EN | ES

VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Dante Passarelli

Publicado em: 13/09/2025 |

Dante Passarelli, por Bob Sousa

Com direção de Dante Passarelli, O Auto do Fim do Tempo marca uma nova etapa do Manás Laboratório de Dramaturgia, agora com sede própria no Bixiga. A montagem se organiza como uma parábola contemporânea, articulando 12 relatos que falam de culpa, guerra, fome e julgamento. O espetáculo combina coralidade, fisicalidade e elementos visuais potentes para construir uma paisagem cênica que evoca uma sociedade em colapso. A encenação é pensada em quatro movimentos, como se fosse uma sinfonia, conduzindo o público pela jornada da Heroína em busca de reconexão com o ancestral e de um caminho possível para seguir adiante. Além de sua atuação no Manás, Dante Passarelli teve recentemente seu texto Por um Pingo lido na Rússia, ampliando o alcance internacional de sua pesquisa dramatúrgica. Conversamos com o diretor sobre a concepção da encenação, o papel do coro, as referências visuais e o diálogo entre sua trajetória autoral e o contexto político e social que atravessa o espetáculo.

Bob Sousa – A encenação é construída como uma grande sinfonia em quatro movimentos. Como você chegou a essa forma e de que modo ela orientou a condução da narrativa e do ritmo do espetáculo?

Dante Passarelli – Concebi essa forma após leituras obsessivas da dramaturgia de Fernanda Zancopé, que é composta por uma série de cenas que formam uma sequência não-linear e não-conectada por lógica de causa e efeito. Assim, após essas leituras, alguns pontos temáticos se evidenciaram mais concretamente. A reorganização das cenas a partir de sua proximidade temática de modo a formar um movimento – como um movimento sinfônico – ficou nítida dessa forma. Foi um processo bastante orgânico, e em diálogo com o andamento do trabalho dos atores. Lemos o texto em conjunto nessa ordem e ele fez sentido também. O texto de certa forma desafia a quem o lê a pensar formas de encená-lo, sem ônus para a dramaturgia. Não é um texto convencional. Essa forma de sinfonia então ajuda a concentrar o potencial do conteúdo e a criar dinâmica no espetáculo, pois cada um dos movimentos também influencia o trabalho físico dos atores, da trilha, da luz e do vídeo. Ou seja, trata-se de fato de uma encenação em que as áreas respiram junto uma da outra para compor esse recorte.

Bob Sousa – A coralidade e a fiscalidade parecem ser motores centrais da encenação. Como foi o trabalho com o elenco para que o corpo e a voz construíssem essa sensação de uma sociedade em estado de guerra, ainda que sem perceber?

Dante Passarelli – Desde os primeiros ensaios, trabalhei com o elenco corporalmente a partir de dispositivos de coralidade, o que passou pela percepção do espaço, do tempo e deles mesmos diante dos outros e de si. O elenco formado por Fernando Aveiro, Eduardo Leoni e a própria Fernanda, foi muito disponível e disposto a esse mergulho. Sem eles, nada disso seria possível. Bom, o trabalho corporal nesse início se deu primordialmente com minha leitura de exercícios e dinâmicas dos Viewpoints de Anne Bogart e Tina Landau. Vejo esse nosso trabalho como uma busca por uma consciência de olhar, pois tudo se torna estímulo. Desse modo, pensei em duas palavras que guiaram o processo dessa dessa construção – o binômio acordo e desacordo. Ele está presente na dramaturgia desde o prólogo e agora pensando sobre isso, o que é uma guerra se não um esgotamento de tentativas de acordo? Por isso os movimentos se estruturam a partir desta noção: se eu tento fazer algo, alguém me impede; se eu estou caminhando, de repente despenco; se eu estou sozinho, quando vejo ou encontro alguém, caminhamos juntos; se alguém faz algo no espaço, eu respondo a isso de imediato. São exemplos de como se materializa essa proposta. Disso foram surgindo os desenhos das cenas, que são essencialmente uma coreografia de um espetáculo de dança-teatro.

Também entendi desde o começo que eles deveriam ocupar toda a estrutura do Teatro Manás Laboratório, fluindo de um espaço para outro, como se compusessem um grande painel pictórico do Hieronymus Bosch. Sempre dizia nos ensaios que uma coisa deveria fluir para a outra, criando uma organicidade na movimentação. Foi desse acúmulo físico que começou a verbalização de sílabas, palavras, frases e eventualmente do texto da dramaturgia. Cheguei a uma reflexão durante o processo, de que se tratava de uma materialização da passagem bíblica “o verbo se torna carne”. Ou seja, nesse processo, penso que o corpo se manifesta e a fala surge disso, ou a carne fala. E então veio o trabalho precioso de Ana Paula Lopez na direção do movimento para arrematar e aprofundar os acúmulos que trabalhamos ao longo do processo e tudo se uniu de forma muito bonita. Por isso a fisicalidade é tão importante – e não apenas por isso, porque é algo que guia a própria dramaturgia da Fernanda. São vozes corais que se estruturam de maneira distinta e fragmentada, e portanto, exigiram da direção uma reposta cênica capaz de dar conta dessa forma.

Bob Sousa – A cenografia e o uso do espaço vertical criam uma torre central cercada por televisores, quase um altar contemporâneo. Como essa decisão dialoga com a temática de sagrado e profano que atravessa a peça?

Dante Passarelli – De maneira total. Não apenas a cenografia de Fernando Passetti, como também a luz de Aline Santini, o figurino de Rosangela Ribeiro, a trilha de Alê Martins, o visagismo de Leopoldo Pacheco e a videografia de Vic Von Poser são pontos de força para a relação entre sagrado e profano na peça. O que me deixa verdadeiramente  feliz nesse processo é que não apenas a equipe é maravilhosa mas que o trabalho foi se construindo muito organicamente e muito generosamente entre todos.

A torre funciona como uma espécie de árvore do fruto proibido, uma torre de segurança com câmeras no topo, e também uma espécie de Babel contemporânea. Relembro que a tentativa bíblica de construção da Torre de Babel foi chegar até os céus. Não à toa, terminamos com a imagem de Babel no espetáculo. É o último quadro que vemos nos televisores. Tudo isso, claro, são elementos postos em jogo que não se explicam didaticamente no espetáculo. Eles estão presentes e abrem camadas de sentido e o público é assim convidado a abrir suas sensibilidades junto da peça. Os atores, estando num estado de sensibilidade ativa, também acabam por descobrir novos sentidos todos os dias, visto que o trabalho físico é eterno, como muito precisamente apontou a Ana Paula durante os ensaios.

E essa imagem da torre também está presente na dramaturgia. Na última cena, a Heroína está diante de uma grande imagem na igreja. É ainda outra camada de sentido possível para o cenário. Convido a todos assistirem o espetáculo abertos à sua própria experiência de formulação de sentido também, porque é muito rico quando alguém chega para você e faz uma leitura sobre o espetáculo não-prevista mas totalmente possível.

Bob Sousa – Há uma dimensão ritualística no espetáculo, que remete ao auto medieval e ao mesmo tempo ao presente urbano. Qual é a sua visão sobre o papel do ritual na cena contemporânea?

Dante Passarelli – Os ritos são uma materialização de mitos. São ações para dar corpo à uma narrativa. No tempo do auto medieval, existia uma ideia pré-concebida de mundo, como se a vida fosse mais simples: os mitos eram disseminados e organizavam a sociedade da época. Não à toa, muitas manifestações teatrais medievais ocupavam as ruas das cidades, eram um acontecimento social e político de grande escala.
Em 2025, quais são os mitos que guiam e organizam a nossa sociedade? Poderia me estender sobre esse assunto, mas acredito que a pergunta é suficiente para a reflexão. É um pouco esse o movimento que a Fernanda descreve na escrita. São cenas de um cotidiano banal, mas de certa forma, mitificado. Portanto, a cena se torna sim uma espécie de rito. Inclusive durante a costura do espetáculo em diálogo com a Aline e com o Ale, falávamos disso. De que as entradas de cada cena deveriam ser ritualizadas, ou seja, preparadas com a calma de quem sacraliza um espaço. Tudo isso está em jogo.

Pensando sobre o ritual na cena contemporânea – e digo isso pensando agora sobre o assunto de forma totalmente livre – Mas pensando no rito como materialização de mitos, ancestrais ou não, faz muito sentido que a cena contemporânea se valha de elementos ritualísticos. Parece-me que a tentativa de entender nosso tempo através de narrativas míticas demanda uma cena de certa forma mais ritualizada. E isso pode ganhar formas cênicas variadas, desde ações que se aproximam de rituais efetivamente a outras possibilidades, como distensão do tempo, elementos ritualísticos em cena, engajamento do público, e outros tantos. No fim das contas, talvez o ponto seja precisamente este: criar sentidos possíveis ao mundo. Interrogar o presente, suas luzes e suas sombras, como disse Giorgio Agamben.

Bob Sousa – Seu texto Por um Pingo foi lido recentemente na Rússia. Como foi receber esse convite e o que essa experiência internacional trouxe para a sua pesquisa artística e para sua visão sobre a dramaturgia brasileira no exterior?

Dante Passarelli – Receber o convite em julho para estar no XI United Cultures Forum em São Petersburgo – de onde respondo essa entrevista – foi absolutamente surreal. Representar a dramaturgia brasileira aqui na Rússia tem sido uma experiência totalmente única. Soube que essa é a primeira vez que o Forum faz alguma atividade do tipo e eles estão muito felizes que tudo deu certo. A programação consiste numa sequência de leituras dramáticas com diretores de países como China e África do Sul, além do Brasil, cujos textos foram traduzidos para o russo. É uma proposta bastante crucial para a disseminação de novas dramaturgias. Nós só conhecemos aquilo que conhecemos porque temos contato. Se não há contato, é o mesmo que nada. A tradução ajuda muito nesse sentido. Então estou realmente honrado e muito feliz de que agora existe uma tradução ao russo de Por Um Pingo – feita por Asya Firsova sob encomenda do Forum – porque isso significa que a dramaturgia ganhou outras tantas vidas possíveis!

A experiência de dirigir os atores da companhia estável do Alexandrinsky Theater na leitura dramática também foi totalmente incrível. Anna, Sasha, Ivan e Marina. Eles foram muito criativos e extremamente abertos à minha direção durante os ensaios, gentis e de uma sensibilidade aliada à técnica que é absolutamente incrível de testemunhar em primeira mão. Foram ensaios muito, mas muito preciosos. Vê-los abordar o texto – que eu reconheço em partes quando eles falam, mesmo em russo – com sua bagagem de escola de formação russa é de uma felicidade que recomendo a qualquer fã de teatro, especialmente quem dirige e escreve. Também tive a sorte de que os produtores do evento foram muito precisos na escolha do elenco, de acordo com o que eu havia indicado, então tudo caiu como uma luva. Além disso, ver de perto a estrutura de um teatro russo é um privilégio imenso. Nessa semana, também pude assistir alguns espetáculos aqui, inclusive uma direção do incrível Yuri Butusov, que infelizmente faleceu em agosto, e foi bastante especial. Então, acredito que tudo que absorvi nessa semana levo junto de volta ao Brasil, com uma injeção de entusiasmo, com uma visão de prática artística em expansão e muito feliz de ter representado a dramaturgia brasileira aqui.

Acredito que tem muito trabalho a ser feito para que a dramaturgia brasileira alcance ainda mais horizontes. Interesse parece haver sim. Festivais, fóruns, ocasiões de troca como essa são essenciais porque elas criam as pontes. Foi assim que cheguei até lá. A delegação russa responsável pelo Fórum estava no Brasil em março para a Mostra Internacional de Teatro (MIT-SP) e assistiram o Por Um Pingo. Foi assim que esse convite aconteceu.

O que é mais especial ainda é que a montagem volta em cartaz em São Paulo, no SESC Belenzinho a partir de 18/09. Então no intervalo de uma semana, Por Um Pingo está em dois cantos do mundo. É muito feliz e surreal!

Bob Sousa – O Auto do Fim do Tempo fala do esgotamento do mundo como o conhecemos. Para você, qual é a potência de montar esse espetáculo hoje e como ele dialoga com a urgência política e existencial do nosso tempo?

Dante Passarelli – Acredito que o convite da montagem é observar o mundo com olhos de aprendizagem. Não de forma didática, mas antes, com olhos de curiosidade. Sim, estamos vivendo um tempo de esgotamento, então de certa forma, o espetáculo também nos convida a observá-lo numa espécie de suspensão temporal. O tempo é tão raro. Talvez a urgência política e existencial do nosso momento seja justamente a de tomar de volta as rédeas do tempo. A falta de tempo é política. A dramaturgia da Fernanda aponta para esse horizonte e procurei na direção delinear justamente isso.

Tendo em vista que o texto foi escrito em 2019 e que em 2020 vivemos uma espécie de fim dos tempos, talvez a urgência de montar essa peça hoje se apresente mais do quem nunca apenas seis anos após sua escrita. O distanciamento permitiu vê-la com outros olhos e isso foi bem importante.

Uma dos referências de pesquisa da encenação foi com o filme “Naqoyqatsi – a vida como guerra” de Godfrey Reggio. Se você assiste esse filme, percebe como ele te convoca a uma outra noção de tempo, espaço e compreensão. O Auto do Fim do Tempo, a seu modo, também propõe camadas de sentido, convocando a plateia a ir junto. O espetáculo talvez possa ser uma espécie de alarme de incêndio – ou talvez um anúncio de dilúvio – da nossa era. O que faremos com essa informação é que é a grande questão.

 

Agradecemos ao TEATROIQUÈ, do produtor Rica Grandi, pela acolhida e cessão do ambiente onde realizamos o ensaio fotográfico que acompanha esta entrevista.