
Mariana Muniz, por Bob Sousa
Em cena, dois corpos. Um homem negro e uma mulher branca dividem o mesmo espaço, o mesmo tempo e, sobretudo, a mesma ficção. A partir do clássico romance Orlando, de Virginia Woolf, a atriz e diretora Mariana Muniz se une ao bailarino e coreógrafo Maurício de Oliveira para investigar as múltiplas camadas de identidade, gênero, memória e história, dando forma a uma obra que ultrapassa os limites da literatura e do teatro. Sob direção de Inês Bushatsky e com dramaturgia assinada por João Mostazo e Tono Guimarães, o espetáculo, em fase de finalização, propõe uma travessia poética entre o romance modernista e as vivências pessoais dos artistas, costuradas por dança, música ao vivo e artes visuais. Mariana, com uma trajetória marcada pelo rigor cênico e a sensibilidade política, leva ao palco um corpo que encarna as tensões e potências do contemporâneo, desafiando o público a repensar a própria ideia de realidade. Nesta conversa, ela comenta o processo criativo e as implicações de trazer Orlando para os palcos hoje.
Bob Sousa – O romance Orlando já é, por si só, um convite à reinvenção do tempo e do corpo. Como foi para você traduzir essa fluidez para a cena, especialmente a partir da construção compartilhada com Maurício de Oliveira?
Mariana Muniz – Orlando tem nos desafiado em muitos planos. Tecnicamente, nos pede muita precisão, no pingue-pongue das falas, nas variações dinâmicas- cena a cena- na movimentação coreografada e nos detalhes e descrições pictográficas, quando a memória nos faz mergulhar nas peripécias do romance.
Com texto de João Mostazo – a partir de nossas histórias e experiências pessoais, e de um estudo aprofundado dos temas do romance, especialmente, da relação com o tempo – , nos convida a manter um delicado estado de atenção em todas as cenas.
Inês Bushatsky, diretora do trabalho, aposta na fluidez entre a movimentação dançada e as falas métricas do texto, que se inspiram na trajetória do personagem Orlando, da Virgínia Woolf, e por nossas trajetórias pessoais de artistas cênicos, em dança e teatro.
Para mim é maravilhoso estar trabalhando com Maurício de Oliveira. Fomos apresentados uma ao outro, pela professora e pesquisadora Cássia Navas, em 2021, durante um programa de entrevistas.
Desde então, o Maurício vislumbrou a possibilidade de estarmos juntos em cena, e, com Tono Guimarães, conceberam e elaboraram este projeto que ganha corpo, se corporifica, agora.
Estamos finalizando todo um processo de grande beleza e intensidade física e emocional que deve chegar, em breve, aos palcos.
Nestes momentos finais, sinto meu corpo disponível e confiante na estrutura que construímos juntos com uma equipe criativa incrível, que inclui direção, texto, músicos em cena, figurinista, iluminador, produtor,cenotécnicos e operadores, dentre outros.
Bob Sousa – O espetáculo entrelaça camadas autobiográficas com a ficção de Woolf. Quais experiências pessoais você escolheu trazer para a cena e como elas dialogam com a narrativa original?
Mariana Muniz – A dimensão autobiográfica se constituiu a partir de improvisações realizadas no início de nosso processo de criação.
Os momentos escolhidos, dentre os que elencamos para realizar as cenas, ficaram a cargo de João e Inês, que desenvolveram juntos uma narrativa, onde nossas histórias se entrelaçam com a vida da personagem Orlando.
O que aconteceu com Orlando depois de 1928, quando o romance foi publicado?
Em nossa ficção, Orlando, depois de viver como bailarino/a se transforma, em restaurador de quadros. Somos restauradores de memórias, além de artistas da cena e “Orlandos”.
Questionamos as dimensões do tempo e do espaço, dos movimentos, da história e da dança e temos a habilidade de mudar de sexo.
Nossas histórias se entrelaçam ao longo das três cenas em que o texto está dividido. Alternamos momentos de concentração no trabalho de restauração dos quadros com os relatos/ conversas sobre nossas vivências cênicas e a dança, além das memórias de Orlando.
Bob Sousa – Em um país onde o corpo ainda é um campo de disputa política e simbólica, que urgências motivaram essa montagem hoje? Como você enxerga o papel do teatro nesse contexto?
Mariana Muniz – Ficamos dois anos e meio tentando apoio para esta montagem de Orlando com apoio dos editais para a cultura.
Para mim, a necessidade e urgência de comunicação das peripécias de Orlando, atravessando quase quatro séculos e se transformando, de forma fluida, de homem em mulher, ao longo de suas aventuras, acontece à medida que fazemos o mergulho na construção dramatúrgica, aliada com uma direção precisa e muito detalhista.
Nosso mundo contemporâneo parece pedir que essa história seja contada. A possibilidade do fim do planeta com as mudanças climáticas, o caos instaurado pelas guerras e a revolução tecnológica, que nos coloca diante de uma crise gigantesca de valores, nos convidam a pensar sobre o tempo e as transformações físicas e emocionais que nossos corpos devem suportar, daqui para frente.
O corpo cênico, que atua e dança e canta, e não é do teatro musical, ainda é algo diferenciado na cena teatral, mas acredito que é um canal privilegiado para dar conta de comunicar, com o rigor e a paixão necessários, todas as facetas desse romance extraordinário. O teatro é fundamental, neste contexto do corpo em meio aos embates políticos e simbólicos, por sua inerente qualidade de humanidade.