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VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Dione Carlos

Publicado em: 16/07/2025 |

Dione Carlos, por Bob Sousa

 

Dramaturga premiada e uma das vozes mais contundentes da cena teatral brasileira contemporânea, Dione Carlos segue expandindo sua produção artística e política em múltiplas frentes. Além de assinar a dramaturgia do espetáculo A Boca que Tudo Come Tem Fome (Do Cárcere às Ruas), que estreia no Sesc 14 Bis com a Companhia de Teatro Heliópolis, Dione acaba de lançar o livro Cárcere ou porque as mulheres viram búfalos, publicação da montagem homônima encenada pela mesma companhia em 2022. A publicação, que reúne texto inédito da autora, registros fotográficos de Rick Barneschi e ensaios críticos assinados por Amilton de Azevedo, Kil Abreu, Rodrigo Nascimento e Welington Andrade, reafirma seu compromisso com a escrita de cena como forma de denúncia, resistência e reencantamento.

Em A Boca que Tudo Come Tem Fome, Dione se debruça sobre a vida pós-cárcere, traçando caminhos poéticos e urgentes sobre o estigma, os afetos e os desafios enfrentados por pessoas egressas do sistema prisional. Já no livro, revisita o tema a partir de uma perspectiva centrada nas mulheres que resistem ao impacto do aprisionamento em seus lares e comunidades. Nesta entrevista, a dramaturga compartilha os bastidores desses processos criativos e os atravessamentos sociais, espirituais e políticos que sustentam sua escrita.

Bob Sousa – Dione, a dramaturgia de A Boca que Tudo Come Tem Fome parte de uma escuta direta de pessoas egressas do sistema prisional. Como essa escuta atravessou o seu processo criativo e quais foram os principais desafios de traduzir essas vivências para a cena?
Dione Carlos – A Cia de teatro Heliópolis sempre inclui testemunhos em seus trabalhos. Aqui não foi diferente. Assisti áudios e vídeos destas entrevistas e me inspirei nas falas para criar cenas e personagens para a dramaturgia. São testemunhos cortantes, que forneceram material humano sensível para a construção do que foi desenvolvido.  “A carne e o sangue do texto”.

Bob Sousa – A peça aborda o estigma social que acompanha os ex-detentos e questiona a ideia de liberdade plena após o desencarceramento. Como você trabalhou dramaturgicamente as tensões entre o desejo de recomeço e os mecanismos sociais que dificultam esse recomeço?
Dione Carlos – A partir dos testemunhos das pessoas egressas do sistema prisional, me deparei com uma realidade que a maior parte das pessoas ignora completamente. Tudo parece feito para a não socialização de quem sai do cárcere. Desde multas absurdas, até a dificuldade de emitir documentos. Existe uma espécie de marca de Caim, que acompanha as pessoas mesmo depois de terem pago suas penas. Há punições severas para crimes brandos praticados por pessoas pobres. E sentenças amenas para crimes severos executados por pessoas com maior poder aquisitivo. É um sistema de controle social, racista e injusto que visa “vigiar e punir “ dentro de um sistema de necropolítica.

Bob Sousa – A presença simbólica de Exu no espetáculo propõe um caminho de abertura e reinvenção. Como a cosmovisão afro-brasileira e a mitologia dos orixás contribuíram para a construção da narrativa e para deslocar as narrativas hegemônicas sobre o sistema prisional?
Dione Carlos – Exu simboliza a encruzilhada,  a comunicação entre Deuses e Homens. É o Orixá mais próximo da humanidade. É amoral, mas não imoral. E o encarceramento em massa e a perversidade por trás do tratamento oferecido para quem saiu do cárcere é imoral, perverso, indecente. “A boca que tudo come tem fome” se refere à voracidade de Exu. Simboliza, também, a capacidade de reinvenção humana diante das piores adversidades. As escolhas que mudam trajetórias. Exu acolhe o humano, a fragilidade, o que não é dito. A cosmovisão africana das mitologias dos Orixás nos liberta de qualquer maniqueísmo.

Bob Sousa – No livro, você aborda o impacto do encarceramento dos homens sobre as mulheres, especialmente mães e irmãs. De que forma essa perspectiva feminina e intergeracional amplia a discussão sobre o sistema prisional?
Dione Carlos – As mulheres com parentes encarcerados conhecem o impacto do cárcere dentro e fora do sistema penitenciário. Sabem como vivem as pessoas dentro da cadeia e o sofrimento que envolve lutar por elas. Essas mulheres também estão encarceradas. Carregam uma marca.

Bob Sousa – O título da obra remete à potência da transformação: mulheres que “viram búfalos”. Que imaginário você quis ativar com essa imagem, e como ela se articula com a presença de Iansã na trama?
Dione Carlos – Ainda não conseguimos agradecer às nossas mães e avós pelos sacrifícios que foram obrigadas a realizar para garantir nossa sobrevivência. Há uma lenda de Iansã, na qual ela se transmuta em búfalo e entrega os cornos do animal para que suas filhas batam um contra o outro em caso de perigo. As mulheres viram búfalos porque são obrigadas, não se trata de escolha, mas falta de opção, por necessidade mesmo. Na peça, elas são todas filhas dessa Orixá e batem os cornos quando o filho de uma delas é injustamente preso. Além do búfalo, temos a figura da borboleta em cena também, que representa o lado amoroso, puro, dessas mulheres. E acredito que nossa luta é garantir que todas tenham direito a essa transmutação também.