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VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Rafael Steinhauser

Publicado em: 20/08/2025 |

Rafael Steinhauser, por Bob Sousa

 

Ator, produtor e profundo entusiasta do diálogo cultural, Rafael Steinhauser tem construído uma trajetória marcada pela articulação entre a criação artística e a produção internacional. No teatro, é co-produtor e idealizador de Dois Papas, espetáculo que reúne Celso Frateschi e Zécarlos Machado em um intenso confronto dramatúrgico sobre fé, poder e convivência, sob direção de Munir Kanaan. Ao mesmo tempo, atua ativamente na MIT-SP (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo), que em 2025 protagonizou a histórica participação do Brasil no Festival OFF de Avignon, na França, por meio da Plataforma Brasil. Nesta entrevista, Steinhauser fala sobre os bastidores e os desafios de produzir Dois Papas, a força simbólica da retomada do espetáculo no Teatro Cultura Artística, e também sobre a importância da internacionalização do teatro brasileiro, em especial no diálogo entre a MIT-SP e a cena mundial.

 

Bob Sousa – Você esteve à frente da idealização e co-produção de Dois Papas. O que te motivou a trazer essa peça para o Brasil e por que considerou importante montar essa obra neste momento histórico?

Rafael Steinhauser – Munir e eu assistimos ao filme primeiro, logo quando foi lançado na Netflix. Imaginamos que seria possível fazer uma adaptação ao teatro, mas quando iniciamos a pesquisa dos direitos autorais, descobrimos que Dois Papas já existiu como peça de teatro antes mesmo de virar filme, escrita pelo mesmo autor, Anthony McCarten. E de certa forma a peça, com texto sublime, é melhor que o filme, ela aporta como personagens chave as duas freiras que contracenam e revelam a personalidade e os dilemas do Papa Bento e do Cardeal Bergoglio.

Como todo clássico, parte de uma temática específica para nos apresentar aspectos profundos do drama humano. Assistimos o confronto de dois grandes líderes da igreja católica. Um Papa conservador e tradicionalista, e um Cardeal carismático e progressista, com visões de mundo diametralmente opostas. Mas eles têm que se alinhar para que os grandes problemas internos e externos pelos quais a igreja atravessa possam ser endereçados num diálogo fértil, de escuta, conversa e entendimento.

Consideramos montar essa obra agora no Brasil porque, além da sua potência e beleza narrativa, aborda um tema fundamental na nossa época: a capacidade de construção coletiva a partir do diálogo, da escuta e da empatia. O Papa Bento e o Cardeal Bergoglio, mesmo tendo visões de mundo antagônicas, fazem uso dessas competências para se alinhar e atingir o objetivo comum, a subsistência da sua instituição. Essa capacidade se torna essencial num mundo e num Brasil cada vez mais social e politicamente polarizado.

Hoje em dia o algoritmo nos confina numa bolha com os nossos “iguais”, nos isolamos cada vez mais. Precisamos recriar o ágora, o espaço comum do diálogo na diversidade. O teatro, de certa forma, é uma ilha no deserto da trama social de nosso tempo, da experiência coletiva. Nele, uma peça como Dois Papas se torna vital.

 

​Bob Sousa – A peça lida com temas sensíveis — fé, poder, diálogo e divergência. Como foi o processo de equilibrar essas camadas na produção, sem reduzir o espetáculo a uma leitura política ou religiosa simplista?

Rafael Steinhauser – Apesar de lidar com as figuras de papas e freiras, não se trata de uma peça religiosa, mas sim de um embate de convicções antagônicas.

Uma peça de personagem nasce a partir de um texto. O de Dois Papas é primoroso. O dramaturgo tem uma escrita precisa, aguda, oxigenando com fino humor a tensão que vai se instaurando na sequência narrativa.

A peça nasceu nos ensaios, um garimpo profundo feito com os quatro atores. A partir desse mergulho, a montagem foi se esculpindo em trabalho de equipe com os grandes profissionais de cenografia, iluminação, figurino, trilha sonora, vídeo-mapping e assistência de direção que sabiamente Munir convidou.

 

Bob Sousa – Sabemos que a peça transita entre o íntimo e o institucional, e que a cenografia, a trilha e os recursos audiovisuais são fundamentais nesse equilíbrio. Como você avalia o papel dessas escolhas estéticas no resultado final e no impacto junto ao público?

Rafael Steinhauser – Um grande texto nem sempre resulta em uma grande peça de teatro. Neste caso, Munir foi muito feliz na convocação dos integrantes da equipe, mas também nas felizes escolhas que ele fez para a montagem da peça.

O teatro é um campo de fricção entre o domínio da atuação e a improvisação do momento presente. Esta prática da absoluta presença convoca a atenção do público durante todo o espetáculo. Em Dois Papas esta condição é ainda reforçada pela tensão que provoca uma atuação e um figurino estritamente realista em contraste com uma arquitetura cênica absolutamente minimalista. O vídeo-mapping projetado sobre esses objetos, o chão e o fundo, geram contextos que em cada cena transportam o público a espaços marcantes e ajudam a mergulhar no clima da cena. Esta vivência, com um texto lúcido e uma atuação deslumbrante, resulta numa experiência emocionante e profunda. Não a toa os dois protagonistas, Zé Carlos Machado e Celso Frateschi, foram nominados ao prêmio de melhor ator pela APCA.

 

Bob Sousa – A retomada do espetáculo no Teatro Cultura Artística representa uma nova fase para Dois Papas. O que essa continuidade em um espaço tão emblemático significa para você, tanto do ponto de vista artístico quanto simbólico?

Rafael Steinhauser – O Teatro Cultura Artística é um dos principais espaços de representação artística de São Paulo para a música e para o teatro. Lembro de ter assistido O Avarento com Paulo Autran nesse palco, que foi palco de grandes montagens durante a sua longa existência. Após a sua reabertura no ano passado, a sala grande apenas recebeu obras musicais. É para nós um privilégio apresentar Dois Papas como primeira obra de teatro nessa sala nobre, icônica, nesta temporada que estréia no 22 de agosto e va até o 13 de setembro.

A configuração específica da sala nos levou a ter que adaptar a arquitetura cênica e a iluminação; mas teatro é arte viva, não é?, e como tal todo contexto físico e temporal pode ser usado a seu favor.

 

Bob Sousa – A Plataforma Brasil realizou a curadoria e levou quatro espetáculos brasileiros ao OFF Avignon em 2025. Como a MIT‑SP organizou esse processo de seleção e qual foi o critério principal para escolher esses trabalhos como representante da cena nacional?

Rafael Steinhauser – A MITsp foi convidada pelo comissário da temporada Brasil-França 2025, Emilio Kalil, para apresentar em Avignon a Plataforma Brasil. Levamos duas obras de teatro, uma de dança, uma performance de rua, três filmes e três palestras. Os critérios que aplicamos para a seleção das obras, junto ao diretor artístico Antônio Araújo e ao diretor geral de produção Guilherme Marques, são a conformidade com os princípios que norteiam a MITsp – vocação experimental e crítica, tensionando o momento histórico e suas ressonâncias nas artes cênicas contemporâneas -, a qualidade artística, e o potencial das obras para circular no mundo.

 

Bob Sousa – O papel do Brasil como país convidado de honra e a presença em um festival tão consagrado permitiram não apenas exibir obras, mas construir um campo de diálogo curatorial, com conferências e ativação de ideias. Como você avalia esse movimento mais amplo — de ocupar o Village du OFF com pensamento crítico, além do teatro em si?

Rafael Steinhauser – Ter sucesso em Avignon não é tarefa simples. Tem que atrair público e decisores (críticos e programadores) no meio de 1.700 obras que se apresentaram este ano. Mas o Brasil foi o país em destaque, e isso ajuda. Também a colaboração que construímos com os líderes da organização do próprio Festival Off e outras instituições como o Instituto Francês, Onda (Agência Nacional de Difusão Artística), a Universidade de Avignon e os teatros que escolhemos, que são conhecidos pela sua curadoria de peças de alta qualidade. Com isso conseguimos um bom destaque. Apanhamos e aprendemos muito, foi a nossa primeira experiência como MITsp em Avignon…

Mas ficamos muito felizes com a grande repercussão que obtivemos de público, crítica e programadores internacionais. Acreditamos que a Plataforma Brasil amplificou o potencial dos artistas que participaram para a sua circulação internacional, que é o que nos mobiliza: difundir internacionalmente a nossa cultura. Temos um país muito rico em produção cênica de alta originalidade e qualidade, mas ainda muito pouco reconhecida fora das fronteiras de nosso país. Esperamos poder dar continuidade a esta iniciativa em Avignon nos próximos anos.

Lembrando que a Plataforma Brasil é a iniciativa de internacionalização das artes cênicas do Brasil. A MITbr-Plataforma Brasil, 10 trabalhos cênicos selecionados de todo o Brasil

A MITbr – Plataforma Brasil 2026, dedicada a difundir, circular e reconhecer o cenário artístico nacional, reunindo produções recentes em apresentações abertas ao público durante a próxima MITsp de 5 a 15 de março de 2026, acaba de abrir a sua convocatória nacional até o 15 de setembro.

 

Agradecemos ao TEATROIQUÈ, do produtor Rica Grandi, pela acolhida e cessão do ambiente onde realizamos o ensaio fotográfico que acompanha esta entrevista.