
Fernanda Zancopé, por Bob Sousa
Na estreia de O Auto do Fim do Tempo, Fernanda Zancopé convida o público a imaginar como seria o Velho Testamento se tivesse sido escrito nos anos 2020. Com dramaturgia dela e direção de Dante Passarelli, a peça do Manás Laboratório de Dramaturgia se organiza em quatro movimentos e apresenta 12 relatos sobre culpa, guerra, poder, fome e julgamento. A encenação faz uso da coralidade vocal e corporal para criar uma paisagem urbana que evoca o estado de alerta de uma sociedade que não sabe que está em guerra. Em um espaço cênico que mistura o sagrado e o profano, o espetáculo propõe uma experiência sensorial, conduzida pela jornada da Heroína, personagem que tenta oferecer uma saída para o colapso. Conversamos com Fernanda Zancopé sobre o processo de escrita, as escolhas éticas e formais e os desafios de transformar o auto medieval em uma parábola do presente.
Bob Sousa – Sua dramaturgia parte da pergunta “quais histórias estariam no Velho Testamento se ele fosse escrito hoje?”. Como esse ponto de partida se desdobrou em material dramatúrgico e que critérios você usou para selecionar os 12 episódios que compõem a peça?
A peça explora a memória, a perda dos desejos e a reconciliação com a passagem do tempo. Certa vez, observei uma senhora com sérios problemas de locomoção, que fazia um enorme esforço para atravessar a cozinha e a copa, rezando um terço em voz alta. Eu a observava atentamente, curiosa para entender a motivação daquele esforço, daquela reza difícil. Ao chegar a uma janela, ela se pendurou ali com o terço na mão (interrompendo a Ave Maria no meio) e começou a xingar o cachorro da vizinha, que não parava de latir. Foram muitos palavrões e ameaças, até que ela soltou a janela e retomou a oração do ponto em que havia parado, como se nada tivesse acontecido. Aquela cena se tornou uma síntese para mim: uma mulher forte, dura e corajosa, cuja força era, ao mesmo tempo, sua maior virtude e seu maior vicio.
Acredito que, se o Velho Testamento fosse escrito hoje, nós escreveríamos sobre o nosso dia a dia, sobre como vivemos aqui. Faríamos dele um “manual” de valores, um documento histórico, artístico e social da nossa subjetividade e fé enquanto sociedade.
Nosso cotidiano é extremamente significativo para caracterizar situações que refletem nosso passado e nosso futuro ancestral. ‘O Auto do Fim do Tempo’ nasceu dessas observações cotidianas, e por isso só poderia ser feito em versos. Há algo sobre a alma que deve ser dito apenas pelo simbólico, pelo sensível. A peça se alimenta de percepções sensoriais, e não de um diálogo direto com a racionalidade. Ela está em contato com situações simples e significantes, e por isso foi escrita em coros.
Durante todo o processo eu sempre citava a frase ‘Eu sou a porta-voz de muitas vozes que clamam por ele’, como diz Electra na tragédia de Ésquilo. Também anotei, como material de apoio a frase “Teu coração mudou, de novo, conforme o vento… Pensas, agora, com sentimento de piedade, mas há bem pouco tempo não pensavas assim e exigistes coisas terríveis, querida, contrariando as ponderações…[…] Infeliz! Como pudeste contemplar com teus olhos a agonia?”. Para mim, essa dureza no lírico era importante para falar com a alma.
No teatro ocidental, o gênero lírico é uma especificidade do coro trágico, da construção do consciente subjetivo pela fala de um coletivo. ‘O Auto do Fim do Tempo’ conta a história de uma cidade que não sabe que está em guerra. Através da linguagem lírica e narrativa dos contadores de Autos, busco evocar e presentificar toda a violência que não é percebida em nossos hábitos, e todo o conhecimento que a gente só adquire no coletivo.
Bob Sousa – O coro é um elemento central na encenação e carrega o peso de múltiplas vozes. Como foi o processo de composição dessa coralidade em texto e em cena e de que forma ela influencia a recepção do público?
Para mim, o coro é uma composição consciente da subjetividade, um sujeito que se propõe a falar pelo coletivo, após observar e muito saber desse mesmo coletivo. É um momento de refletir sobre como se vive por aqui, ou como se viveu até o presente momento. É um reconhecimento de que, nas histórias do passado, encontramos o momento em que nos situamos, para então sabermos para onde estamos indo.
Inicialmente, aproximo essa dramaturgia da ideia de ‘Sintoma de ficção’, expressão utilizada por Anatol Rosenfeld no texto ‘Literatura e personagem’. A peça propõe que o foco narrativo esteja dentro da personagem/corifeu, cujo pensamento/discurso é expresso de forma livre e indireta, mantendo a voz imperfeita na terceira pessoa, que ‘finge’ um relato impessoal, assumindo a figura de narradora de si mesma. É como se a narradora, em delírio, não desejasse se identificar consigo mesma e, por isso, tentasse se olhar de fora. De tanto se autorrefletir, a narradora é capaz de transformar-se a si mesma em personagem.
Estamos diante de personagens que se comportam como corifeus. Componho, também, um metadrama nessa dramaturgia. São delírios que se reconhecem como delírios (como é o caso do coro da morte, coro dos velhos e do coro do fim do tempo); personagens que se reconhecem como personagens e que abordam questões como a construção da narrativa, a ilusão da representação e a relação entre ficção e realidade na nossa memória. Os personagens aqui sabem que estão sendo escutados e observados, e narram diretamente o que acontece com eles. A estrutura da peça cria uma espécie de moldura para o ato autorreflexivo das situações cotidianas que foram escolhidas.
Bob Sousa – O espetáculo se estrutura em quatro movimentos, quase como uma sinfonia. Como essa organização formal dialoga com o conteúdo e com a jornada da Heroína?
A organização em quatro movimentos sinfônicos é uma proposta da direção, de Dante Passarelli. A dramaturgia se apresenta em 12 cenas e um prólogo. Responderei a partir da minha perspectiva como dramaturga e atriz do espetáculo.
Os coros apresentam uma imagem autorreflexiva da própria narrativa que, movida pela irrupção do poético, desorganiza as passagens temporais dos acontecimentos. A peça se manifesta na condensação do texto, no gosto pelo enigma, na concentração das qualidades formais das palavras escolhidas, na insistência das repetições e no jogo sobre as texturas da linguagem falada. Nessa dramaturgia, a poesia é sinônimo de instantaneidade, irrupção, descontinuidade objetiva, propondo uma forma estruturante para a mise en scène, através de seus efeitos de estranhamento e jogos de significado e significante.
Dante Passarelli é um diretor muito sensível para propor soluções cênicas para esses poemas/coros. A proposta da direção de estruturar a encenação da peça como uma sinfonia ou um show foi extremamente feliz, demonstrando uma conexão absoluta com a dramaturgia escrita.
Bob Sousa – Há uma presença forte de imagens bíblicas e referências visuais ao “Jardim das Delícias” de Bosch. Que papel o imaginário pictórico e religioso desempenhou na sua escrita e como você lidou com o risco de literalidade ou ilustração?
O ‘Jardim das Delícias’ de Bosch, entretanto, foi um ponto de apoio para a criação da encenação de Dante Passarelli. Particularmente, acredito que a literalidade ou ilustração são coisas que não estão presentes na nossa peça. Visto que estamos quase dentro de uma instalação de artes visuais.
Na época em que escrevi, em 2019/2020, meu ponto de apoio visual eram as fotografias da peruana Gihan Tubbeh, por conta de uma exposição que ela realizou no Itaú Cultural.
Entretanto, o que mais me moveu foi uma reportagem jornalistica de 2019, que apontava que mais de 60% dos homicídios ocorriam em vias públicas e urbanas, que mais de 48% dos mortos estavam entre os 17 e 44 anos, que 40% dos conflitos que acabavam em mortes se davam entre desconhecidos, e que temos uns dos maiores índices mundiais de mortes por acidentes no trânsito e mortes por brigas entre torcidas de futebol. Naquele momento, falar da violência urbana, das situações cotidianas absurdas e naturalizadas que fingimos não ver no nosso dia a dia, era o mais importante. A história desse coro de moradores/narradores, dividida em pequenos atos independentes que compõem a vida trivial da comunidade, que vai engolindo os acontecimentos e se modificando de forma constante e coletiva, sem tomar consciência desse processo.
Bob Sousa – A peça aborda temas como culpa, fome, guerra e julgamento de forma alegórica. Como você equilibra o impulso político e a dimensão poética sem reduzir a cena a uma mensagem direta?
Acredito que, na verdade, não há um equilíbrio a ser buscado, pois a dimensão poética já carrega em si um impulso político. Para mim, seria mais fácil e menos teatral abordar esses temas de forma direta. A alegoria, a imagem e o símbolo permitem que o espectador faça suas próprias conexões e encontre seu próprio significado na obra.
A peça não busca transmitir uma mensagem didática ou moralizante, mas sim provocar reflexões e questionamentos. Ao invés de oferecer respostas prontas, ela convida o público a mergulhar em um universo sensorial e simbólico, onde as questões políticas e sociais se manifestam de forma indireta e multifacetada.
A força da peça reside justamente na sua capacidade de evocar sentimentos e despertar a imaginação, sem impor uma interpretação.
Bob Sousa – O Auto medieval tinha uma função comunitária e ritualística. Para você, qual é a função de um auto no século XXI e o que significa propor um “auto do fim do tempo” no Brasil de hoje?
Ritual é a palavra-chave para nos conectarmos enquanto seres humanos — seres sociais, simbólicos e comunicáveis. Existimos na comunicação e na conexão com o outro. A busca por um auto no século XXI é a busca por um ritual, por valorizar o sagrado no nosso dia a dia.
Às vezes, no mundo contemporâneo, podemos pensar que temas religiosos são alienantes e tentamos ser mais “inteligentes” do que a ideia de um ritual/religioso/auto pode significar. No entanto, embora acreditemos que escolhemos sozinhos ou que tomamos nossas próprias decisões, na maioria das vezes as dores individuais são comunitárias, e as decisões são mais coletivas do que parecem. Reagimos mais em sociedade e ritualisticamente do que temos consciência.
A importância de valorizar os rituais e símbolos no nosso cotidiano está justamente em nos ajudar a dar sentido para as coisas que fazemos.
Agradecemos ao TEATROIQUÈ, do produtor Rica Grandi, pela acolhida e cessão do ambiente onde realizamos o ensaio fotográfico que acompanha esta entrevista.