EN | ES

VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Marina Tomaz Zan e Natalie Ferraz Kaminski

Publicado em: 30/07/2025 |

Marina Tomaz Zan e Natalie Ferraz Kaminski, por Bob Sousa

 

Na contramão da rigidez do mundo contemporâneo, onde muros e fronteiras se erguem a cada dia, o circo segue sua travessia como linguagem ancestral, viva e insurgente. A oitava edição do CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo,  reafirma esse movimento, posicionando o picadeiro como território de escuta, memória e transformação. Em 2025, o festival amplia ainda mais seu alcance, fortalecendo a presença da linguagem circense nos palcos e nas ruas, nos corpos e nas ideias, nas salas de formação e nos afetos compartilhados com o público.

Com uma curadoria coletiva formada por Ana Carla de Assis Ribeiro, Ari Felipe Miaciro Correia, Gilcemar Aparecido Borges, Julio Cesar Pompeo, Layana Peres de Castro, Marina Tomaz Zan e Natalie Ferraz Kaminski, esta edição propõe um olhar atento à potência poética e política do circo contemporâneo, destacando produções que desafiam normas, tensionam estéticas e celebram a diversidade. Entre espetáculos internacionais, solos latino-americanos, intervenções urbanas e instalações provocadoras, o CIRCOS desenha uma espiral que conecta resistência, encantamento e coletividade.

Nesta conversa com Marina Tomaz Zan e Natalie Ferraz Kaminski, coordenadoras da equipe curatorial, buscamos compreender os caminhos que nortearam a construção desta edição, os desafios e os desejos que movem essa grande celebração da arte circense, bem como suas estratégias de diálogo com públicos diversos e com a cidade como espaço simbólico e real de criação.

Bob Sousa – A curadoria desta edição propõe o circo como espaço de resistência e encantamento. Quais foram os principais critérios que guiaram a seleção dos espetáculos e ações formativas do festival?
Marina Tomaz Zan e Natalie Ferraz Kaminski – A curadoria desta edição foi guiada por princípios que posicionam o circo como uma linguagem artística pulsante, conectada com debates contemporâneos e com o desenvolvimento de territórios. Destacamos algumas diretrizes centrais: a valorização da diversidade cultural e técnica, a ampliação das referências para além dos países hegemônicos, fortalecendo diálogos com o Sul Global, e a promoção de ações voltadas à formação de públicos adultos. Além disso, buscamos refletir sobre questões como o envelhecimento e o papel do circo na construção de uma coletividade mais sensível e crítica, reafirmando o festival como espaço de resistência, memória e transformação

Bob Sousa – O tema da ocupação do espaço urbano está muito presente nesta edição. Como o festival articula a cidade como território artístico e político a partir da linguagem circense?
Marina Tomaz Zan e Natalie Ferraz Kaminski – O circo tem em sua essência a ocupação do espaço público e o diálogo direto com os públicos. Trata-se de uma linguagem fundamentalmente popular que mantém um caráter de acesso democrático. Nesta edição, propomos uma escuta atenta a algumas possibilidades que a cidade oferece como palco e como campo simbólico. O espaço urbano é cotidianamente um lugar de enfrentamento e questionamento, mas também pode ser palco de encantamentos múltiplos. Nesta edição o festival estará no Bulevar do Rádio, Centro de Memória do Circo, Museu do Ipiranga, Parque da Independência, Praça da Sé, Theatro Municipal.

Bob Sousa – O Gira Latina e a Cena Expandida trazem olhares potentes sobre os solos e as narrativas individuais. Como essas propostas dialogam com a ideia de coletividade, tão cara ao universo do circo?
Marina Tomaz Zan e Natalie Ferraz Kaminski – A presença de muitos espetáculos solo nesta edição não é apenas uma escolha estética, mas também um reflexo das condições contemporâneas de produção no circo e nas artes cênicas em geral. Muitos artistas enfrentam dificuldades para sustentar processos coletivos longos, seja por falta de espaço, financiamento ou tempo de pesquisa em grupo. O que não impede de considerar a potência destes trabalhos, que não raro também carregam em si marcas de pertencimento coletivo, por exemplo: memórias, questões identitárias, heranças coloniais ou de gênero. Ao ampliar o escopo do festival, reconhecemos essa tendência sintomática e apostamos na força dessas criações como motor de renovação e reflexão coletiva dentro do universo circense.

Bob Sousa – Um dos grandes desafios atuais é a formação de público para as artes ao vivo. Quais estratégias curatoriais foram pensadas para ampliar o acesso e aproximar o público adulto da linguagem circense?
Marina Tomaz Zan e Natalie Ferraz Kaminski – Desde a edição passada do festival, a aposta é na capacidade do circo contemporâneo de dialogar com questões urgentes da sociedade. Insurgências.  Ao trazer à cena temas como desigualdade social, machismo, racismo, envelhecimento, crise política e existencial, o festival não apenas amplia os repertórios do público, como também aproxima o adulto da linguagem circense. Um exemplo marcante foi a recepção ao espetáculo King Kong Fran, apresentado na edição passada, que mostrou como o humor, a crítica e a performance podem gerar identificação e debate entre espectadores adultos. Ao abordar temas sensíveis com sofisticação cênica, o circo reafirma seu papel como uma potente ferramenta de formação crítica e construção simbólica.

Bob Sousa – Diante de um cenário global de retrações culturais e sociais, como a curadoria entende o papel do festival na construção de futuros mais justos, plurais e sensíveis?
Marina Tomaz Zan e Natalie Ferraz Kaminski – Em tempos de retrocessos e fragmentações, o festival se afirma como espaço de escuta, criação e imaginação coletiva. Assim como a educação, a arte é um instrumento fundamental para a construção de outros futuros. A programação contempla uma multiplicidade de vozes, estéticas e corpos, oferecendo ao público experiências que não apenas encantam, mas que também provocam e mobilizam. O festival é, assim, um exercício de resistência cultural e uma convocação à sensibilidade, à empatia e ao pensamento crítico.

Bob Sousa – O envelhecimento aparece nesta edição como tema e como presença cênica importante. De que maneira o festival propõe uma reflexão sobre o tempo e valoriza os corpos que seguem em cena, reconfigurando a ideia tradicional de virtuose no universo circense?
Marina Tomaz Zan e Natalie Ferraz Kaminski – Ao incluir na programação espetáculos protagonizados por artistas idosos, o festival amplia o conceito de virtuose no circo, tradicionalmente associado à juventude e à performance extrema. Esses corpos trazem outras formas de presença: carregam memórias, histórias, marcas e saberes acumulados ao longo do tempo. A proposta é de uma escuta sensível a essas trajetórias, valorizando a longevidade artística e abrindo espaço para uma reflexão crítica sobre o tempo, o envelhecimento e a força desses corpos na cena.