
Giovanna Galdi, por Bob Sousa
Atriz, precursora e uma das forças criativas centrais do Grupo Redimunho de Investigação Teatral, Giovanna Galdi acompanha, desde os primeiros ensaios em salas improvisadas, a trajetória de uma das companhias mais relevantes do teatro de pesquisa no Brasil. Em Couro Duro: A Saga do Fim do Mundo, ela volta à cena integrando um elenco de 19 artistas que cruzam sertões simbólicos, realidades políticas e camadas metalinguísticas em um espetáculo que mescla teatro, cinema e literatura. Com sua experiência profunda no fazer coletivo e no mergulho no universo de Guimarães Rosa, Giovanna compartilha nesta entrevista reflexões sobre a construção da personagem, o processo criativo em grupo e os desafios de produzir arte num país onde a continuidade e a resistência ainda são atos de coragem.
Bob Sousa – Você está no Redimunho desde a fundação e acompanhou a evolução estética e política do grupo. Como foi construir suas personagens em Couro Duro: A Saga do Fim do Mundo dentro desse contexto de continuidade e transformação? O que essas personagens trouxeram de novo para você como atriz?
Giovanna Galdi – Desde o primeiro trabalho, A CASA (2006), o grupo tem como preocupação primeira trazer para a cena tudo o que pulsa no momento em seus integrantes, mais especificamente entre o núcleo artístico, que simbolicamente chamamos de ‘núcleo duro’, que são as pessoas que tocam o trabalho diário, que fazem a coisa acontecer. Falamos daquilo que queremos falar, fazemos o que queremos fazer, sem nos preocuparmos com métodos, formatos, técnicas, dogmas ou qualquer outra coisa que paute a criação. O desejo vem primeiro, depois vemos como vamos fazer para realizá-lo, concretizá-lo. E desde o primeiro trabalho, há um universo que une esse coletivo, que é o universo Roseano. Guimarães Rosa é nossa maior bússola literária, entre outras, claro, mas é principalmente a obra de Rosa que tem balizado nosso fazer artístico. Esse universo está incutido na gente desde o início do grupo e com ele a paixão pelo sertão, pelo simples, pelo rústico, pelo tempo de antes, pelas memórias, pelo artesanal… Essas particularidades foram moldando a trajetória do coletivo, bem como os integrantes que foram permanecendo e também os que foram chegando. Mas a vida é dinâmica e o teatro também, para ser uma arte viva ele precisa dialogar com seu tempo. Pelo menos é nisso que acredito. As urgências mudaram durante os anos e, nestes mais de 20 anos, o Redimunho certamente sofreu uma evolução estética e política. Nós envelhecemos e nos modificamos junto ao mundo, que mudou muito de lá pra cá. E, enquanto artistas, acredito que temos que ser uma espécie de antena parabólica, estar atento a tudo, ao nosso tempo, mesmo que tenhamos que constantemente fazer uma volta ao passado para entender quais serão nossos passos futuros. E isso dialoga muito com a construção das minhas personagens para esse espetáculo. Primeiramente, uma produtora, que é uma das responsáveis por viabilizar o trabalho, seja escrevendo projetos para editais, fazendo relatórios, prestando contas, seja fazendo a organização do trabalho diário, funções estas que desempenho no coletivo desde o início. Aquele trabalho praticamente invisível, solitário, de bastidor, mas vital para a continuidade do grupo. E Diadorim, que aparece somente ao final do espetáculo, para riscar o chão na batalha derradeira com Hermógenes. Diadorim, uma mulher travestida de homem na obra de Rosa para poder seguir na jagunçagem, num universo extremamente machista, no qual não havia espaço para mulheres. Neste sentido, Diadorim é simbologia da força, da resistência, da presença sutil e marcante, é quem no fim enfrenta, cara a cara, o Hermógenes, quem vai à frente e assume a responsabilidade por vingar Joca Ramiro. Aqui vida e ficção se misturam, porque os sentimentos da atriz e das personagens se amalgamam e corroboram para a criação artística. Não existe criação artística sem material humano, sem ter dentro da gente a matéria-prima que possa dar sentidos às personagens. Foi assim para a criação da Giovanna (produtora personagem) e Diadorim, uma espécie de inventário das minhas lembranças, sentimentos, fazeres, dificuldades junto ao Redimunho nesses anos todos.
B.S. – O Redimunho sempre valorizou o processo coletivo e a construção colaborativa. Como foi a criação da personagem em diálogo com o restante do elenco e da equipe? Quais contribuições coletivas te ajudaram a moldar o percurso da sua personagem ao longo dos ensaios?
G.G. – O processo é sim bastante coletivo e colaborativo, mas até certo ponto. As funções dentro do coletivo sempre foram bem definidas. Tem responsável para quase tudo, para direção, para produção, para os figurinos, para cenário, para a música, para a iluminação e assim por diante. Esse responsável organiza e direciona os trabalhos e aí entra a força do coletivo para executar. Os estudos são bastante coletivos, os debates, as trocas de experiências. Mas em relação à criação das personagens, quando estas já foram definidos, depois das leituras iniciais da dramaturgia, dos trabalhos de mesa, chega uma hora no processo que é você com você mesmo. A direção sinaliza os caminhos, desenha um esboço, te mostra a direção vislumbrada e os atores tem que trazer o material, tem que vir para cena, oferecer possibilidades. É trabalho de atriz, de ator. Você vai pra casa, estuda, pesquisa, busca referências. Apresenta uma proposta e toma uma surra. Volta, revê os caminhos, os apontamentos, reapresenta, reensaia. Sem isso a direção não opera. Claro que inúmeras vezes esbarramos em dificuldades. Daí geralmente formamos pequenos núcleos dentro do coletivo para nos ajudarmos, com olhares diferentes, experiências diversas. Cada um tem um repertório, quem está de fora, talvez vendo alguma possibilidade que eu em cena não esteja enxergando, pode me ajudar com uma intenção, algum movimento, uma pausa. Assim vamos nos ajudando e a direção artística amarra tudo, dá o tom do espetáculo, faz os ajustes necessários até chegarmos ao resultado final, se é que isso exista, pois o espetáculo é dinâmico e ajustes são feitos constantemente.
B.S. – O espetáculo traz uma crítica evidente à precarização da produção artística e expõe, de forma metafórica, as tensões nos bastidores culturais, especialmente no teatro de grupo. Como você enxerga hoje a relação entre a criação artística e as formas de produção e financiamento? É possível sustentar uma pesquisa continuada sem ceder às pressões do mercado e das lógicas de consumo?
G.G. – Trabalhos como estes que fazemos não se sustentam no mercado. Precisam das políticas públicas culturais. São trabalhos extensos, com muitas pessoas envolvidas (23 pessoas neste trabalho), num cronograma com duração longa e intenso de atividades, nas quais propomos pesquisa inédita, dramaturgia inédita, figurinos, cenários, tudo é criado especificamente para cada um dos nossos espetáculos. É uma lógica que vai na contra mão do capital, porque não temos a preocupação de fazer “o que vende”, não geramos lucro. Fazemos espetáculos em espaços não convencionais e estes espaços geralmente são tombados pelo patrimônio histórico, ou possuem limitações de público, por características desses espaços e por segurança também. A conta não fecha. Acredito que oferecemos vivências artísticas. Nossas propostas são mais intimistas, mais próximas do público, são bastante sensoriais, sinestésicas. Não cabem na gaveta dos teatros com capacidade para 600-1000 lugares. Eu adoro todo tipo de produção, assisto a tudo e não faço juízo de valor aqui. Trata-se de um modo de produção pelo qual optamos para nos dedicar. Eu optei. É nesse lugar que me encontro como artista. E essa escolha traz junto às dificuldades de se produzir, pois o gargalo das políticas públicas culturais está cada vez mais estreito. Competimos constantemente com companheiros de luta, de arte, nestes editais. O dinheiro não dá conta de tantos grupos, coletivos incríveis que existem e, inevitavelmente, alguns são contemplados e a maioria não. Essa é nossa precarização. Nossa continuidade enquanto grupo, como modo de produção, está sempre ameaçada. Esse nosso formato de trabalho não interessa ao mercado. Não é vendável, não é rentável. É uma escolha. Fazemos o que queremos fazer e o preço a pagar por isso é não se ajustar às lógicas de consumo, viver na corda bamba, porém fazendo aquilo que acreditamos.