de intolerância como coisa nova, assistindo silenciosamente a coisificação tomando forma. Que o encontro entre arte e vida provoque riso, dor, reflexão, prazer, que o encontro possa ser prazeroso para quem faz e quem vê a cena e que o teatro, de alguma forma, contribua para revermos nossos EUS e desorganizar esses discursos de poder ultrapassados. Buscamos um diálogo mais humano, longe do apodrecimento do espírito, das ideias e do corpo que, em estado de espera, não age para mudar o estado das coisas e assiste o desmoronamento das sociedades.

“Despojadas da máscara que nunca esteve em nosso rosto como estatuas de sal vamos nos dissolvendo/nesse oceano de quimeras. O mundo é um espetáculo vazio onde a morte cavalga agitando um estranho estandarte. Não há outra verdade debaixo do céu mudo e distante a não ser sua foice” (As Três velhas)