
Eugênio Lima, por Bob Sousa
Black Machine surge como um gesto artístico que tensiona passado e presente, instaurando no palco uma batalha entre dois fantasmas da tradição ocidental. Hamlet, herdeiro das sombras do seu tempo, encontra a insurgente Ofélia de Heiner Müller em pleno século 21. O resultado é uma dramaturgia polifônica, em que vozes pós-coloniais, referências da cultura negra e memórias ancestrais atravessam os personagens, deslocando-os da intocabilidade clássica e inscrevendo-os em corpos e contextos contemporâneos. Com direção de Eugênio Lima e dramaturgia compartilhada com Dione Carlos e Fernando Lufer, a montagem investiga temas urgentes como raça, gênero, necropolítica e masculinidade, ao mesmo tempo em que provoca o público a repensar os limites do humano. Entre delírio, manifesto e performance, Black Machine é um laboratório de linguagens que recusa fronteiras, reivindicando um teatro radicalmente político, poético e sensorial. Nesta entrevista, o diretor Eugênio Lima compartilha reflexões sobre o processo criativo, as escolhas estéticas e as implicações filosóficas da obra.
Bob Sousa – Black Machine parte do encontro entre Hamlet e a Ofélia de Müller para questionar cânones ocidentais. Como você enxerga esse embate entre tradição e insurgência dentro da encenação?
Eugênio Lima – O encontro entre Hamlet e Ofélia em Black Machine nasce, inicialmente, da construção proposta por Heiner Müller, mas ganha fricção e novas camadas a partir da dramaturgia de Dione Carlos. Nesse processo, quem fala são um Hamlet negro e uma Ofélia negra, intérpretes que, por si só, já deslocam e tensionam o cânone ocidental. São figuras que debatem a sociedade e, ao mesmo tempo, se debatem, no sentido de refletirem sobre si mesmas e sobre os limites desse confronto. A insurgência emerge justamente do pensamento negro que essas personagens carregam e que atravessa toda a encenação.
A dramaturgia preserva a fragmentação já presente em Müller, mas reconfigura esse gesto a partir de uma perspectiva própria, como propõe Dione Carlos: transformar o texto em um debate sobre gênero, com pitadas de melodrama, abrindo espaço para que esse Hamlet convoque um universo pop negro. Logo em sua primeira fala, ele questiona: “Talvez essa seja uma peça pop, eu não sei”. A cena responde a essa provocação trazendo um repertório de referências negras que marcam o embate entre tradição e insurgência — um embate que se dá pela força dos pensamentos e práticas afrodiaspóricas que, desde o fim do século XIX, constroem um legado de resistência.
É importante lembrar que Müller escreveu Hamlet Machine ao mesmo tempo em que produzia textos como A Missão – Lembranças de uma Revolução, fortemente atravessados pelo pensamento negro afrodiaspórico. Ele mesmo reconhece: “não teria dramaturgia para tanto”. Nesse período, o dramaturgo dialogava com Frantz Fanon, Aimé Césaire, Malcolm X, os Panteras Negras, Marcus Garvey, Stokely Carmichael, entre outros. Todas essas vozes ecoam no tecido do espetáculo e se condensam nesse universo pop negro que alimenta tanto a Ofélia quanto o Hamlet de Black Machine. É nesse ponto que tradição e insurgência se encontram, em permanente tensão e reinvenção.
Bob Sousa – A peça se define como um experimento polifônico, atravessado por música, videografia e spoken word. De que forma essa escolha estética dialoga com a ideia de um teatro afro-surrealista?
Eugênio Lima – Black Machine se define como um experimento polifônico justamente porque faz convergir diversas linguagens na criação do evento cênico. Ele se constrói na fronteira entre artes plásticas, teatro, performance, audiovisual expandido, referências cinematográficas, videografia, dramaturgia sonora e até mesmo o uso site-specific da Casa do Povo. Essa sobreposição de camadas cria uma tessitura em que os intérpretes — o Black Hamlet de Fernando Lufer e a Black Ofélia de Marina Esteves — não dão corpo apenas às vozes de Hamlet e Ofélia, mas também a muitas outras vozes que são invocadas e atravessam a cena. É nesse entrecruzamento que nasce a polifonia: não apenas a multiplicidade de linguagens, mas a multiplicidade de falas, memórias e imaginários.
Esse gesto dialoga diretamente com a noção de um teatro afro-surrealista. Primeiro porque a estrutura do espetáculo é heterogênea e fragmentada, recusando a linearidade para se inscrever em um universo afrodiaspórico. A diáspora, por si só, já é polifônica: feita de fluxos, intercâmbios, atravessamentos no Atlântico Negro, compondo um mosaico que, ao mesmo tempo, é pleno de encontros e marcado por lacunas — pelas ausências, pelos deslocamentos, pela separação forçada de culturas. Esse mosaico imperfeito é a base de uma estética que se move na falta e na invenção.
Além disso, Black Machine se aproxima do afro-surrealismo porque tensiona o que se entende por “real” e por “surreal”. Ele não busca apenas representar a realidade concreta, mas performar o invisível, abrir portais que expandem a experiência do aqui e agora. Nesse sentido, mesmo que eu não rotule diretamente a encenação como “afro-surrealista”, reconheço que ela dialoga com essa tradição, incorporando elementos que reivindicam essa estética: a fragmentação como potência, a evocação do invisível e a criação de passagens para outras dimensões da realidade.
Bob Sousa – Hamlet é reinterpretado a partir de vozes como Frantz Fanon e Mano Brown, enquanto Ofélia se ancora em Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro. Como se deu esse processo de “incorporação” dessas referências nos personagens?
Eugênio Lima – Em Black Machine, tanto Hamlet quanto Ofélia são reelaborados a partir de vozes, pensamentos e imagens negras e afrodiaspóricas. Uso o termo “afrodiaspórico” porque a experiência negra não se restringe a um território nacional: ela é transnacional e atravessa temporalidades, conectando passado, presente e futuro. Essa dimensão está inscrita na própria dramaturgia, que já nasce permeada por múltiplas referências. Dione Carlos, em sua escrita, propõe um leque de vozes que atravessam os personagens, e nosso trabalho em cena foi justamente incorporar esse encontro, expandindo-o com outras camadas de imaginação e iconografia.
No caso do Hamlet, a figura de Frantz Fanon é central, mas ele também se deixa atravessar por uma constelação de referências: os Racionais MC’s, Basquiat, artistas negros como Prince, a trajetória de Antônio Pitanga, entre outras presenças masculinas que compõem um repertório simbólico afrodiaspórico do fim do século XIX até o início do século XXI. Esse mosaico dá corpo a um Hamlet negro que carrega consigo uma herança múltipla, ao mesmo tempo filosófica, estética e política.
Já a Ofélia, além de partilhar desse mesmo território de referências, assume também a função de narradora, o que a aproxima de pensadoras que formalizaram o debate de gênero sob perspectiva negra. Sueli Carneiro e Lélia Gonzalez são vozes fundamentais, mas ao lado delas ecoam também Grada Kilomba, Barbara Smith, Angela Davis e Audre Lorde. A personagem amálgama essas presenças em uma perspectiva interseccional, atenta ao entrelaçamento de raça, gênero e classe, ainda que reivindique o gênero como eixo central. Não à toa, Dione define a peça como “um debate de gênero com pitadas de melodrama”.
Essas incorporações não se dão apenas em nível conceitual, mas também poético e sonoro. A dramaturgia foi sendo permeada por essas vozes ao longo do processo: na linguagem, na construção de cena, na dramaturgia sonora — como, por exemplo, a forte influência de Erykah Badu na construção da Ofélia, ou de Kendrick Lamar no Hamlet. Esse processo polifônico de referências, somado às iconografias negras que atravessam das artes plásticas à música, foi o que moldou os personagens e deu consistência à reinvenção de Hamlet e Ofélia em Black Machine.
Bob Sousa – Em suas palavras, os personagens clássicos “tentam ser atores” ao se materializarem em corpos negros contemporâneos. Quais são as implicações políticas e poéticas desse deslocamento?
Eugênio Lima – Essa ideia de que os personagens clássicos “tentam ser atores” nasceu de uma provocação da Dione Carlos na dramaturgia. Não se trata de atores e atrizes negros simplesmente interpretando Hamlet e Ofélia, mas de pensar Hamlet e Ofélia tentando, nos corpos negros, interpretar a si mesmos — e, ao mesmo tempo, outras figuras. Esse deslocamento cria uma fricção interessante: o que significa um personagem tentar interpretar outro personagem? Há um momento do texto em que Hamlet afirma: “Eu gostaria de ser Frantz Fanon”. A questão que se coloca é: como alguém que passou quatro séculos interpretando sempre a si mesmo pode, de repente, tentar encarnar outra voz, outro corpo, outra história?
Esse jogo dramatúrgico gera implicações políticas e poéticas muito fortes. Por um lado, ele explicita os limites do que entendemos como interpretação e representação; por outro, traz à cena a memória da racialização. Em determinados momentos, Hamlet e Ofélia, mediados pela memória dos intérpretes, recordam situações em que foram reconhecidos socialmente como negros, confrontados pelo racismo. Como lembra Grada Kilomba, não somos “diferentes” por natureza: é o racismo que produz a diferença. A cena, então, expõe essas marcas, transformando experiências pessoais e coletivas em material poético.
Assim, não é apenas o ator ou a atriz que precisa se modificar para caber em Hamlet ou Ofélia; são Hamlet e Ofélia que precisam se transformar para existir nos corpos negros. Essa inversão é decisiva: ela desloca o cânone, desestabiliza a referência hegemônica e mostra que os clássicos, para habitarem corpos negros contemporâneos, também precisam se reconfigurar. Politicamente, isso evidencia como o olhar do público está sempre atravessado pela questão racial, mesmo quando a cena tenta reivindicar um lugar de universalidade. Poeticamente, esse jogo revela a tensão entre memória, presença e ficção, ampliando a potência do teatro como espaço de reinvenção e confronto.
Bob Sousa – A dramaturgia levanta a pergunta sobre a universalidade do dilema existencial de Hamlet. Como Black Machine tensiona a ideia de humanidade e quem pode reivindicá-la no palco e fora dele?
Eugênio Lima – Eu acho que a dramaturgia levanta a pergunta sobre a universalidade do dilema existencial do Hamlet, mas não só a dramaturgia. Eu acho que a dramaturgia cênica toda questiona isso. Isso é tanto textual como é visual, como ele é sonoro, como ele é na linguagem. Isso está presente em toda a encenação, porque ela é a pergunta motriz que gerou o projeto.
O projeto Black Machine passou por várias etapas. Ele surge a partir da ideia do Lufer em confrontar Hamlet, de Shakespeare, sob o ponto de vista de dois atores negros. Ele me convida para a direção e, a partir de uma provocação minha, decidimos trabalhar diretamente com Hamletmaschine, e não exclusivamente com o Hamlet de Shakespeare, o que nos leva a mudar o conceito inicial. Também trago a proposta de confrontar o pensamento de “ser ou não ser” com o conceito de Fanon.
Fanon nos oferece uma outra perspectiva para essa questão. Há uma citação em Pele Negra, Máscaras Brancas em que ele diz: “Por mais que eu me exponha ao ressentimento de meus irmãos de cor, eu direi que o negro não é um homem. Existe uma zona do não-ser, uma região extraordinariamente estéreo e árida, uma encosta perfeitamente nua de onde pode brotar uma aparição autêntica.
Na maioria dos casos, o negro não gosta da ideia de descer até esse verdadeiro inferno. O homem, aqui entendido como ser humano, não é apenas uma possibilidade de negação. E se, de fato, a consciência é um ato de transcendência, devemos estar igualmente cientes de que essa transcendência é assombrada pelo problema do amor e da compreensão.
O homem, o ser humano, é um ‘sim’ que vibra com as harmonias cósmicas, mas é desgarrado, disperso, confuso, condenado a ver se dissolverem, uma a uma, as verdades que elaborou. Ele deve deixar de projetar no mundo a antinomia que ele é por essência.
O negro é um homem negro, ou seja, em decorrência de uma série de aberrações afetivas, ele se instalou no seio de um universo do qual será preciso removê-lo.”
Essa citação é essencial. É justamente sobre isso: como confrontar esse universalismo sem abrir mão da ideia de que existe algo em comum entre todos os seres humanos? Mas não esse universal branco, não esse humanismo branco.
O que está em jogo aqui é a zona do não-ser, esse lugar que pode representar o não pertencimento, o afastamento da humanidade, mas que, por ser uma encosta árida, pode também se tornar o ponto de onde brota algo profundamente verdadeiro.
Para Fanon, o ser humano não é algo fixo, ele pode ser tudo. E o que ele reivindica, enquanto homem negro, é justamente esse direito de ser tudo. O ser humano precisa estar solto. Sua vocação é estar livre.
Essa é a reivindicação que fazemos, e que também confrontamos, tanto na dramaturgia textual quanto na dramaturgia cênica do espetáculo.
Bob Sousa – A montagem é permeada por delírio, manifesto e performance. Como você articula essas camadas sem perder o eixo crítico e, ao mesmo tempo, preservando o risco poético da obra?
Eugênio Lima – Eu acho que Black Machine é permeado pelo delírio, pelo manifesto, pela performance, pelo discurso direto, pela ideia de representação e de representatividade. Porque ele é, de fato, um experimento polifônico com DNA negro. Ele busca atravessar essas questões a partir de diferentes elementos.
Ora, estamos mais próximos do delírio e da dramaturgia, e mais distantes deles na videografia. Ora o manifesto aparece mais fortemente na videografia do que na palavra, ora a performance está presente o tempo todo — mas também está na dramaturgia sonora, que é profundamente performativa.
Ou seja, esses elementos vão se intercambiando entre as diversas linguagens. A iluminação, por exemplo, é também profundamente performativa. Ela não tem apenas a função de iluminar o ator ou a atriz, mas funciona como um depoimento sobre o espaço cênico, sobre o site-specific. A própria concepção do ringue já aponta para isso.
Utilizamos esses elementos para criar uma ideia de esfera fantástica, onde os debates que Hamlet e Ofélia trazem — a partir das interpretações do Fernando Lufer e da Marina Esteves — estivessem ancorados em um universo imagético e sensorial da diáspora negra.
E eu acredito que é justamente isso que compõem, de forma fundamental, as camadas do espetáculo. Há uma continuidade na linguagem, e essa linguagem está profundamente conectada com a nossa trajetória no Legítima Defesa ao longo dos últimos dez anos. Tanto eu quanto o Lufer dizemos isso: esse espetáculo é fruto de uma década de pesquisa do Coletivo Legítima Defesa, mesmo que ele não seja, formalmente, um espetáculo do coletivo.
É um espetáculo que flerta e até excerta com a ideia de audiovisual expandido, onde o espectador também está em performance.
Essas camadas são articuladas para mostrar que essas questões possuem múltiplos desdobramentos. Por isso, precisamos abordá-las não apenas a partir do discurso ou da construção intelectual, mas também por meio de todas as outras formas que nos movem e nos atravessam.
Então, é por aí que eu entendo a encenação.
E sim, a ideia de estar o tempo inteiro refletindo criticamente sobre essas camadas é o dispositivo épico que está presente em todas as obras do Legítima Defesa — e também em Black Machine, especificamente. Isso está colocado de forma clara: há uma crítica constante sobre a encenação, sobre a dramaturgia. O ator e a atriz interpretam e fazem uso disso o tempo inteiro.
Às vezes essa crítica aparece de maneira mais formal, outras vezes de modo mais performativo. Mas esse lugar crítico nunca é abandonado em nenhum momento do espetáculo. Existe, o tempo todo, uma opinião sobre o próprio material.