
Miriam Mehler, por Bob Sousa
Aos 90 anos de idade, Miriam Mehler segue como uma das grandes damas do teatro brasileiro, carregando consigo uma trajetória que é também um retrato vivo da própria história da cena artística do país. Sua estreia em Sob o Céu de Paris, no Itaú Cultural, reafirma a vitalidade de uma artista que estreou nos palcos em 1958 e nunca deixou de se reinventar. Dirigida por Gabriel Fontes Paiva e com dramaturgia de Gabriela Rabello, a peça mergulha nas transformações íntimas de uma família paulistana ao longo de décadas, atravessando temas como a degradação urbana e o impacto da ditadura militar. Ao lado de Walter Breda e Rosana Maris, Miriam dá vida a uma avó que observa o tempo corroer e transformar os espaços e as relações. Nesta entrevista, a atriz fala sobre sua carreira, a nova peça e os atravessamentos pessoais e históricos que compõem sua obra.
Bob Sousa – Aos 90 anos, você estreia um novo espetáculo em que interpreta uma personagem que atravessa décadas de transformações urbanas e familiares. Como essa história ressoa com a sua própria memória de São Paulo e com a sua trajetória pessoal?
Miriam Mehler – Eu cheguei aqui no Brasil, em São Paulo, com dois anos. Onde tudo ainda era meio deserto, ainda tinha o bonde… Então essas construções, esse Minhocão, veio muito mais tarde, inclusive quando já tínhamos construído o Teatro Paiol, que ficava na Amaral Gurgel. Tudo isso, dizem que é um progresso. Mas eu não acho o Minhocão um progresso, ele inclusive foi construído na época da ditadura e pra mim isso não é um progresso. Claro que São Paulo era uma cidade pacata, na minha juventude. O ponto alto era irmos passear na cidade , ou mesmo estudar na São Francisco, tudo era calmo, também não tinham assaltos. É claro que tudo evoluiu, a medicina, a ciência… Temos hospitais maravilhosos, escolas, creches, tudo!
Bob Sousa – Sob o Céu de Paris trata de temas como racismo estrutural, ditadura e a própria decadência urbana simbolizada pelo Minhocão. Como foi para você revisitar esse período histórico no palco e dialogar com essas feridas abertas da cidade?
Miriam Mehler – A ditadura foi uma coisa horrível, e a decadência também foi horrível. A peça retrata bem isso. Eu quase fui presa, quase. Mas eu fui fichada no DOPS. Eu trabalhava em vários teatros, e para o teatro foi péssimo, no sentido de que nós trabalhávamos sempre sob pressão, tínhamos que mostrar a peça antes para os censores; como no caso de “Bonitinha, mas Ordinária”, que eles fecharam o espetáculo. Muitos amigos meus foram presos, muitos foram assassinados, foi uma época terrível. As feridas abertas da cidade são muito bem ditas na peça. Realmente, os buracos do minhocão, as praças em frente, a cidade destruída, o centro destruído (que nao se pode mais ir tranquilamente), enfim.
Bob Sousa – Sua carreira é marcada por passagens por grupos fundamentais como o Teatro de Arena, o TBC e o Teatro Oficina. Em que medida essa formação coletiva segue influenciando o seu modo de trabalhar e de escolher papéis?
Miriam Mehler – Eu passei por esses três teatros nos primeiros dez anos de carreira. É claro que cada peça é uma novidade para mim, e cada maneira de atuar, cada maneira de pensar o espetáculo. O Arena me deu a possibilidade de fazer uma peça brasileira, de um autor que, na época, era novo. Além da própria disposição do Teatro de Arena, que eu não estava acostumada. O TBC me deu a oportunidade de contracenar com atores um pouco mais velhos e maravilhosos, entrar nos textos de Tennessee Williams e etc. O Oficina me deu a oportunidade de ser dirigida pelo Zé Celso da época, que eu achava que era o grande diretor e a oportunidade de ficar lá durante quatro anos, contracenar com Eugênio Cuzi, ter aulas com ele. Enfim, acho que em cada momento da minha vida eu tive formações diferentes muito boas para mim como atriz.
Bob Sousa – Você já recebeu prêmios como o Shell e o Bibi Ferreira, mas continua em plena atividade, investindo em novos projetos. O que mantém viva a sua necessidade de estar em cena e de se desafiar artisticamente?
Miriam Mehler – Eu já ganhei diversos prêmios, mas isso não tem nada a ver com o meu desejo de continuar nesta profissão e de fazer cada vez melhor.
Bob Sousa – Para as novas gerações de artistas que encontram nos palcos um espaço de resistência e expressão, que conselho você deixaria a partir de sua experiência de mais de seis décadas de carreira?
Miriam Mehler – Eu acho que os atores da nova geração, alguns, precisam estudar mais, não achar que precisam aparecer imediatamente, realmente se dedicar, e também ter muito amor, muita paixão pelo que está fazendo. Não ficar desesperado quando o teatro, o cinema ou a televisão ficarem sem chamar, por que você tem que ter alguma coisa que você possa se sustentar. Eu vendi cursos de inglês, por que durante um ano meu telefone nem tocou. Tive que me virar de alguma forma, tinha um filho pra cuidar. Mas não desistam, tenham resiliência, paixão, estudem bastante, e ouçam bastante. Assisti muitos, muitos, muitos espetáculos. Vejam filmes, tudo isso te dá uma bagagem enorme.
Agradecemos ao TEATROIQUÈ, do produtor Rica Grandi, pela acolhida e cessão do ambiente onde realizamos o ensaio fotográfico que acompanha esta entrevista.