
Letícia Rodrigues, por Bob Sousa
Em 116 Gramas – Peça para Emagrecer, a atriz e dramaturga Letícia Rodrigues convida o público a uma jornada visceral, poética e profundamente íntima sobre a busca pelo corpo ideal. O solo autoral, que retorna aos palcos com apresentações gratuitas, é atravessado por camadas de autoficção e performance física. Nele, uma mulher gorda tenta emagrecer 116 gramas por sessão, como se esse número pudesse abrir as portas da aceitação. No palco, entre suor, cálculo e memória, Letícia transforma a pressão estética em arte e expõe a brutalidade simbólica imposta às corporalidades que desafiam o padrão. Atriz, bailarina, performer, roteirista e dramaturga, Letícia faz da cena o lugar de resistência e reinvenção, em um trabalho que é tanto denúncia quanto cura. Nesta entrevista, ela fala sobre o processo de criação do espetáculo, os desafios de transformar o próprio corpo em território cênico e os significados de pertencimento, dor e libertação.
Bob Sousa – 116 Gramas – Peça para Emagrecer parte de uma narrativa autoficcional em que sua história se mistura com a da personagem. Como foi o processo de colocar o próprio corpo e suas experiências no centro da cena?
Letícia Rodrigues – Foi um processo longo que durou mais ou menos 05 anos. Percebi que eu precisava me instrumentalizar em dramaturgia pois chamar outra pessoa para assumir não ia dar conta de coisas que só depois eu descobriria, mas que só poderiam vir de mim. O ponto de partida foi a frase “a única coisa que eu não fiz para emagrecer foi uma peça”, a partir daí foram muitas experiências em laboratórios de criação com artistas como Janaína Leite e Maria Giulia Pinheiro que me ajudaram a pavimentar o caminho para a dramaturgia. Depois fui premiada com um edital de criação dramatúrgica, que me ajudou a construir um primeiro esqueleto, depois disso chamei o João Pedro Ribeiro para me ajudar a levantar as cenas e dirigi-las e o resto é história rsrsrs. A sensação de se colocar em cena é sempre muito dolorida, é uma ultra-exposição, claro que há a ficção para proteger certos aspectos, mas se eu pudesse concretizar uma imagem do que é essa sensação, eu diria que é como caminhar sobre aquelas pontes transparentes em montanhas muito altas, há alguma segurança, mas o corpo tem certeza que vai despencar.
Bob Sousa – A cada apresentação, A Gorda tenta emagrecer 116 gramas. O que esse número representa para você no plano simbólico e cênico?
Letícia Rodrigues – Há muitas interpretações possíveis, muita gente diz que é o número 8, 1+1+6 e, em diversos estudos holísticos o número 8 simboliza a morte, que é algo que eu falo e penso muito se tratando desse espetáculo. Acredito que o fazer teatral em si é sempre sobre as “pequenas mortes”, dos instantes, da cena, do momento, do olhar com o público e, enfim, para mim, esse número grudou na minha cabeça como uma obsessão e ele se apresentou para mim pelo erro. Eu errei mesmo uma conta, só que eu fiz mais dezenas de cálculos, tentando encontrá-lo novamente e nunca consegui. Então fiz um pacto com a vez em que ele se apresentou para mim, virou um totem, um milagre ou, como pessoas que veem a imagem de Nossa Senhora numa fatia de pão de forma depois de colocar na lancheirinha elétrica, se tornou a fé em algo que eu também não sei o que seria, mas que existe. É realmente como diz a música “a arte de viver com fé, só não se sabe fé em quê.”
Bob Sousa – O espetáculo trata do desejo de pertencimento e da pressão estética de forma poética e física. Como você articulou dramaturgia, coreografia e performance para dar corpo a essa jornada?
Letícia Rodrigues – Quando eu era criança era muito comum nas aulas de educação física ter um dia no mês no qual fazíamos “circuito”. A professora montava diferentes estações e por um determinado tempo tínhamos que realizar aquelas tarefas. Então, você poderia começar na estação de polichinelos e por 1 minuto tinha que tentar realizar o máximo de repetições possíveis. Isso foi um mote para mim, na minha cabeça essa peça precisava ser construída sobre um circuito físico, só que com o salto estético do teatro. Eu poderia fazer uma peça na qual eu ficasse declamando um solilóquio clássico sobre uma esteira ou bicicleta ergométrica. Só que o meu objetivo era queimar calorias artisticamente, entender se “fazendo uma cena de tragédia eu perderia mais calorias do que fazendo uma cena de teatro épico?” Fiz muitas experiências e, confesso, apesar de muita ciência, cálculos e experimentos, o corpo humano não é tão previsível e calculado como dizem. Então, através desse processo físico, fomos entendendo o que eu queria contar e como poderíamos transformar um exercício físico comum em cena. Eu sabia que queria dançar ballet clássico, então por um tempo achei que eu devesse ensaiar uma coreografia do ballet Giselle, por exemplo, mas a peça também vai exigindo coisas da gente. Essa alquimia vai se formando por essas concessões e conciliações. E assim foi-se revelando esse caminho.
Bob Sousa – Você afirma que o espetáculo é também uma cura, uma forma de seguir. Que transformações pessoais e artísticas esse trabalho trouxe para você desde a estreia?
Letícia Rodrigues – Fazer teatro é muito difícil, por si só, mas fazer teatro no Brasil é, muitas vezes, impossível. Esse trabalho me aproximou de artistas incríveis que não eram tão conhecidos da classe (por classe eu chamo pessoas que vivem do teatro na cena paulistana e que estão há muitos anos ocupando esse espaço) com uma visão mais ampla, híbrida do fazer teatral. Por exemplo, Lana Scott uma musicista, videomaker, soteropolitana, que convidou Pablo Vieira para fazer os motion graphics do nosso projeto audiovisual (projeções) e esses encontros foram algo que ampliou demais o meu olhar. Porque o projeto, que nasceu de mim, se tornou uma obra coletiva. Não é só meu. É da Natália Nery que compôs uma obra lindíssima de piano clássico para que eu dançasse uma coreografia idealizada por mim e Luaa Gabanini num figurino pensado para o meu corpo por Eliseu Weide; é de Camille Laurent que criou uma luz e Felipe Stucchi que adaptou para a necessidade de um teatro em outra cidade; é da Jéssyca Rianho e do João Pedro Ribeiro – que além de diretor também está junto – quando estão organizando a entrada do público; do Léo Birche quando organiza a gestão financeira e prática da execução; da Maria Luiza Graner que criou toda a identidade visual dos cartazes, programas e acessórios da peça… ou seja, colocar uma ideia no mundo é uma coisa, iniciar um processo criativo que se torna uma obra de arte teatral compartilhada é algo muito mais profundo. A maior transformação para mim foi a física, perdi 78 quilos nesse processo, mas artisticamente acho que consegui, mesmo com muita dificuldade e impeditivos, me formar como uma artista independente da cena contemporânea da minha cidade, ainda que a maioria das pessoas não me conheça. Tenho orgulho da nossa caminhada e entrega. Acredito muito no nosso trabalho e no amor e empenho que colocamos em cada apresentação. Por incrível que pareça, esse trabalho me fez enxergar as coisas com mais amor, mesmo que tanto ódio exista em tratar desses temas e frustrações.
Bob Sousa – Diante de um cenário que ainda marginaliza corpos fora do padrão, qual é a potência política de um solo como 116 Gramas? E que caminhos ele abre para a sua trajetória como artista?
Letícia Rodrigues – Sempre recebo mensagens de pessoas muito diferentes de mim que, às vezes, sequer compreendem questões como gordofobia, pressão estética e capacitismo dizendo que ficaram muito tocadas com as reflexões que o espetáculo gerou. A empatia sempre se apresenta ao público e isso me deixa muito tocada também, porque como artista da cena eu não consigo, ainda que eu queira, criar algo e ter a reação exata daquele público. Eu posso esperar que tal cena cause tal efeito, mas muitas vezes eu vou fracassar se esse for meu foco. Então, as interpretações são infinitamente mais amplas do que podemos sonhar. O público é sempre muito mais inteligente que quem cria a cena, na minha opinião, e recebo mensagens de pessoas que se sentem vingadas, abraçadas, ouvidas, expurgadas e até libertadas ao me ouvir falando tudo aquilo que falo e dançando tudo que danço. Acredito que essa sensação, a de se sentir um pouco menos sozinho no mundo, é o melhor que poderia esperar da obra que idealizei. É como me sinto quando chego no teatro com a equipe do espetáculo, uma sensação de “essa é a minha família também e eu não ando só”. Na minha trajetória, quero seguir desafiando a forma de se fazer teatro, estou escrevendo um novo espetáculo e dessa vez já vendo essa equipe comigo, já deixando lacunas de criação para que elus construam junto do texto, da direção e interpretações suas piras e vontades de cena. Acredito que teatro é sobre vontades, sonhos e coragem, há que se ter muita coragem mesmo. E sempre ouço isso quando saio para conversar com o público após o espetáculo “você é muito corajosa”. Sei que já pavimentamos um caminho que até há volta, mas vou optar por seguir nele com a coragem que adquiri colocando “116 gramas: peça para emagrecer” no mundo. Por fim, é um orgulho imenso para mim ver que os meus pais, amigos, familiares também se orgulham da minha existência no mundo, da habilidade que criei em habitar lugares, que por tanto tempo me impediram de ocupar, o sonho é que um dia não haja impedimento para mais ninguém.
Agradecemos ao Teatro Garagem, da atriz Anette Naiman, pela acolhida e cessão do ambiente onde realizamos o ensaio fotográfico que acompanha esta entrevista.