
Cesar Ribeiro, por Bob Sousa
No cenário teatral contemporâneo, onde a arte se cruza intensamente com as urgências sociais, o espetáculo Trilogia Kafka, dirigido por Cesar Ribeiro e encenado pelo grupo Garagem 21, se destaca como uma potente reflexão sobre os sistemas de violência, exclusão e desumanização. Inspirada em quatro textos de Franz Kafka — Diante da Lei, Um Artista da Fome, Comunicado a uma Academia e Carta ao Pai —, a montagem cria uma linguagem visual híbrida, que mistura o teatro de Tadeusz Kantor com a estética das histórias em quadrinhos e dos desenhos animados, promovendo uma experiência estética e política provocadora. Em um espaço cenográfico que remete a um grande presídio, o espetáculo convida o público a mergulhar nas tensões entre liberdade e dominação, opressor e oprimido, sujeito e sistema. Nesta entrevista, o diretor Cesar Ribeiro compartilha um pouco da sua trajetória, os caminhos criativos que deram forma à montagem, suas escolhas estéticas, as referências filosóficas e políticas que fundamentam a obra e sua visão sobre o papel do teatro no debate social contemporâneo.
Bob Sousa – O espetáculo faz uma crítica contundente à violência estrutural e às dinâmicas de exclusão social. Como foi o seu processo para traduzir esses conceitos complexos em uma linguagem visual que combina elementos do teatro de Kantor, HQs e animação?
Cesar Ribeiro – Acho que para responder a essa pergunta é necessário voltar ao começo: quando era adolescente e morava no Rio de Janeiro, por volta de uns 12 ou 13 anos, a escola levava para ver espetáculos infantojuvenis. Era algo que eu detestava e não entendia: por que aquelas pessoas, vestidas daquele modo, faziam aquele monte de ações para tentar me enganar que aquilo era uma realidade?
Eram espetáculos reconhecidos na época e com uma base de atuação que tentava imitar a realidade, por mais que seus elementos e suas narrativas fossem fabulares. Claro que eu não tinha conhecimento técnico algum na época, nem conhecimento sobre teatro, mas ver aquelas pessoas imitando humanos era algo insuportável para mim, então irritei tanto meus professores até conseguir não ser mais obrigado a ver aquele tipo de coisa.
Anos mais tarde, já morando novamente em São Paulo, minha irmã fazia teatro amador no Club Homs, coordenado pelo Yunes Chami, ex-ator do grupo dirigido por Antunes Filho. Ela sempre falava muito bem das pessoas de lá. Na época eu andava com um pessoal punk e queria conhecer outras pessoas, então acabei entrando no grupo. Eles se dividiam em duas frentes: um grupo de iniciantes que ficava com o Yunes para começar uma formação em teatro e um grupo de pessoas que faziam teatro há mais tempo e estavam ensaiando O Túnel, do Dias Gomes, com direção do Sérgio Ferrara. Eles precisavam de um ator para um papel pequeno na peça e acabaram me chamando. Esse processo todo durou uns três meses e depois já estreei nessa peça, que tinha uma linguagem expressionista.
Logo em seguida fiz o teste para o profissionalizante do Indac e entrei. Aí aconteceram duas coisas: por um lado, logo no primeiro semestre, o professor de dramaturgia dividiu a turma em núcleos para criar uma micropeça a partir de um poeta. Precisávamos criar uma dramaturgia a partir desse poeta e uma encenação, além de atuar nela. Antes de entrar no Indac eu lia razoavelmente e escrevia principalmente em forma de diálogos, mesmo sem ter lido quase nada de dramaturgia antes, então acabei ajudando na construção dessa dramaturgia e em uma visão sobre como encenar. Quer dizer, desde o princípio, pensar o texto já vinha associado a uma forma de executá-lo esteticamente. Por outro lado, depois de quase uma década sem ver teatro, voltei a assistir, por influência dos professores. E as peças eram Trilogia Antiga, do Andrei Serban, Dionysus, do Tadashi Suzuki, Suz/O/Suz, do Fura Dels Baus, Paraíso Zona Norte, do Antunes Filho, e The Flash and Crash Days, do Gerald Thomas.
Aí entendi que o teatro poderia ser uma tela em que qualquer mundo pudesse ser criado, e não uma tentativa de imitação da aparência da realidade. Tudo se resumia a qual a estética ideal para dar vazão a uma ética – ou seja, importava muito o que se quer dialogar com as pessoas, mas também sob qual forma.
Desde então há uma soma de referências de todo tipo de linguagem e obra que fogem da aparência da realidade: algumas coisas de teatro, alguns filmes, dança contemporânea, teatro oriental, butô, expressionismo, quadrinhos, desenhos animados, pintura, jogos eletrônicos, séries, etc.
Uma base que está sempre presente são os modos dos corpos de Tadeusz Kantor associados com o modo de transição gestual do treinamento Suzuki. Isso por um motivo simples: tudo em cena deve ser partiturizado e codificado. É o corpo e a voz das pessoas que devem emitir a intenção de cada momento, e não os aspectos supostamente psicológicos – ainda que a gente sempre parta de uma linguagem fora da aparência da realidade para assumir essa aparência em alguns momentos.
Todo esse textão para dizer que essa linguagem visual presente em Trilogia Kafka está lá no começo. É um desenvolvimento de linguagem que tem seus componentes na direção de arte, mas principalmente em uma forma de atuação. Isso porque o tema central das montagens são os sistemas de violência a partir de um olhar urbano, que é meu foco de visão, então estamos sempre abordando a desumanização. Os corpos são artífices de um sistema repressivo, de um sistema de apagamento das diferenças, de humanidades deslocadas diante da estrutura social vigente desde a construção do país: colonização exploratória, genocídio indígena, escravização, racismo, machismo, homofobia, influência cristã, etc.
O que a gente vê hoje nesta nova ascensão dos fascistas não é apenas um momento histórico: é a própria história. História é uma sequência de eventos, de culturas, de pessoas, de sistemas, de passados e de memórias, mas é principalmente a história do sangue derramado, que tem sempre o mesmo alvo. Quando a gente fala de racismo – ou homofobia, ou machismo, ou religião –, falamos da cultura, esse elemento de que tanto enchemos a boca para elogiar como salvadora da humanidade, mas que é essencialmente a transmissão histórica da violência. Esses discursos de corpos produtivos e corpos matáveis de hoje têm sua origem na fundação disso que conhecemos como Brasil, transmitidos ao longo dos séculos por meio da violência cultural, fundamental para criar a violência estrutural e as diversas formas de violência direta.
A obra do Kafka é tudo isso, com a diferença de que ele parte do subjetivo: são as formas de violência que chegaram a ele que o levaram a uma análise das estruturas em que ele vivia, como a justiça, o trabalho, o Estado, a religião, a família e outras.
B.S. – Ao longo da Trilogia Kafka, diferentes personagens transitam entre os papéis de opressores e oprimidos. Como você enxerga essa fluidez das posições de poder dentro da montagem e qual a importância de evidenciar essas zonas de transição no momento político atual?
C. R. – Aqui interessa a obra de Kafka para atualizar sobre os efeitos do capital na sociedade. A montagem de Trilogia Kafka traz quatro textos: no brevíssimo Diante da Lei, uma pessoa chega às portas da Justiça pedindo acesso, sempre negado. Em O Artista da Fome, um grande artista de uma época se vê desvalorizado em outra época. Em Comunicado a uma Academia, um macaco é capturado e, para escapar da jaula, torna-se quase humano. Em Carta ao Pai, é o próprio Kafka que escreve uma carta para abordar a educação castradora.
Então a gente tem um quadro inicial que mostra as regras do jogo: se não temos acesso à Justiça, estamos falando de um sistema. E esse sistema atinge todos, ainda que mais uns do que outros – novamente, os alvos históricos da predominância da violência. Aqui a distinção entre opressor e oprimido é clara. No texto seguinte falamos de uma pessoa que foi um grande artista de uma época. Sendo grande artista, ele está inserido no sistema – e sistemas são dominações. Ele só olha para esse sistema quando o sistema o rejeita. Por outro lado, esse Artista da Fome tem como grande mérito conseguir jejuar por longos períodos, sendo um dos principais jejuadores da época. Mas sua capacidade de jejum não está relacionada a uma visão política, estética, social ou similar, e sim a não gostar de nenhum alimento. Ou seja, o tal do grande artista não foi construído a partir de uma visão de sociedade, mas de uma incapacidade. Quando perde sua relevância social, ele é substituído por uma jovem Pantera. Há uma discussão de fundo aqui: se, por um lado, o texto aborda o percurso das mudanças sociais, os modismos, a indústria cultural e o deslocamento das pessoas diante de determinado período histórico, o que implica a desconexão entre o ser e seu tempo, expandimos essa visão para um questionamento da arte: nem a pantera nem o jejuador são efetivamente artistas. Não há consciência social, política, ética ou estética no Artista da Fome. Há uma incapacidade. Então é uma arte ruim substituída por outra arte ruim, aludindo à indústria cultural – daí em determinado momento da peça ele dublar uma música da modinha. Já o Macaco que se humaniza fala nitidamente dos processos de violência e aculturação. Só que, diante dessa violência, o macaco se torna um grande artista do teatro musical, pertencendo às rodas da elite e com poder aquisitivo e social. Ou seja, diante da violência, ele se torna um agente do sistema. Por fim, em Carta ao Pai, após abordar como a educação castradora de seu pai provocou marcas profundas em todas as esferas da vida, Kafka propõe uma espécie de pedagogia da libertação, algo que fica mais evidente no final do texto, ao dizer algo como “apoiar os filhos sob todas as formas”. Ou seja, a ideia de família não como algo a ser valorizado, mas como algo a ser ponderado: famílias matam e famílias salvam, não são, obviamente, uma entidade positiva em si – basta ver que a maioria dos estupros de mulheres ocorre em casa e que o crime é cometido em sua maioria por conhecidos das vítimas.
Em relação à importância de evidenciar essas zonas de transição no momento político atual, primeiro é preciso dizer que fascista está errado. Não há uma zona cinzenta, não há ambiguidade, não há subjetividade, não há opinião: se sua forma de habitar o mundo é impeditiva da vida do outro, você está errado. Dito isso – e colocado nesse rol os defensores de ditadura, os defensores da religião como moldadora de costumes, os defensores do capital acima de tudo, etc. –, é preciso questionar como nos relacionamos em sociedade em uma realidade dominada pelo capital. Esse domínio do capital implica algumas coisas, sendo a principal o espaço dominador do macho branco. É na transição do feudalismo para o capitalismo – ou o período da acumulação primitiva – que, como diz Silvia Federici, há a exploração da mulher e o estabelecimento do controle social e de um patriarcado do salário. Também é o momento em que a escravidão estabelece como norma a raça. Também é o momento da imposição da religião cristã no Brasil. Ou seja, a engrenagem do Brasil hoje – marcada pela violência policial contra os corpos negros e periféricos, pelo machismo, pela homofobia, pela transfobia, pela tentativa de imposição ainda maior de uma moralidade cristã, pela marginalização dos povos originários etc. – é uma engrenagem que está no início do país. Tudo isso é dívida histórica, daí a elite do país sempre falar de “enxugamento do Estado”, que sempre quer dizer corte de gastos sociais, em vez de falar dos incentivos fiscais a setores, de taxação de fortunas, de sonegação e outros.
Tudo isso implica que vivemos em uma estrutura e uma cultura que conduz à opressão. E aí novamente falando: extrema-direita é opressão, direita é opressão, centro-direita é opressão… São traduções políticas daqueles que buscam a continuidade do sistema como tal, por serem privilegiados nesse sistema. Dito isso, aqueles que estão à esquerda precisam o tempo inteiro de uma autovigilância para não reproduzir em suas ações e falas exatamente aquilo que criticam. Uma pessoa branca tem privilégio de raça. Um homem tem privilégio de gênero. Há privilégios de acordo com orientação sexual e identidade de gênero. Um jovem adulto tem privilégio sobre crianças e idosos. Uma pessoa com dinheiro tem privilégio sobre pessoas de baixa renda. E por aí vai. Quer dizer, para quem é efetivamente criada – e criada é o termo, por serem arbítrios – a nossa sociedade? Então é preciso outra sociedade. É preciso consciência dessas distinções o tempo inteiro, mesmo quando se busca habitar o mundo com o mínimo de violência contra o outro. Trata-se também de escuta: ouvir o outro, formado a partir de vivências completamente distintas. E trata-se de considerar que o melhor para a sociedade não necessariamente é o melhor para si mesmo, que é outro modo de realizar o melhor para si: em vez de um posicionamento em que o “benefício” é direto, buscar também o “benefício” indireto, que é a justiça social. Isso implica recusa de muitas coisas. E sim, diante do capital, é preciso recusa em muitas esferas da vida – especialmente aqueles que são beneficiados por esse sistema.
Então a importância de evidenciar essa constante mudança de papéis que temos na sociedade, de consciência de momentos em que somos opressores mesmo pensando – ou afirmando – não ser, é também uma necessidade dentro da esquerda. Aqui não é apenas essa diferença entre um polo político nitidamente errado e opressor e um polo progressista, mas uma reflexão sobre nossa própria violência.
B. S. – O cenário de J. C. Serroni cria um espaço prisional e sangrento que coloca o público diretamente dentro da cena. Como foi pensar essa imersão cênica e qual o impacto esperado dessa escolha sobre a experiência e a percepção do espectador?
C.R. – Acho que tudo está relacionado ao que foi dito antes. Esta sociedade é uma prisão. Claro que não uma prisão em si, em que pessoas estão amontoadas sem direito nenhum, vítimas de violência de seus carcereiros e de outros prisioneiros, vítimas de uma justiça que trancafia por anos sem julgamento, vítimas de uma legislação que prende quem não deveria estar preso, vítimas de um sistema de vigília e punição que tem sempre os mesmos alvos. Então se trata da simbologia da prisão: o quanto as vidas e suas possibilidades são apagadas ou dificultadas por razões diversas. Não há sentido algum em uma pessoa bancar o fiscal da bunda do outro. Não há sentido em agredir um homem por usar saia ou beijar outro homem. Não há sentido nessa visão que condena pessoas em situação de rua como párias da sociedade. Não há sentido algum em valorizar alguém por sua capacidade de acumular riquezas. Não há sentido em um ser que reza para um deus X brigar com outro que reza para um deus Y. Não há sentido neste império da compra e da imagem. Não há sentido nessa construção do masculino e do feminino. Não há sentido em precificar o outro de acordo com a quantidade de melanina. Não há sentido em precificar o outro.