
O boneco-avatar de Ítalo Laureano, por Bob Sousa
Após temporadas de sucesso em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro, o grupo mineiro Quatroloscinco – Teatro do Comum chega a São Paulo com o espetáculo Velocidade, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB SP). A nova criação, dirigida por Ítalo Laureano e Ricardo Alves Jr., com dramaturgia de Assis Benevenuto e Marcos Coletta, propõe uma pausa diante da aceleração do mundo contemporâneo. A peça se estrutura como um livro, com capítulos que se abrem como páginas de uma experiência poética, sensorial e filosófica sobre o tempo. Em cena, corpo, palavra, som e imagem formam um espaço de desaceleração, onde o público é convidado a habitar outro ritmo e repensar sua relação com o presente.
Nesta entrevista, o diretor Ítalo Laureano reflete sobre o processo criativo de Velocidade, a construção da visualidade do espetáculo e a pesquisa do Quatroloscinco em torno da coletividade, da lentidão e da potência poética do teatro.
Bob Sousa – Velocidade parte de uma provocação sobre o ritmo da vida contemporânea. Como o grupo transformou essa reflexão sobre o tempo em experiência cênica e sensorial?
Ítalo Laureano – O espetáculo “Velocidade” propõe a imagem metafórica de que o teatro é uma máquina de desacelerar o tempo – uma provocação poética que fazemos ao público. Essa ideia chega até nós na sala de ensaios, através da escritora mexicana Vivian Abenshushan, autora do ensaio “Notas sobre os doentes de velocidade” – ela cita a arte e a literatura como possíveis “maquinas de desacelerar o tempo” –, e logo pensamos: o teatro é a nossa máquina de desacelerar o tempo!
O teatro, é um acontecimento no qual a poíesis se dá num mesmo espaço-tempo, “no aqui agora”, é através do encontro entre os criadores e espectadores que a peça passa a existir. E para isso apostamos na presença, em uma atuação que esteja calcada no jogo entre os atores e os elementos cênicos com o público, e isso requer um exercício de escuta ativa entre todos os agentes nesta fruição.
Neste sentido foi necessário fazer escolhas para que a construção da obra avançasse não só de forma reflexiva sobre o tempo, mas também sensorial. Uma das nossas apostas foi iniciar a peça com um áudio de seis minutos (no escuro) que narra um sonho. Esse momento inicial já convida o publico a ser partícipe da obra num jogo contínuo que se estenderá por toda a peça. O sonho é um eixo fundamental na nossa construção cênica, pois os sonhos, muitas vezes, não possuem uma lógica convencional de tempo, espaço e lugar. Por isso chamamos essa obra de peça-sonho, o que nos possibilitou investir verticalmente em imagens oníricas e sensoriais.
Bob Sousa – O espetáculo se apresenta como uma “peça-livro-sonho”, com capítulos, prefácio e versos de capa. De que forma essa estrutura literária influenciou a encenação e o trabalho dos atores?
Ítalo Laureano – Essa estrutura literária influencia na encenação na medida em que ela é para nós, e para o público, uma espécie de “âncora”, na qual pactuamos, já no início, a própria estrutura da peça: capa, sumário, dedicatória, 7 capítulos, contracapa. Esse pacto com o espectador é fundamental, pois ele oferece o caminho, a guia que conduzirá a leitura da obra do início ao fim. Essa ideia da peça-livro surge na sala de ensaio, como proposta dos dramaturgos Assis Benevenuto e Marcos Coletta, numa perspectiva de acionarmos formas mais analógicas de contar histórias.
Bob Sousa – A visualidade do espetáculo é de grande delicadeza: luz, objetos e corpos se transformam a cada quadro. Como se deu a construção dessa linguagem visual em parceria com Ricardo Alves Jr. e a equipe de criação?
Ítalo Laureano – Nos sentimos bastante desafiados ao iniciarmos esse processo de criação, vínhamos de dois últimos trabalhos – “Tragédia” (2019) e “Luz e Neblina” (2024) –, cuja pesquisa da encenação se debruçou na mistura entre teatro e audiovisual. Em ambas utilizamos a câmera manipulada ao vivo no palco e uma tela de projeção para que o publico, então, assistisse a uma obra híbrida entre o teatro e cinema.
Em Velocidade, o desafio que eu e Ricardo nos colocamos, como direção, veio da pergunta: como fazer uma obra que transitasse entre teatro e o audiovisual sem usar o recurso da tela de projeção? Foi aí que iniciamos uma pesquisa, mais relacionada à linguagem propriamente dita da obra, pensar como teatro e cinema podem ter pontos em comum, pontos que marcam suas diferenças e etc. A partir daí chegamos a ideia de nos aprofundar no binômio “audiovisual” e, dividindo a palavra em duas, percebemos que poderíamos trazer para a cena as duas palavras separadas: áudio e visual. Assim fomos aprofundando com cada artista da equipe de criação, como Marina Arthuzzi, na iluminação, numa construção através do corte, recorte, ambiência, temperatura de cor, tempos de transição, zoom, planos e fomos entendendo como as duas linguagens (teatro e cinema) dialogam entre si sem o suporte da tela de projeção. A direção de arte do Luiz Dias também seguiu o mesmo processo, criando uma espacialidade aparentemente simples, porém muito sofisticada. Com poucos elementos compomos todas as cenas, pensando o cenário e os objetos de cena como dispositivos de ação e transformação da atuação dos atores em jogo cênico. A trilha sonora de Barulhista também tem um papel fundamental nessa perspectiva de construção em Velocidade: é o “áudio” da palavra que dividimos. Além disso, temos trilhas sendo executadas ao vivo quase que durante todo o espetáculo. A trilha de velocidade foi criada como uma ambiência sonora de cinema mesmo, com várias pistas tocando ao mesmo tempo, com sobreposições de áudios que criam imagens que vão além do texto e que convidam o espectador a imaginar espaços e tempos.
Como diretores e encenadores apostamos numa atuação que se aproxima em muito com a atuação utilizada no cinema, utilizando “menos energia no espaço e mais no tempo”, com uma voz mais baixa e um corpo presente, porém menos “teatral”, no sentido mais convencional do termo. Logo entendemos que o uso do microfone potencializaria essa ideia de peça-livro-sonho e isso foi definidor na estética da obra, pois exigiu um trabalho intenso de direção de atores para equalizarmos o conjunto das atuações.
Bob Sousa – A presença dos bonecos miniaturizados dos próprios atores gera uma potente imagem de espelhamento e crítica à aceleração tecnológica. Qual o papel dessa cena dentro do conceito de Velocidade?
Ítalo Laureano – Os bonecos atuam principalmente como duplos dos atores, como nossos avatares e simulacros. Nesse sentido, aparecem como uma crítica ao nosso tempo contemporâneo, em que cada vez mais habitamos plataformas digitais que nos representam, nos conectam, mediam nossos afetos e desejos. Hoje em dia, criamos vários avatares com nossas imagens, muitas vezes editadas e idealizadas. Em Velocidade, nossos bonecos surgem em todas as cenas como desdobramentos/duplos desse sujeito e, ao final, na cena Queda Livre Talk Show, surgem numa espécie de duelo entre criador e criatura. Nesse embate, lançamos questionamentos sobre como estamos lidando com nossas subjetividades. Essa provocação nos remete às redes sociais, às inteligências artificiais e à virtualização das relações, não somente nesse universo tecnológico, mas às nossas escolhas durante a vida, nossas crenças, nossas vitórias, fracassos, enfim, a nossa histórica enquanto sujeito e sociedade.
Bob Sousa – O Quatroloscinco tem uma trajetória marcada pela criação coletiva e pela pesquisa contínua sobre o teatro como experiência comum. Em Velocidade, o que se revelou de novo nesse modo de trabalhar o tempo, a palavra e o encontro com o público?
Ítalo Laureano – Todos os nossos processos criativos se iniciamos com a pergunta: o que queremos dizer agora? Essa pergunta simples, mas perspicaz, busca ativar nossos desejos pessoais que servirão de material para uma obra coletiva. Dessa forma, o próprio ato de construção de uma obra coletiva nos tempos atuais já é algo bastante político, uma vez que vivemos em um mundo cada vez mais individualizado. Criar coletivamente, mais do que uma forma estética, é um modo político que guia o trabalho Grupo Quatroloscinco. Uma forma de habitar esse mundo contemporâneo tão focado na lógica capitalista e neoliberal de produção. Nossa utopia diária é tentar enxergar outras perspectivas de mundo através do teatro e pensar o mundo coletivamente, não somente nas peças, mas como grupo. Sempre falamos que o que as pessoas assistem no palco é 5% do nosso trabalho. Os outros 95% está no convívio, na produção, na gestão, na administração dos afetos e dos desejos, na construção da nossa história coletiva.
Bob Sousa – O retrato que acompanha esta entrevista mostra o seu boneco-avatar, uma imagem que desloca a presença física para uma espécie de duplo poético. Que sentido tem, para você, essa representação em miniatura e como ela dialoga com a ideia de tempo e identidade em Velocidade?
Ítalo Laureano – O boneco-avatar não sou eu, mas, por outro lado, ele é não sendo! Essa presença física e paradoxal do meu duplo poético me desloca e, mais do que o reflexo do espelho, ele é o rebote do que represento neste mundo. E uma representação será sempre algo que tenta ser, almeja, logo ele não é, e isso já é muita coisa… Acredito que isso diz muito sobre a ideia de tempo em camadas contida em Velocidade. O que também me remete à tentativa de construção de identidade do sujeito no contemporâneo. Ao final, é quase como se chegássemos na pergunta clichê: “Quem sou eu?”. E expandindo um pouco mais: “Quem somos nós?”