
Marcelo Várzea, por Bob Sousa
Em “O Que Meu Corpo Nu Te Conta?”, o diretor Marcelo Várzea propõe um dispositivo cênico radical de escuta, exposição e partilha, onde o corpo — muitas vezes nu — torna-se a principal ferramenta de memória e narrativa. À frente do Coletivo Impermanente, grupo formado por artistas de diversas regiões do Brasil, Várzea conduz uma investigação sensível sobre a autoficção e o teatro narrativo, criando um espetáculo em que cicatrizes físicas e emocionais emergem como matéria poética e política. A partir de um “tabuleiro” habitado por múltiplas vozes e presenças, o espetáculo convida o público a escolher seu percurso e compor sua própria experiência, tornando cada sessão única. Nesta entrevista, o ator, diretor e dramaturgo reflete sobre os caminhos da criação, os desafios da exposição íntima no palco e o papel da arte na construção da memória coletiva.
Bob Sousa – O espetáculo parte de uma pesquisa intensa com artistas de diferentes origens e histórias. Como se deu o processo de escuta e de transposição dessas experiências para a cena?
Esse treinamento começou durante a pandemia, online, com artistas de vários estados brasileiros. Tornou-se uma experiência gamificada online chamada in(confessáveis). Só depois convidei alguns desses artistas para uma pesquisa continuada, ainda online, sobre teatro, política e narrativas, especialmente a autoficção.
Nas Satyrianas de 2021, resolvi experimentar levar algumas dessas criações ao vivo para testar. Usando a metáfora da vulnerabilidade, que essas narrativas confessionais traziam, optei por “verticalizar”, de maneira quase óbvia, o processo de desnudar-se. Ao despir-se de suas máscaras, o processo se tornou um exercício de autoexame. A experiência de estar totalmente despido, restando apenas a memória e a tradição oral, permitiu um encontro real, de fato, olho no olho.
Durante a investigação, e a partir de diversos dispositivos de provocação, os artistas trouxeram suas memórias, trabalhando com as dramaturgias textuais, da cena e da atuação — e as apresentaram. Após a seleção desses minissolos, revi a dramaturgia individual e a dramaturgia geral, interferindo em vários textos. Em outros, aproveitei apenas o mote sugerido e reescrevi tudo, enquanto em alguns casos, não interferi, mantendo as cenas como o próprio artista as criou.
Bob Sousa – A nudez, presente em muitas das narrativas, adquire uma dimensão simbólica forte. Como você trabalhou a relação entre o corpo exposto e a construção de memória no espetáculo?
A nudez não está presente em todas as histórias, e não são cenas sobre situações em que os artistas estão nus. Ela é uma metáfora, de fato. Eu havia lido algo (que depois descobri não ser cientificamente confirmado, mas que me serviu de motivação) que dizia que a cada sete anos nós trocamos todas as células do nosso corpo, restando apenas o DNA e a memória. Então, o que é o corpo? Por que ele é tão hipersexualizado? Por que ele nos define tanto? O que carregamos dentro de nós? Corpos políticos, identidades, lugar de fala e de escuta, narrativas individuais que, no somatório, tornam visível uma radiografia social. À medida que os limites dos quadrados do tabuleiro vão se borrando, revelam-se essas tensões.
Bob Sousa – A estrutura cênica em forma de tabuleiro, com nichos e rodadas, transforma o público em agente da própria experiência. Qual foi o impacto desse dispositivo na dramaturgia e no ritmo da encenação?
Entendo que a dramaturgia dessa peça é exatamente esse jogo: a vulnerabilidade, o convite a ouvir as histórias e a refletir sobre se elas de fato pertencem a aquele corpo. A individualidade de cada quadrado no micro e no macro do tabuleiro, o poder de escolha, a tomada e a perda do poder, o inesperado — tudo isso revela muito sobre o jogador. A escuta e o estado de presença, tanto dos atores quanto do público, em uma peça onde, dependendo dos elencos, dos quatro sorteios possíveis de caminhos e dos 72 textos possíveis nesta temporada, uma nova peça se revela a cada momento. A atenção plena a cada segundo é crucial. Impossível o elenco fazer a peça no automático ou apenas mostrar sua cena. É um encontro, de fato. É isso que persigo.
Bob Sousa – Como a proposta de autoficção foi recebida pelos artistas em cena? Houve resistência, medo, libertação? Que cuidados foram tomados durante esse mergulho nas memórias pessoais?
Como tudo começou com uma oficina, os artistas sabiam o que estavam escolhendo ao entrar nesse processo. No entanto, todo o trabalho foi conduzido com muita escuta, troca e acolhimento. Mais tarde, com a apresentação da nudez, a Erica Rodrigues, nossa diretora de movimento, promoveu um processo cuidadoso para que todos e todas pudessem se expor com segurança, antes mesmo de a linguagem ser criada.
Bob Sousa – Em um país marcado por apagamentos históricos e narrativas silenciadas, que papel você acredita que obras como O Que Meu Corpo Nu Te Conta? cumprem na disputa por memória, visibilidade e escuta?
É difícil responder a uma pergunta retórica que está em consonância com a minha proposição e desejo de que, de fato, possamos contribuir para deslocar o poder do patriarcado, do capitalismo, da sociedade do espetáculo, e investigar o que é íntimo e o que é privado.
Não vejo a autoficção como algo relacionado ao psicodrama. Como os gregos falavam sobre o teatro — “o homem diante do homem” —, como os africanos e indígenas se sentam em rodas para contar suas histórias, a proposta de falar sobre o que é íntimo pode contribuir para uma transformação social mais ampla. “Fale de sua aldeia e estará falando do mundo”… Talvez, se o que você contar for uma questão política, podemos mudar o olhar das pessoas que assistem, seja por identificação, cumplicidade ou alívio, ou ainda para encontrar novos aliados em causas tão importantes. No mínimo, precisamos nos escutar uns aos outros.
Não tenho me interessado pela ideia de espetáculo, show, virtuose ou efeitos. Prefiro atores e atrizes, vulnerabilidade, jogo e encontro. Acho que é isso que precisamos — e é isso que pode mover alguém em direção a um lugar mais amoroso, afetivo e político.