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VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Gui Miralha

Publicado em: 19/07/2025 |

Gui Miralha, por Bob Sousa

 

Atriz egressa da EAD como a primeira mulher trans reconhecida documentalmente com nome social a ingressar na instituição, Gui Miralha marca presença em Bodas de Sangue com potência, sensibilidade e rigor. No espetáculo dirigido por Dinho Lima Flor e com direção musical de Rodrigo Mercadante, ela interpreta uma mulher cis, grávida, com um filho no colo. Essa escolha de elenco não apenas desloca estigmas, mas amplia as possibilidades de representação no teatro contemporâneo. A montagem ocupa o Teatro de Contêiner Mungunzá, espaço cultural ameaçado pela especulação imobiliária. Em meio à resistência política e poética, Gui empresta seu corpo a uma narrativa de desejo, repressão e liberdade, reafirmando o teatro como campo de invenção e transformação. Nesta conversa, Gui compartilha seus processos, reflexões e desafios ao dar vida a uma obra tão densa quanto atual.

 

Bob Sousa – Bodas de Sangue propõe uma travessia poética entre Lorca e a herança de Ilo Krugli. Como esse diálogo entre os dois criadores influenciou o seu trabalho em cena?

Gui Miralha – Nossa, influencia de uma maneira muito profunda. O que eu quero dizer é: estamos falando de um projeto que se encontra em águas profundas. Eu insisto nessa imagem porque, quando o Dinho Lima Flor e o Rodrigo Mercadante chegaram com a proposta, não era algo superficial, não era só “um texto bonito para montar”. Eles chegaram carregando as memórias deles. Trouxeram as gerações que antecederam a nossa. Trouxeram história, experiência, o amor pelo ofício. Eles vieram com algo muito maior do que uma encenação: vieram com a generosidade de dividir um legado.
Porque eles não estão falando só do Lorca, mas do Ilo Krugli, do Vento Forte, da trajetória que construíram juntos e que agora abraça a gente. É lindo perceber essas camadas de tempo se acumulando e se debruçando sobre o nosso trabalho. E tudo isso é muita coisa. É uma responsabilidade imensa. E, ao mesmo tempo, muito corajoso e generoso da parte deles abrir esse espaço para nós. Porque o que eles trazem não é só memória. Está no passado, é verdade, mas pulsa no presente.
E eu, sendo uma atriz mais jovem, tanto na idade quanto na trajetória, compreendi que precisava me colocar em escuta ativa. Não podia me fechar à proposta desses dois homens de teatro, porque eu acredito nisso: uma atriz é feita do acúmulo. Eu sou um acúmulo. De diretores, de dramaturgos, de parceiros de contracena. Cada processo me arrebata e me compõe. Então, estar porosa para essa troca foi também um gesto de respeito — ao legado deles e à atriz que eu quero e tento ser.
E tudo isso me toca num lugar extremamente humano, vivo e apaixonante. Porque eu sou uma atriz obcecada (risos). E falo isso como qualidade. Eu sou uma atriz que dorme e acorda com o texto (risos). E eu acredito no processo. Mesmo! Claro que há falhas, desencontros, mas nada que anule a potência de um bom encontro: com o texto, com a encenação, com os diretores.
Então, quando eu penso em Lorca, no Ilo, no Vento Forte, na Companhia do Tijolo… Nessa coreografia de gerações… Para mim é uma grande ode ao teatro. Ao nosso teatro, ao teatro brasileiro. Ao teatro de resistência, ao teatro dos encontros. Porque, no fim das contas, foi no teatro que eu encontrei a minha galera.

 

Bob Sousa – A encenação parece buscar, como apontam os diretores, as lacunas e os excessos deixados pelo texto original. Que espaços simbólicos ou afetivos você encontrou ao habitar sua personagem nesse processo?

Gui Miralha – Engraçado você perguntar isso, porque me lembrei de uma frase do meu primeiro espetáculo, lá em 2008, quando eu tinha 13 anos: “O espetáculo muda, logo o espectador terá de mudar”. Talvez essa lembrança tenha voltado justamente porque essa montagem de Bodas de Sangue me fez pensar nesse percurso — o do tempo e da evolução.
Se a gente for pensar nas tais lacunas ou excessos do texto original, o que eu sinto é que, ainda bem, caminhamos muito. O texto do Lorca é da década de 1930. A montagem do Ilo Krugli com o Vento Forte, que inspirou a nossa, foi em 2004. E agora, em 2025, estamos revisitando. E ele segue alarmantemente atual. Isso significa: avançamos, mas não o suficiente.
Na minha personagem — a Mulher de Leonardo — eu encontrei a realidade de mulheres da minha própria família. Tias, primas, uma das minhas irmãs. Então, o lugar afetivo que habito com essa personagem não é só simbólico: é íntimo. Eu a reconheço. E, reconhecendo, precisei também me questionar: o que dessa mulher já não cabe mais hoje? O que foi possível superar? Teve avanço? E o que, infelizmente, persiste? Foram essas perguntas que me cercaram ao longo do processo — inquietações que me colocaram diante de mim mesma e das mulheres que caminham ao meu lado.
Interpretá-la foi prazeroso e dolorido. Como atriz, foi um exercício técnico de compreender aquele texto cheio de frases lorquianas. Não se trata de um texto qualquer. Exige fôlego e certa predisposição trágica (risos). Agora, como mulher, foi um chão difícil de pisar. Porque eu conheço aquele sentimento: o da insegurança, o de abrir mão do amor próprio tentando salvar uma “relação”. Eu realmente conheço. Logo, habitar essa mulher foi também precisar visitar as minhas próprias feridas. E, a partir daí, acentuar o que precisava ser dito e ressignificar o que já não pertence ao nosso tempo. Esse foi o desafio com a Mulher de Leonardo: reconhecê-la e atualizá-la.
E talvez o momento mais simbólico desse processo tenha sido o encontro com a Karen Menatti — atriz que viveu essa mesma personagem em 2004, na montagem do Vento Forte. Conhecê-la, ouvi-la, receber dela um par de brincos que me acompanharam durante toda a temporada… Foi como receber uma benção. Sempre que entrava em cena, com aqueles brincos, sentia que estava entrando de mão dadas com ela, como se a história dela e a minha se emaranhassem na continuidade dessa mulher. E isso sempre foi o barato do teatro para mim: é sempre pelo encontro. Entre tempos, entre gerações, entre mulheres. É lindo!

 

Bob Sousa – Você interpreta uma mulher cis, grávida e com um filho pequeno. Como foi o processo de se apropriar dessa personagem, considerando também o impacto político e simbólico de uma travesti ocupar esse lugar no palco?

Gui Miralha – É o tal mundo ideal que nós, mulheres trans e travestis, reivindicamos dentro do nosso ofício, que é o direito de contar outras histórias — narrativas que não precisam, necessariamente, estar vinculadas à nossa identidade de gênero ou à nossa trajetória de exclusão. Porque assim como as atrizes cis, nós também desejamos habitar outros papéis, acessar esse lugar do lúdico, do ficcional, do simbólico, que o teatro oferece. Nós também queremos o direito ao imaginário. Queremos ser mulheres grávidas, executivas, heroínas, vilãs… Assim como podemos, e também queremos contar nossas próprias histórias.
Claro que há uma potência política em subir no palco e falar sobre nós mesmas — sobre o extermínio, a exclusão, o apagamento. Afinal, vivemos no país que mais mata travestis no mundo. Isso precisa ser posto. Porém não queremos apenas isso. Queremos o direito de ocupar qualquer lugar da cena. E esse trabalho, especificamente, significou muito para mim nesse sentido: interpretar uma mulher cis, grávida, mãe, vivendo uma relação que está ruindo, dentro de um contexto de pobreza, foi também afirmar que nós podemos e somos capazes de estar em qualquer lugar da ficção.
Porque, no fundo, o teatro é ficção. Mesmo quando parte da realidade. Mesmo quando se trata de questões reais e urgentes. Quando estamos no palco, estamos a serviço de uma narrativa. E não há motivo algum para que nossos corpos sigam sendo excluídos desse espaço. A minha presença no papel dessa mulher é, incontornavelmente, política. Foi importante, desde o início, defender esse lugar. E me alegra ter tido o respaldo dos diretores para permanecer nesse papel, sobretudo dentro de uma escola (Escola de Arte Dramática – ECA/USP) ainda majoritariamente cisgênera.
E há um ponto que me emociona muito: ver uma plateia, em sua maioria cis, assistindo a uma travesti habitar um espaço de maternidade. Esse ato, para mim, é revolucionário. Porque a maternidade nos é negada. Quando uma travesti diz que deseja ser mãe, o mundo questiona. O palco, então, se torna um campo precioso para naturalizar essa imagem. Não só como ficção, mas como possibilidade concreta de existência.
E isso tudo conversa diretamente com a minha pesquisa, enquanto atriz, de buscar papéis que me permitam escapar da caricatura e da imposição de marginalidade. Sempre que posso, escolho ou idealizo personagens que me oferecem a chance de expandir o imaginário do que uma atriz travesti pode ser e representar.
Então, sim, habitar essa personagem foi estratégico para reivindicar o direito de estar em qualquer história. E de sonhar com o dia em que isso, uma travesti grávida por exemplo, não precise mais ser justificado. Que se torne comum: várias de nós, dividindo o palco, cada uma contando a história que desejar contar.

 

Bob Sousa – ⁠Você foi a primeira mulher trans a ingressar na EAD com reconhecimento documental e nome social. Como essa trajetória formativa influenciou sua presença artística em uma obra como Bodas de Sangue, que trata de estruturas sociais opressoras?

Gui Miralha – Pois é… Eu sou do interior, de Sorocaba. E digo isso porque minha formação como atriz começa ali. Foi naquela cidade que entrei para meu primeiro grupo de teatro (Grupo Descobrir Teatro), onde atuei por quase uma década, sendo dirigida sempre pelo mesmo diretor (Carlos Doles). Sorocaba é uma cidade que abriga profissionais de uma sensibilidade ímpar, sabe? Foi lá que aprendi o valor do ofício, a afinar a atenção e a compreensão de que ser atriz é um trabalho construído com rigor, entrega e paixão. Foi minha primeira escola – e talvez a mais decisiva.
Em 2019, aos 25 anos, resolvi tentar a Escola de Arte Dramática da USP. Eu carregava aquela fantasia de quem vem do interior: a ideia de que São Paulo era muito mais avançada, mais aberta, mais inclusiva. Mas não foi exatamente o que encontrei. Passei pelas três fases do processo seletivo, entre 900 candidatos, e fui uma das 20 aprovadas. Lembro perfeitamente do momento em que saiu o resultado e uma veterana me disse: “Parabéns, você é a primeira travesti a entrar na EAD”. E aquilo me causou um certo estranhamento. Porque quem me acolheu ali foram duas outras travestis, a Morgana Olívia Manfrim e a Andrea Rosa Sá. Depois compreendi: eu era a primeira reconhecida oficialmente, a primeira a ingressar com o nome social. Mas não a primeira a existir naquela instituição. Outras vieram antes. Existiram sem serem reconhecidas. Isso significa, basicamente, apagamento. É muito violento!
Então, sempre que registram que fui a primeira, eu gosto de ajustar: fui a primeira reconhecida oficialmente, sim, mas só pude ser “a primeira” porque outras estiveram lá antes, abrindo caminho na contramão das estruturas excludentes daquele lugar. E ocupar essa vaga significou abrir uma porta. Depois de mim, vieram outras. O que era uma exceção começou, pouco a pouco, a se transformar numa possibilidade real de futuro.
Mas há algo sobre ser a primeira que precisa ser dito: existe uma solidão enorme nisso. É estranho celebrar conquistas que, na prática, te colocam sozinha. Eu me perguntava, muitas vezes, até quando nós seremos as primeiras. Porque isso significa ser também a única. E existe uma violência nesse isolamento. Por mais que haja festa em torno da nossa chegada, às vezes a sensação é da exotificação, a de ser vista, mas não necessariamente acolhida. Não quero me colocar nesse lugar de vítima — seria injusto com tantas professoras e professores que contribuíram fortemente para a minha formação, mas é necessário, em concomitância, refletir que ser a única é também precisar convencer o tempo inteiro de que você pertence. De que seu corpo tem direito de existir na criação artística.
Por isso, quando penso na minha presença em Bodas de Sangue, justamente uma obra que fala de estruturas sociais opressoras, sinto que a peça dialoga diretamente com a minha trajetória. Eu entendo o que significa estar refém de estruturas que tentam nos apagar. Habitar a personagem Mulher de Leonardo, uma mulher subjugada, esgotada pela opressão, me implica diretamente. E, em alguma medida, colocar o meu corpo travesti naquele palco, naquela dramaturgia, foi a tentativa de ressignificar essa história.
Acredito que a resposta seja tão simples quanto isso: Bodas de Sangue, para mim, foi sobre permanecer. E permanência, neste contexto, já é ruptura.