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VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Clara Carvalho

Publicado em: 25/06/2025 |

Clara Carvalho, por Bob Sousa

Com uma trajetória marcada pela excelência e versatilidade nos palcos, Clara Carvalho foi vencedora do Grande Prêmio da Crítica da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) em 2023, por sua atuação como atriz, tradutora e diretora. Agora, ela assume o papel da Dra. Ruth Wolff na montagem brasileira de A Médica, texto do britânico Robert Icke, em cartaz no auditório do MASP. Inspirada na peça Professor Bernhardi, de Arthur Schnitzler, a obra apresenta um poderoso embate entre ciência, religião, ética e identidade, atravessado por temas contemporâneos como racismo, antissemitismo, gênero e o tribunal das redes sociais. Com direção de Nelson Baskerville e idealização de Rosalie Rahal Haddad, a montagem propõe uma reflexão provocadora sobre os limites da convicção individual em meio à pressão pública. Nesta entrevista, Clara fala sobre o processo de construção da personagem, os desafios da encenação e o papel do teatro diante dos dilemas do nosso tempo.

 

Bob Sousa – Como foi o seu processo de aproximação com a complexidade da Dra. Ruth Wolff, uma personagem que transita entre questões éticas, científicas, religiosas e identitárias? Que camadas você buscou evidenciar na sua interpretação?

Clara Carvalho – O processo de aproximação com a Ruth Wolff, primeiro que é um presente, você tem um personagem como essa para fazer, porque ela é complexa, você de certa forma, torce por ela, mas ela tem muitos problemas. Ela é uma pessoa muito autoritária, a integridade dela torna-a uma pessoa, às vezes, até agressiva, bruta. Ela comanda uma equipe de médicos, de pesquisadores, dentro de um hospital. Então ela é muito feroz, ela é uma mulher que se impõe, ela precisa se impor no ambiente de trabalho, que é um ambiente competitivo, onde ela habita, ela é a chefe do hospital, da pesquisa. Mas, ao mesmo tempo, ela é muito sensível, é uma mistura de agressividade com sensibilidade, que é muito interessante. E ela transita mal nesse mundo de redes sociais, dessa velocidade enorme da internet, das coisas serem divulgadas. Ela não tem media training. Ela manda, determina e vai em frente. Mas, é uma pessoa que tem uma sensibilidade oculta muito grande. E a gente lida nesse espetáculo com questões científicas, éticas, religiosas, identitárias, são abortos, suicídio. A peça fala sobre tudo isso. Cancelamento virtual, cancelamento na mídia, essa velocidade voraz das notícias, ela não transita bem nesse lugar. E é delicado mexer com isso. Mas é uma personagem muito interessante, é uma personagem trágica. É uma construção contemporânea que tem uma quantidade de perdas muito grande. Eu acho que o que me fascina nela muito é a coragem, ela é uma mulher que tem coragem, que erra e que tem muita coragem. Então, eu acho que a gente tem uma compaixão, ela suscita em nós raiva e compaixão.

 

Bob Sousa – O espetáculo traz à cena temas muito contemporâneos, como fake news, racismo, antissemitismo, viralização e cancelamento. Como você enxerga a potência desse texto hoje e de que forma o teatro pode contribuir para o debate público sobre essas questões?

Clara Carvalho – Eu acho que a peça contribui para esse debate contemporâneo de fake news, racismo, antissemitismo, viralização, pós-verdade, cancelamento, porque a gente vai vendo que quando a coisa se solta dentro da mídia, a coisa vai virando uma outra história, vai galopando e com mais significados, e aquela verdade, o que aconteceu no início, lá atrás, que disparou tudo que acontece na peça, vai se transformando em outra coisa. É essa tal da pós-verdade. E são temas muito delicados que esse texto traz, essa coisa do racismo, a questão de gênero. O texto mexe em casa de marimbondo, expõe isso, mas não julga, faz um painel contemporâneo de todos esses afetos que a gente está vivendo de ódio, velocidade, opinião, a pessoa não reflete, já vai falando, já vai cancelando, já vai contando uma outra coisa, crescendo uma outra coisa… Então, esse texto de “A Médica” é realmente um painel em que o Nelson Baskerville soube lidar com isso tão bem. É um texto muito contemporâneo, muito espinhoso. A questão do racismo no espetáculo, ela está presente de uma maneira muito inesperada, que eu nunca tinha visto. O autor coloca regras, que a composição do elenco seja feita de determinada forma. É uma exigência do Robert Icke, que é um autor contemporâneo, ele é um cara que não tem nem 40 anos, é um dramaturgo inglês que reescreve clássicos, ele transforma os textos, uma transposição de clássicos para um panorama contemporâneo. Mergulhamos muito nos ensaios.

 

Bob Sousa – Você já teve parcerias anteriores com a Rosalie Rahal Haddad e o Círculo de Atores. O que torna essa nova colaboração especial para você e quais foram os maiores desafios artísticos desta montagem em particular?

Clara Carvalho – Eu tive parcerias com a Rosalie Rahal Haddad, que é a nossa produtora. Esse é o quarto espetáculo que eu faço com a produção dela, que é uma pesquisadora de teatro irlandês, e teatro de língua inglesa em geral. E a Rosalie é uma dessas raríssimas pessoas que investe em teatro. Ela gosta muito e ela acompanha o ensaio, traz opinião, mas deixa todo mundo ter a maior liberdade. Ela nunca pede que seja feito nada, simplesmente entrega e confia. Essa é a quarta produção que eu faço com o Círculo de Atores, com o Sergio Mastropasqua e a produtora Selene Marinho. Nós fizemos A profissão da Senhora Warren, O Dilema do Médico, ambas de Bernard Shaw. No ano passado, fizemos a Hedda Gabler, de Ibsen, que é um autor que foi introduzido no teatro inglês e no teatro europeu através do Bernard Shaw. E agora ela teve esse desejo de a gente montar um texto contemporâneo. Então, nós encontramos esse texto. Ela gostou muito, fez muita questão que a gente trabalhasse com “A Médica”,  que é uma adaptação do texto do Arthur Schnitzler, Professor Bernhardi. Mas a peça do Schnitzler era um hospital só de homens, era a peça de 1912, foi proibida em Viena. E o Icke pega isso e transforma, trazendo outras questões. A anterior focava o antissemitismo dentro de um hospital, de uma organização médica. E o Icke amplia a questão do antissemitismo. Questões de gênero, de raça, de pós-verdade, de fake news, dos haters, do volume que isso vai trazendo nesse movimento afetivo contemporâneo.

Então, a gente quis ter o cuidado de fazer isso com muita delicadeza, com muito cuidado, porque são temas muito explosivos. Você tem que tratar disso de um jeito que fique redondo. E o Nelson Baskerville é um diretor contemporâneo. O Nelson, além de ser um amigo muitíssimo querido, é um diretor sensacional. E ele lida com esse material de um jeito muito criativo, com imagens muito bonitas. O Nelson tem uma visualidade muito original, uma assinatura muito pessoal, sonora e de visualidade. Eu adoro. O Nelson é um artista plástico, um belíssimo artista plástico. Então, ele cria essas imagens, essa visão. Essa dinâmica, esse fluxo sonoro e visual que eu acho que fica muito fascinante. É um enorme desafio fazer a Ruth Wolff, que é uma personagem que atravessa a peça inteira, ela não sai de cena nem um minuto, é uma personagem de muito fôlego, é uma coisa assim muito forte. Ela sofre muitos ataques, é muito provocada, machucada, xingada, cancelada, tudo que ela tem e que ela gosta, é destruído. E ela não soube lidar com isso, não pede desculpas, então, de certa forma, é castigada por isso. A complexidade dessa mulher é muito interessante, é muito tocante. Para mim, estou mergulhada nisso e é uma paixão. Tenho muita gratidão da Rosalie me proporcionar fazer essa personagem. A Rosalie é uma pessoa trabalha junto com a gente e é muito lindo trabalhar com ela.

 

Leia a crítica de “A Médica”, por Bob Sousa

 

Captação de imagens: Isabela Hamazaki 

Edição de video: Pedro Hamazaki