
Ney Piacentini, por Bob Sousa
Ney Piacentini é um dos nomes centrais da reflexão contemporânea sobre o ofício do ator no Brasil. Com quase cinco décadas de trajetória no palco, ele não apenas construiu uma sólida carreira como intérprete e pesquisador, mas também se tornou um dos artistas que mais publicaram livros dedicados ao tema da atuação. No dia 13 de setembro, no Ágora Teatro, em São Paulo, ele lança seu quinto livro, Traços da história e identidade da atuação brasileira (Hucitec Editora). A obra é fruto de oito anos de investigação e oferece um panorama da interpretação no país, atravessando quatro séculos de história, da colonização portuguesa às experimentações contemporâneas, sempre atento às singularidades que marcam a prática teatral nacional.
Reunindo entrevistas com 28 artistas de diferentes gerações e dividida em quatro capítulos que percorrem desde João Caetano até as experiências identitárias do presente, a publicação se inscreve em uma tradição rara, mas fundamental, de reflexões escritas por atores sobre seu próprio ofício. Piacentini soma esse lançamento a títulos como Eugênio Kusnet: do ator ao professor (2014) e O ator dialético (2018), reafirmando sua posição como pensador e sistematizador da prática cênica no Brasil. Nesta entrevista, ele compartilha os caminhos que o levaram a escrever o novo livro, comenta o processo de pesquisa e reflete sobre o papel da memória e da crítica na construção da identidade da atuação brasileira.
Bob Sousa – Seu novo livro percorre quatro séculos de história da atuação no Brasil. Que critérios orientaram suas escolhas para delimitar esse vasto panorama sem perder a profundidade analítica?
Ney Piacentini – A princípio, caro Bob, optei pelo mais simples: quer seja, pelo arco cronológico. Durante o meu pós-doutoramento, realizado no Instituto de Artes da UNESP, sob a supervisão da professora doutora Lúcia Romano, fiz a maior parte das investigações bibliográficas.
Li cerca de sessenta livros, e deles recortei a grande parte das citações contidas nos Capítulos I e II. Tão trabalhoso, muito embora, também prazeroso. Tenho comigo que, enquanto aprendo, me revitalizo. De modo que, nessa venturosa geografia, feita de tantas e tantas e muitas mais páginas, visitou-me o desabrido horizonte da perseverança: quer seja – espero que, como, exponencialmente, me reeduquei, espero que o mesmo aconteça junto aos meus iguais.
Quanto à profundidade, ela foi fruto da necessidade, no melhor sentido do termo. Do meu ponto de vista, predicado é, dos estudos, a introspecção. Sendo assim, tudo foi puro ganho, na medida em que, tamanho envolvimento, não somente me fez perseverar, mas, a concentração exigida em escrever, irmanou-se à imaginação. Essa sentença podemos encontra-se no conto O ESPELHO, de Guimarães Rosa:
“ E, os “exercícios espirituais” dos jesuítas, sei de filósofos e pensadores incréus que os cultivam, para aprofundarem-se na capacidade de concentração, de par com a imaginação criadora…”
Foram oito anos de reflexões, associadas à diversão, sem nenhuma dúvida. O que se passou comigo foram intensas e intermitentes descobertas. Anseio, assim, estar contribuindo e retribuindo aos que me, permanentemente comigo se solidarizaram e me, tão carinhosamente, continuam a me ensinar.
Bob Sousa – Ao longo da pesquisa, você ouviu artistas de diferentes gerações e linguagens. Como esses depoimentos contribuíram para a compreensão dos traços identitários da atuação brasileira?
Ney Piacentini –Se eu fosse fazer uma suposta eleição entre as pessoas as quais entrevistei, o escolhido, por ampla maioria, seria Grande Otelo. Nele estão presentes a invenção como contraponto à precariedade e a humilhação, as quais são submetidos, nas apenas os artistas, mas sim ao todo do nosso povo.
E, sobre necessidade de se inventar diante da escassez que grassa entre nós, Otelo foi um menino pobre, que se embalou no fascino dos mambembes circenses que passaram pela pequena cidade de Uberabinha.
Para roubar uma citação, a reproduzo a seguir:
– “Domina com um absolutismo de dar inveja a qualquer um dos seus truculentos ditdatores.” Samuel Weiner.
Quer seja, dele salta um certo sarcasmo em relação àqueles que, historicamente, praticaram e praticam violências contra todas as cidadãs e cidadãos do país.
Bob Sousa – A obra dialoga com uma tradição rara de reflexões escritas por atores sobre seu próprio ofício. Em sua visão, por que ainda temos poucos registros desse tipo no Brasil e como essa lacuna impacta nossa formação teatral?
Ney Piacentini –Há um preconceito recorrente que afirma que os artistas têm que apenas exercer os seus ofícios. Não é incomum ouvirmos expressão do gênero:
– “Esse aí não vingou como ator, então se encostou como professor.”
Ou ainda:
– “Quem sabe faz, quem não sabe só escreve sobre o fazer, porque não soube o que fazer com a sua incompetência como intérpretea.”
João Caetano não foi importante para o teatro brasileiro? Por acaso ele não mereceu o reconhecimento que teve? E o que dizer de Procópio Ferreira? Ambos escreveram livros sobre os seus próprios trabalhos, se isso serve de argumento.
Eugênio Kusnet era tido como um artista exemplar, reservado, discreto, dono de uma rara disciplina, coisa que não é propriamente recorrente entre nós. Uma disciplina tornada imaginação.
Encantou seus colegas interpretando os personagens Otávio, integrante da peça ELES NÃO USAM BLACK-TIE, de Gianfrancesco Guarnieri. E o mesmo aconteceu quando deu vida ao personagem Bessemininóv, em OS PEQUENOS BURGUESES, de Máximo Górky. Tanto no processo de BLAK-TIE do Teatro de Arena, como no de OS PEQUENOS BURGUESES, de Máximo Górki, pelo Teatro Oficina, Kusnet já exercia a função de um pedagogo sobre a atuação. E, consequentemente, colocou em livros sua dupla função. Tendo em vista a excelência de Kusnet como um atuante e, simultaneamente, como um professor de atores, esse homem russo radicado no Brasil, nos legou três livros, os quais tiveram e têm as maiores difusões da história da pedagogia atoral da nação. Sobretudo ATOR E MÉTODO, um verdadeiro clássico que, se consultarmos milhares de atrizes e atores, estudantes e professores de teatro, eles responderam, com certeza, que leram e continuam consultando esse livro. Alguns, afetivamente comentam que ATOR E MÉTODO, é o livro de cabeceira deles.
Concluindo, por eles fui estimulado a escrever. E não posso e não devo deixar mencionar Sérgio de Carvalho, meu diretor há 35 anos que, não só me ensinou a atuar em recuo, mas me estimulou, sobremaneira, a escrever.
Espero, imensamente, que novo(a)s atrizes/atores, se disponham a testemunhar em livros suas experiências atorais, como está fazendo Matteo Bonfitto, que é ator, performer e professor, que já publicou três livros: O ATOR COMPOSITOR, CINÉTICA DO INVÍSIVEL: PROCESSOS DE ATUAÇÃO NO TEATRO DE PETER BROOK e ENTRE O ATOR E O PERFORME, os quais são dignos de nota.
Naturalmente que absolutamente “não chego aos pés” de João Caetano, Procópio Ferreira e Eugênio Kusnet. Todavia, não posso deixar de reconhecer que, até o presente, fui o único ator a publicar cinco livros sobre a temática em questão.
Bob Sousa – Nos capítulos que tratam da virada do século XX para o XXI e do teatro identitário, você destaca transformações decisivas no modo de atuar. Quais seriam hoje as principais forças que tensionam e redefinem a prática da interpretação no país?
Ney Piacentini –O verbo tensionar, por você utilizado Bob, é demasiado oportuno. O acirrado debate a respeito da atuação no teatro indenitário, o qual tratei apenas tateando o tema, justo por não “lugar de fala”, é fulcral na atualidade. Me restrinjo à apenas a uma citação da atriz negra Aysha Nascimento:
– “ […] o teatro negro nunca quis dividir. A gente quer falar sobre as nossas questões que são urgentes e a luta de classes não têm separação de gênero e raça.”
Bob Sousa – Com cinco livros publicados sobre atuação e uma carreira marcada pela investigação pedagógica, como você enxerga sua contribuição pessoal para o pensamento teatral brasileiro e quais próximos passos pretende seguir nessa trajetória?
Ney Piacentini – Veja, Bob, me vejo como um simples e esfomeado aprendiz.Como um ávido leitor, a confecção de cinco livros me legam dúvidas, problemas, achados e, sobretudo, inconclusões. Todavia, penso que, se estou tanto estudando, com gosto e prazer, há quarenta e sete anos, quem sabe os leitores se interessem em distribuir suas percepções a respeito da arte de atuar.