EN | ES

VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Marina Wisnik

Publicado em: 23/07/2025 |

Marina Wisnik, por Bob Sousa

 

Atriz, cantora e compositora, Marina Wisnik mergulha com intensidade na montagem de Sete Gatinhos, de Nelson Rodrigues, em cartaz no Teat(r)o Oficina sob direção de Joana Medeiros. No espetáculo, que expõe as entranhas de uma família marcada por hipocrisia, abusos e desejos silenciados, Marina dá corpo e voz a um universo denso e trágico que atravessa tempos e estruturas sociais. A montagem resgata a crueza do texto original e a impulsiona com a força poética, política e sensorial característica da linguagem do Uzyna Uzona. Nesta entrevista, Marina reflete sobre seu processo criativo e o impacto dessa experiência em sua trajetória.

 

Bob Sousa – Nelson Rodrigues propõe em Sete Gatinhos uma visão dilacerante da família brasileira. Como foi para você se colocar dentro dessa estrutura em ruínas e dar vida a uma personagem atravessada por tantas camadas de violência, desejo e silêncio?

Marina Wisnik – Nosso processo criativo foi, desde o início, de aproximação, tentando entender de que maneira o desejo, o silenciamento e a violência presentes em Nelson estavam em nós mesmos, na nossa vida e história pessoal, em que assumimos o papel de abusadores de abusados. O Nelson vai pra extremos, e acaba sendo amoral. Mas ele trabalha em muitas camadas, então, por um lado, é como se ele dissesse que se olharmos pra alma humana, pra além da capa da aparência e bons costumes, todos temos a nossa dimensão canalha. Por outro lado, em 7 gatinhos ele cria uma espécie de ajuste de contas entre o feminino abusado e os abusadores masculinos. As mulheres matam os homens, objetos de amor e ódio, de maneira trágica.

Assim, a abordagem da direção, foi desde o início de aproximar as personagens de nós mesmos, vendo, de que maneira, no micro, nós temos um pouco de Aurora, de Noronha de Bibelot, e assim por diante. Fazíamos rodas em que compartilhávamos histórias pessoais que se relacionassem com a peça e depois íamos pra improvisação colocar aquelas emoções no corpo e nas personagens. Ficamos um bom tempo nesse processo pra só depois ir pra as cenas propriamente ditas. Isso colaborou bastante pra trazer uma espécie de visceralidade pra nossa interpretação, como se falássemos de algo que está fora, na sua dimensão política, mas também em nós mesmos.

Bob Sousa – A encenação de Joana Medeiros no Teat(r)o Oficina tem uma força ritualística, onde música, corpo e palavra se misturam. Como você construiu sua presença cênica nesse ambiente de intensidade e ruptura?

Marina Wisnik – A Joana, como atriz e diretora, desenvolve uma pesquisa de atuação chamada Carpintaria do Ator. É uma técnica que reconhece algumas tipologias psíquico-corporais que atuam em todas as pessoas, mas também podem ser identificadas nas personagens, tornando-se uma espécie de direção para o trabalho. Quem criou esse método foi Luc Charpantier, um teatrólogo com quem Joana estudou quatro anos quando morava na França. Isso faz com que o nosso processo criativo tenha sido muito corporal mesmo, voltado pra as linhas vetoriais do corpo e da mente, aterrando o texto do Nelson e as personagens no nosso corpo.

Mas no que se refere à força ritualística da peça, acho que isso tá bastante ligado à tradição do Teatro Oficina que vem do Zé Celso, e que a Joana incorpora no seu trabalho como diretora. O Oficina é um terreyro eletrônico e lá, a música ao vivo, o corpo e a palavra se misturam numa encenação que assume a sua dimensão de rito. Essa é uma das principais marcas do Zé. A Joana, como fez importantes personagens em peças dirigidas por ele e tem uma visceralidade no seu estilo de atuação, sinto que ela incorpora naturalmente essa característica que vem de Zé e da tradição daquele teatro.

Já eu, como atriz, tenho uma certa intimidade como essa dimensão ritualística e trágica no Oficina porque tive a oportunidade de fazer Bacantes dirigida por Zé ainda adolescente, e depois em 2016 novamente. Ter sido do coro das bacas e ter esse contato com o Zé Celso foi uma importante formação pra mim, e nessa peça a música, corpo e palavra se misturam na sua dimensão de rito com muita força. Bacantes é a peça raiz e destino daquele teatro, que dirigiu a sua arquitetura, e que o Zé chamava de tragycomediorgya.

Como 7 Gatinhos é uma tragédia também, só que não grega e sim carioca, que o Nelson chamou de “divina comédia”, a gente conseguiu devorar muito de Bacantes pra peça do Nelson.

Bob Sousa – A peça se passa em 1957, mas a montagem faz questão de transpor seus temas para o Brasil de 2025. Em sua percepção, o que essa história ainda tem a dizer sobre a sociedade atual e sobre as relações familiares e de poder que seguimos reproduzindo?

Marina Wisnik – Eu acho que essa peça é muito atual porque, de uma maneira, ela denuncia o machismo estrutural, que é uma pauta muito presente nos dias de hoje. Nossa sociedade tem observado cada vez mais as camadas invisíveis do olhar que determinam as relações de poder e que estão ligadas ao patriarcado. E na peça, os grandes abusadores são os homens. O pai da família, o médico da família, o namorado das filhas. E eles morrem, cada qual ao seu modo, todos de maneira violenta.

Mas esse “delatar” não se dá de maneira maniqueísta, entendendo as mulheres como meras vítimas e os homens como meros algozes: olhar, que por sua vez, é fruto de uma lógica algorítmica, que rege o cancelamento, compreende que existem pessoas puramente boas ou puramente más. Apesar dos avanços da atualidade, esse é um mal dos nossos tempos.

Assim, o “delatar” do patriarcado em 7 gatinhos se dá revelando relações extremamente complexas que envolvem amor e ódio, desejo e pulsão de morte, sororidade e competição. Tudo isso junto. Por isso eu acho Nelson tão atual e, mais do que isso, importante pros dias de hoje. Porque ele delata, mas revela as complexidades e o paradoxo. Mostra o abuso, mas humaniza a todos. Seus textos são fortes, terríveis, mas lindos. Tem muito amor nas personagens. Todas.

Ao mesmo tempo, a nossa montagem tem algumas escolhas que a atualizam, criam uma espécie de tensão com o texto original, que na minha opinião potencializam a peça e a força do Nelson. Acho que a principal delas é o fato de termos como Silene (que é a filha mais nova protegida e santificada pela família) feita por uma pessoa trans, Zizi Amaré Yindio do Brasil. Zizi faz a personagem com muita verdade e isso é extremamente bonito pra peça. Além disso temos a presença luxuosa da Jup do Bairro, costurando a montagem com suas intervenções musicais. Uma mulher preta, trans, cantando funk com toda a potência. Isso é muito forte e bonito pra nossa peça.

Mas apesar de uma certa modernização, foi uma escolha da direção fazermos o texto na íntegra, falar cada palavra. Porque, como a Joana diz, e eu concordo plenamente, esse texto é bruxaria. Nelson, assim como Clarice Lispector, é um bruxo. E Zé Celso também. Por isso, um texto de 1957 mas totalmente aterrado nos dias de hoje, maravilhoso pra que a gente ritualize no templo sagrado e profano que é o Teatro Oficina.

Agradecemos ao Teatro Garagem, da atriz Anette Naiman, pela acolhida e cessão do ambiente onde realizamos o ensaio fotográfico que acompanha esta entrevista.