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VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Lavinia Pannunzio e Fran Ferraretto

Publicado em: 01/08/2025 |

Lavinia Pannunzio e Fran Ferraretto, por Bob Sousa

 

Em ADULTO, a atriz e dramaturga Fran Ferraretto propõe uma experiência cênica que tensiona a linha entre realidade e ficção. Com texto de sua autoria e sob direção da consagrada Lavínia Pannunzio, o espetáculo acompanha o processo de escrita de uma peça ao mesmo tempo em que mergulha nas fissuras de um relacionamento conjugal, revelando um emaranhado de questões contemporâneas como traição, saúde mental, maternidade e os limites do amor romântico. Com um olhar feminino afiado e profundamente sensível, Fran articula uma dramaturgia que não teme o desconforto nem a contradição. Indicada ao Prêmio APCA por sua dramaturgia no infantil Valentim Valentinho, a artista atua em ADULTO ao lado de Iuri Saraiva, Sidney Santiago Kuanza e Jennifer Souza, compondo uma narrativa em que a palavra é instrumento de escavação afetiva, e o palco, um lugar de confronto entre ideais e experiências. Nesta entrevista, Fran e Lavínia refletem sobre o processo de criação do espetáculo, as escolhas formais que o estruturam e o lugar da mulher na elaboração de discursos sobre a vida adulta.

 

Bob Sousa – ADULTO apresenta duas camadas simultâneas: a escrita da peça por uma das personagens e a crise conjugal que se desenrola. Como essa estrutura foi sendo construída durante o processo de escrita e quais desafios dramatúrgicos você encontrou ao entrelaçar essas duas realidades?

Fran Ferraretto – O meu primeiro desejo quando comecei a pesquisa para a peça Adulto, foi o de escrever uma história que gerasse identificação ao falar de um tema universal, que é o amor, mas que ao mesmo tempo desafiasse o olhar romantizado que normalmente está ligado a esse assunto. Entendi que uma estrutura dramatúrgica elíptica e dialógica ampliaria essa ideia, e complementaria a narrativa.

Eu escrevi uma peça dentro de outra peça. Não são só os conflitos dos personagens, tem também alguém que distanciado pensa, reflete e concretiza tudo aquilo, e acho que isso vai aproximar o público dos temas tão atuais que existem ali. Nessa linha em que a obra está sendo construída, existe a tentativa, a frustração, o não, e o real. Penso que de alguma forma isso nos une.

O grande desafio foi não deixar a história hermética e sem fluidez. E nesse sentido os diálogos ajudam muito, e criam a dinâmica necessária para a história acontecer.

Bob Sousa – A encenação aborda temas como machismo, saúde mental, maternidade e monogamia a partir de diferentes vozes e perspectivas. Quais foram os caminhos cênicos escolhidos para dar forma a essas discussões e como a direção de Lavínia Pannunzio contribuiu para que essas camadas ganhassem corpo no palco?

Fran Ferraretto – A Lavínia foi extremamente respeitosa comigo e com a peça desde o primeiro momento. Mandei o texto para ela, e no outro dia ela chegou falando de coisas que nem eu mesma enxergava. Ela atribui sentido a tudo a partir do ponto de vista da grande artista que ela é, e notou as camadas mais sutis que existem no texto imediatamente. Na sala de ensaio ela guiou uma investigação minuciosa pela dramaturgia, sempre com uma escuta muito atenta e sensível ao processo de cada ator, criando um espaço muito seguro para a troca entre a gente.

Mesmo antes de escrever as minhas peças autorais, eu já me considerava uma atriz com muito interesse pela palavra, sempre foi a base para tudo que eu fazia; e depois da minha primeira dramaturgia isso obviamente se intensificou, porque fico ainda mais íntima das entrelinhas, e isso me alimenta muito como artista. E a Lavínia criou um solo firme pra gente através de um estudo de mesa riquíssimo, e todo nosso entendimento coletivo ampliou muito a obra. Adulto vai abordar muitas questões sérias, como machismo estrutural e institucionalizado, maternidade, monogamia, trabalho, saúde mental, e sempre tivemos um ambiente protegido para o debate democrático e saudável que a peça necessita. Durante o processo muitos pensamentos e reflexões pessoais atravessaram a história, e vice-versa, e isso nos fortalece muito como equipe criativa, dentro e fora de cena.

Testemunhar o comprometimento, a curiosidade, a dedicação e a inteligência da Lavínia é uma honra indescritível. Ela nos dirige a partir da essência do teatro, e tem sido incrível receber os estímulos que ela oferece, e jogar com esses craques da cena, Iuri Saraiva, Sidney Santiago Kuanza, e Jennifer Souza. Grandes artistas que eu sempre admirei, e que agora trabalhando, respeito ainda mais. Tem sido extraordinário e apaixonante.

Bob Sousa – A sua escrita dramatúrgica parte de um olhar feminino sobre a vida adulta, com todas as suas contradições. Como você pensa o papel da mulher na dramaturgia contemporânea e de que modo essa perspectiva influencia as narrativas que você escolhe contar?

Fran Ferraretto – Me entender mulher dentro dessa sociedade que ainda nos oprime muito, influencia completamente tudo que eu faço. Não só como artista, mas na minha existência de forma geral, e acho que nem poderia ser diferente.

E pensando no fato de eu mesma escrever e realizar os meus projetos, sinto que existe uma pressão constante em se provar e mostrar que é boa o suficiente. Acho que isso é um desafio da arte e da cultura em geral no nosso país, mas também enquadro essa resistência em um recorte de gênero.

Conheço inúmeras dramaturgas maravilhosas que tiveram que lutar o dobro para ocupar um espaço de credibilidade, isso porque o lugar da escrita sempre foi do homem. Ainda bem que isso está mudando, mas a que custo?

E inclusive foi refletindo sobre muitas questões como essas, que decidi que a minha peça Adulto, também teria essa linha de abordagem.

A minha dramaturgia toca em muitos assuntos, mas dentro da história existe também a curva de emancipação de uma autora, que é o meu desejo de liberdade para todas as mulheres, independente da profissão.

Ter a oportunidade de estrear esse espetáculo é como dizer pro mundo: podemos e devemos falar sobre tudo, mas não dá pra esquecer de coisas básicas e que exigiram de nós muita luta. Ainda não dá pra descansar nesse ponto. Essa bandeira não está na frente da peça, e nem quis escrever uma narrativa militante, definitivamente não é sobre isso, mas toda obra é política, e acho que o nosso poder está nisso.

Bob Sousa – O texto de Fran Ferraretto propõe uma estrutura dramatúrgica complexa, onde realidade e ficção se atravessam continuamente. Como foi o seu processo de leitura e tradução cênica desse jogo de espelhos? Que princípios orientaram sua direção para manter essas camadas coexistindo de forma clara e sensível?

Lavínia Pannunzio – Eu fui atraída pelo texto da Fran, como a mariposa é atraída pela luz. A escrita da Fran nos orienta no mergulho desse oceano profundo que pode ser um texto para o teatro. E cá estamos nós – eu, Fran, Jennifer, Sidney e Iuri –, unidos a esse projeto em que a autora está na cena e isso cria um sem limite de situações teatrais. É o puro sumo da metaficção. Não que a realidade e a ficção se atravessem, é que a ficção é quebrada algumas vezes, e podemos ver a estrutura da narrativa, e nos lembramos de que estamos dentro de um teatro. E é como se estivéssemos dentro da cabeça dela. E a obra se abre diante do público ao mesmo tempo em que ele acompanha a história dos 2 casais, em cujas relações estão inscritos o ocidente, o processo civilizatório, a força das religiões monoteístas judaico-cristãs, as hierarquias, o capitalismo, os privilégios,  o meio ambiente, a IA, o ideal da família de bem, As relações, os perrengues, os desencontros, os encontros, as validações, a maternidade etc etc etc

Bob Sousa – A encenação de ADULTO exige uma escuta muito fina entre os atores para que os conflitos e silêncios ganhem densidade no palco. Como você trabalhou a direção de elenco para construir relações tão afinadas, especialmente em temas delicados como traição, maternidade e saúde mental?

Lavínia Pannunzio – Escuta é uma excelente palavra, sobretudo quando um texto abre essa miríade de assuntos e temas e questões. Esse é o trabalho quando a gente se senta ao redor de uma mesa e “abre” a obra. E nessas aberturas a gente descobre, além dos temas e questões do texto, a forma do jogo, como migrar da ficção pra estrutura da obra e transitar entre as linguagens. E escolhe os procedimentos que vai adotar pra que o jogo que a dramaturgia propõe, se realize plenamente em cena.

Bob Sousa – A peça propõe um olhar crítico sobre o amor romântico e os pactos afetivos contemporâneos, a partir de uma perspectiva claramente feminina. De que forma essa lente influenciou suas decisões estéticas e políticas durante o processo de encenação?

Lavínia Pannunzio – O amor romântico já era, né? E os pactos afetivos contemporâneos, bem… eles implicam muitas coisas, mais ou menos como as letras pequenas nos contratos. É preciso olhar pra tudo isso com lupa. E não basta que seja uma perspectiva feminina. Onde estão as mulheres e os homens em suas relações, sejam elas da ordem que forem. Como funcionam esses pactos entre casais brancos? Brancos e heteros? Brancos e homoafetivos? Brancos e transgêneros? E entre os pretos? Pretos heteros? Pretos e homoafetivos? Pretos e transgêneros? E entre os casais racializados? A diversidade impõe novas regras e premissas.

A Fran racializou o texto dela. Ela fez uma escolha política quando escreveu um texto em que deliberadamente há 2 casais. 1 branco e 1 preto. E elencou questões para cada casal. E colocou-os como melhores amigos. E agora que estamos em obras, vamos entendendo as dinâmicas nessas relações, as hierarquias, os milhares de equívocos, o que está por trás de cada um desses 4 personagens… muita escuta nessa hora. Escuta artística e política, claro.