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VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Isabella Lemos

Publicado em: 20/08/2025 |

Isabella Lemos, por Bob Sousa

Com uma carreira marcada pela versatilidade e pela potência cênica, Isabella Lemos integra o elenco da nova montagem do Círculo de Atores, A Médica, em cartaz no auditório do MASP sob direção de Nelson Baskerville. Na peça, a atriz vive a Ministra da Saúde, figura que simboliza os tensionamentos entre ciência, política e opinião pública em tempos de hiperexposição digital e polarização ética. A obra, escrita por Robert Icke e inspirada no texto Professor Bernhardi (1912), de Arthur Schnitzler, desafia o público a refletir sobre identidade, poder institucional e as zonas ambíguas do julgamento contemporâneo. Em entrevista, Isabella fala sobre sua experiência no espetáculo, as camadas da personagem que interpreta e os projetos que movimentam seu percurso artístico.

 

Bob Sousa – Sua personagem em A Médica, a Ministra da Saúde, está diretamente ligada às tensões entre poder político, ética pública e a repercussão social de um caso médico. Como foi construir essa figura que carrega tantas camadas simbólicas dentro de um contexto tão atual?

Isabella Lemos – A construção da Ministra da Saúde em A Médica foi um processo minucioso e cheio de pequenas especificidades, pois compreendi, desde o início, a responsabilidade simbólica e política que a personagem carrega. Ela está no centro de um conflito ético e social de grande repercussão e exerce um poder midiático capaz de moldar a narrativa pública do caso. Meu trabalho como atriz foi revelar esse poder — de forma contida, elaborada, sem recorrer a figurino ostensivo ou gestos exagerados.

Trabalhei intensamente corpo, voz e modos de falar para que sua presença fosse sentida no espaço. É aquela pessoa que entra em cena e imediatamente se impõe: ela tem poder. Mas é um poder silencioso, preciso. Cada palavra tem um propósito; cada gesto, um cálculo. Nada nela é gratuito. Trata-se de uma personagem altamente estratégica, que se apresenta como alguém disposta a ajudar — mas que, ao mesmo tempo, defende com clareza os próprios interesses.

Foi uma construção que exigiu escuta atenta, pois ela manipula sem parecer manipuladora. Fala para ser ouvida, mas, mais do que isso, para provocar efeito. O que me guiou foi a tentativa de acessar essa mente analítica, racional, quase cirúrgica — e o desafio de dar corpo a uma inteligência política que atua nos bastidores, moldando realidades sem elevar a voz, usando a força do raciocínio, a franqueza, o apelo emocional e a manipulação.

Bob Sousa – O texto de Robert Icke propõe deslocamentos de gênero, raça e geração para provocar o espectador. Como esses atravessamentos impactaram o trabalho de elenco e, especialmente, sua leitura da personagem?

Isabella Lemos – O atravessamento entre gênero e cor da pele em A Médica é uma das camadas mais potentes da encenação. Essa escolha dramatúrgica e de elenco nos obriga — a nós, atores, e ao público — a romper com rótulos imediatistas, leituras fáceis e previsíveis.

No meu caso, ao interpretar a Ministra da Saúde, esse elemento tem um efeito particularmente interessante: sou uma mulher jovem encarnando uma figura que, pelo grau de poder e autoridade que exerce, talvez fosse comumente associada a uma mulher mais velha — ou, em muitos contextos, a um homem.

Essa desconstrução é essencial, pois o texto e a encenação nos convocam, o tempo todo, a dissociar aparência de função. A personagem em cena não está ali porque “parece ser”, mas porque afirma uma presença, um discurso, uma ação. Vivemos, assim, um deslocamento constante, que nos mantém em estado de alerta, como artistas. Não nos acomodamos a um tipo fixo — e isso é desafiador e potente para uma encenação engajada.

Na dinâmica da peça, essa tensão se impõe com força. A cada revelação de gênero ou cor da pele que contraria a expectativa visual do público, cria-se uma fricção. E essa fricção atravessa tanto o ator em cena quanto o espectador na plateia. A surpresa é real, viva — e exige de nós uma escuta e uma entrega que não se dão no conforto, mas na presença radical. Isso, para mim, é profundamente político — e profundamente teatral.

Bob Sousa – A encenação incorpora elementos de videomapping, projeções e uma linguagem visual que dialoga com redes sociais e mídias digitais. De que forma esse universo expandido da cena interferiu na sua presença em palco?

Isabella Lemos – A linguagem visual desta encenação — com videomapping, projeções e elementos que dialogam diretamente com as redes sociais e as mídias digitais — interfere profundamente na presença de todos em cena, mesmo quando não está integrada diretamente ao momento dramatúrgico de um personagem específico, como é o caso da minha personagem, a Ministra da Saúde.

Nas minhas cenas, essas imagens aparecem com menos frequência, mas ainda assim criam uma atmosfera de urgência que atravessa toda a peça — uma urgência que atinge a todos, inclusive, com força, a minha personagem. A velocidade com que uma informação se transforma, a forma como uma história se desdobra e se torna outra nas redes, tudo isso molda o ritmo da encenação e exige de nós uma presença mais precisa, afiada, atenta — tão veloz quanto o fluxo das redes sociais.

A peça parte de um conflito complexo: uma médica judia impede que um padre cristão dê a extrema-unção a uma paciente em estado terminal. É um gesto ético, profissional — num primeiro momento, ela pensa apenas no bem-estar da menina. Mas, à medida que novas informações, surpresas e revelações surgem, tudo se desvirtua, e as dúvidas se multiplicam. Entram em cena a religião, a política, o racismo, o sexismo, a misoginia — e a discussão inicial sobre o gesto se esvanece. A médica se torna alvo de julgamentos públicos violentos e descontextualizados.

É nesse contexto que minha personagem atua. A Ministra da Saúde lida não apenas com a crise institucional, mas com o peso midiático de uma narrativa que escapou ao controle. O impacto das projeções em cena está em tudo: no ritmo, na tensão, na forma como o poder é encenado. É como se estivéssemos todos dentro de uma arena pública, onde cada gesto é potencialmente viral, e as narrativas são constantemente disputadas, moldadas por opiniões, ódios e hashtags.

Isso atravessa a minha personagem. A ministra sabe que está sendo vigiada — e também vigia cada desdobramento dessa história. Essa vigilância constante se reflete no meu corpo, na voz, na tensão, e na maneira como a personagem fala e se posiciona estrategicamente.

Bob Sousa – A Médica reúne um elenco potente e diverso, sob a direção precisa de Nelson Baskerville. Como foi o processo colaborativo de criação com esse grupo de artistas e como você avalia a condução de Baskerville na construção dessa narrativa tão densa e contemporânea?

Isabella Lemos – O processo de criação de A Médica foi, para mim, profundo e muito especial — e não tenho dúvidas de que esta é uma das direções mais maduras e impactantes de Nelson Baskerville até agora. E não digo isso apenas por estar em cena, mas por ter acompanhado o processo de dentro. Tive o privilégio de observar de perto a força criativa de Nelson em ação. Sua direção está em um momento de excelência — lúcida, precisa e absolutamente conectada com o tempo em que vivemos.

Sua criatividade esteve o tempo todo latente, borbulhante. Ele sabia exatamente onde queria chegar, mas também conhecia bem os riscos e armadilhas que o texto propõe — e não fugiu deles. Ao contrário, enfrentou-os com diálogo e sabedoria. Foi um processo marcado por conversas intensas, debates éticos e políticos com o elenco. Um trabalho pautado pela escuta verdadeira, pela confiança mútua e pelo profundo respeito à inteligência do ator e ao poder transformador do teatro.

O elenco foi escolhido com precisão: um grupo potente, experiente e de vozes diversas. Algumas pessoas eu já conhecia, como a brilhante Clara Carvalho, parceira de cena e de projetos com quem já trabalhei várias vezes, e a maravilhosa Adriana Lessa, uma amizade e um presente que a vida me deu. Também foi um prazer enorme dividir o palco, pela primeira vez, com Sérgio Mastropasqua, fundador do Círculo de Atores, com quem eu já queria trabalhar há muito tempo e que me acolheu com muito carinho e com muita generosidade. No elenco também trabalhei pela primeira vez com pessoas incríveis como Chris Couto, Kiko Marques, Anderson Müller, César Mello, Cella Azevedo, Luiza Silva, Thalles Cabral , e agora, Nill Marcondes, que entrou para substituir o Cesar. Foi — e tem sido — uma verdadeira comunhão de trajetórias e visões.

Eu já tinha o desejo de trabalhar com Nelson, e fico muito feliz que esse encontro tenha se dado justamente com este texto, nesta montagem, com essa equipe criativa e com uma personagem tão densa quanto a Ministra da Saúde. Acredito que houve aqui um encontro feliz entre elenco, criadores, a contemporaneidade do Nelson, seu pensamento engajado e a complexidade do texto. Este espetáculo nasceu num momento muito maduro dele como diretor, num ponto importante meu como atriz, e com um elenco absolutamente brilhante. Sem dúvida, foi um processo transformador — artística e politicamente.

Por fim, é preciso destacar a produção impecável do Círculo de Atores, de Selene Marinho e André Roman, que acolheu o projeto com um profissionalismo raro, fundamental para que o processo se mantivesse focado nas questões artísticas e técnicas da peça de Robert Icke.

Bob Sousa – Quais são os próximos passos na sua trajetória? Pode compartilhar com a gente algum projeto futuro, desejo artístico ou colaboração que esteja em andamento?

Isabella Lemos – Atualmente, estou envolvida em três projetos teatrais em pré-produção e no desenvolvimento do meu primeiro roteiro autoral para o audiovisual. Um deles é uma montagem de Molière, idealizada com meu querido amigo Fúlvio Filho — um sonho antigo que ganha forma ao lado de parceiros talentosos. Traduzo também um monólogo de Dennis Kelly, meu terceiro trabalho com esse autor brilhante, que será dirigido por Clara Carvalho. Além disso, preparo um novo espetáculo com direção de Fernando Philbert, a partir de texto de Ibsen, em parceria com Iuri Saraiva.

Paralelamente, trabalhamos para retomar duas peças. A primeira é Uma Lei Chamada Mulher, de Consuelo de Castro, com direção de Lenise Pinheiro e co-direção de Iris Cavalcanti — um marco na minha trajetória, em que tenho a honra e a responsabilidade de dar voz à história de Maria da Penha. Interrompida pela pandemia, essa peça se tornou uma missão de vida, e sonhamos em levá-la novamente aos palcos, em São Paulo e por todo o Brasil. A segunda é Escombros, outra obra de Dennis Kelly, também dirigida por Clara Carvalho, que merece nova temporada após uma estreia promissora.