
Beatriz Barros e Jennifer Souza, por Bob Sousa
Estreia da Frente Coletiva no Sesc Belenzinho, o espetáculo Fuga convida o público a adentrar um museu em colapso durante uma tempestade de grandes proporções. Criada por Beatriz Barros e Jennifer Souza, a montagem mistura teatro, som, elementos naturais e sensorialidade para discutir os efeitos da crise climática e suas intersecções com o racismo ambiental e as desigualdades sociais. Inspirada no romance Parábola do Semeador, da escritora afro-americana Octavia Butler, a obra constrói um espaço cênico que oscila entre o cotidiano e o apocalíptico. A narrativa acompanha um grupo de mulheres afetadas por um desastre climático em São Paulo e revela as violências que recaem sobre corpos racializados e periféricos. Com dramaturgia de Louise Belmonte e colaboração do elenco, Fuga é também uma crítica ao produtivismo compulsório e um convite à escuta sensível das urgências do planeta. Nesta entrevista, conversamos com a diretora Beatriz Barros e a atriz e produtora Jennifer Souza sobre o processo de criação, os desafios da encenação e a potência política da arte em tempos de colapso.
Bob Sousa – O espetáculo constrói uma narrativa em transformação, em que a linguagem cênica se desloca do realista ao instável. Como você pensou essa transição dramatúrgica e visual ao longo da encenação?
Beatriz Barros – Desde o início do processo de criação, sempre acreditamos que o caminho de investigação se voltava justamente para essa ideia de transformação do espaço cênico em diálogo com todas as artes da cena. Como a pesquisa de criação teve duração de dois anos e meio — desenvolvida em conjunto com as intérpretes, a direção de movimento e a dramaturgia — cultivamos uma escuta contínua sobre quais caminhos permitiriam que essa instabilidade resultante da fuga do realismo florescesse em cena. Percebo que há, de fato, um movimento de orquestração necessário diante da presença de tantos recursos cênicos. E acredito que o foco estava exatamente em “como” construir essa instabilidade: quais são as possibilidades de deslocamento do realismo para o instável por meio da luz, do figurino, do cenário, da interpretação, da música, do corpo… Enfim, como cada linguagem poderia evocar essa saturação e contribuir para uma dramaturgia coletiva de todos os elementos.
Bob Sousa – A água, o vento, os sons, a lama e até a referência ao meteorito de Bendegó constroem uma atmosfera de catástrofe. Qual foi o ponto de partida para essa abordagem sensorial e como esses elementos interferiram no trabalho de direção?
Beatriz Barros – A abordagem sensorial esteve presente desde o início do projeto. Pensando que o teatro é um espaço de imersão — uma experiência sensível compartilhada com a plateia — essa lógica imersiva se tornou um dos pilares do projeto estético da peça. Lembro que, quando abrimos o processo na mostra FAROFA em 2024, era verão e chovia muito. Apresentamos em uma sala absurdamente quente, e o desconforto do público com o calor nos marcou profundamente. Acredito que essa experiência ficou impregnada no trabalho como um traço coletivo de criação.
Ao longo do tempo, algumas escolhas sensoriais iniciais foram reelaboradas. Por exemplo: em algumas aberturas de processo, as atrizes começavam a peça encharcadas, molhadas, tirando de baldes cheios d’água novos figurinos, que iam sendo sobrepostos em camadas. Elementos como a água, o calor, o vento surgiram assim organicamente da pesquisa. Acredito que esses elementos naturais estão na cena com a mesma força que os elementos da maquinaria teatral: luz, figurino, som. A água, por exemplo, tem sua própria dramaturgia. E todos esses componentes — naturais ou técnicos — foram pensados como instrumentos de orquestração dentro dessa proposta imersiva da direção.
Bob Sousa – Você menciona que não se trata de imaginar o apocalipse, mas de reconhecer que já vivemos nele. Como esse entendimento influenciou a sua postura como artista e as escolhas formais da obra?
Beatriz Barros – Quando falamos sobre reconhecer que já vivemos o apocalipse, nos referimos ao fato de que há algum tempo estamos em um colapso climático real e presente. E a realidade é a de que tudo vem se intensificando nos últimos anos. Morando em São Paulo, por exemplo, é visível que a cidade já não comporta mais as chuvas de verão. Os rios transbordam, e vivemos colapsos urbanos cada vez mais graves. Diante disso — e em conjunto com as diferentes áreas de pesquisa da criação — optamos por uma linha estética baseada no acúmulo e na saturação. O figurino, por exemplo, partiu de uma estética de acúmulo de plástico — as roupas são cada vez mais tomadas por esse material. A luz, ao longo da peça, vai se saturando em tons alaranjados e mergulhando em penumbras. Os corpos se deslocam gradualmente do realismo para uma expressividade ampliada, quase em estado de transbordamento. Cada área, à sua maneira, foi desenhando uma dramaturgia da circunstância: como se, a cada momento, mais água estivesse entrando na cidade. E a cena vai cedendo a esse excesso — colapsando junto com o mundo que retrata.
Bob Sousa – Em Fuga, você atua e também participa da criação e da produção. Como foi conciliar essas frentes no processo e o que esse envolvimento múltiplo provocou em sua atuação?
Jennifer Souza – Fuga nasce de um desejo que carrego como artista e criadora: colocar em cena as urgências do nosso tempo. Desde o início, quando compartilhei com Beatriz Barros a vontade de criar um espetáculo que falasse sobre as mudanças climáticas e seus impactos nos corpos e territórios, eu sabia que seria um compromisso grande, ético, político e poético. Idealizar esse projeto foi também reconhecer a responsabilidade de fazer disso não apenas um discurso, mas uma prática de criação coletiva e de profunda escuta do presente.
Minha trajetória como produtora me oferece um olhar para o todo, que atravessa todas as etapas, desde a concepção à realização. Estar envolvida em tantas frentes me possibilitou pensar o espetáculo como um organismo vivo, onde cada detalhe técnico, estético e político precisava conversar com a cena. Sempre é desafiador conciliar a produção com a atuação, porque são exigências diferentes, mas também tem uma potência, porque me coloca em estado de presença integral.
Além disso, idealizar o projeto exigiu de mim um exercício profundo de confiança. Quando se compartilha uma ideia, ela deixa de ser só sua e passa a ser do coletivo. É preciso sensibilidade para sustentar a visão inicial, mas também generosidade para permitir que outras camadas se somem, se transformem, ganhem corpo e respiro por meio das contribuições de todos. Esse é um trabalho invisível, interno, mas essencial: confiar no processo, confiar nas pessoas, confiar que a criação também é um lugar de escuta e afeto. É nesse gesto que o espetáculo começa a nascer, antes mesmo de subir ao palco.
Sobre dividir múltiplas tarefas, mesmo diante da responsabilidade de decisões e resoluções da produção e da idealização, estar dentro e fora, pensar estrutura e também emoção, fez com que minha presença de criação carregasse a densidade e a responsabilidade de quem viveu o espetáculo desde a sua semente. Nessa pesquisa, nada me é externo, tudo me atravessa. Houve um momento em que fui convocada a entrar e mergulhar mais profundamente na cena. Foi preciso interromper a lógica da entrega constante, das demandas de produção e do acompanhamento dos bastidores, para que meu corpo pudesse se entregar à criação como intérprete. Esse envolvimento múltiplo me conduziu a uma escuta mais sensível comigo mesma. Foi nesse processo que aprendi a reconhecer a hora de silenciar a produtora e a idealizadora, e permitir que a atriz criasse com plenitude. Confesso que esse foi um dos maiores desafios do processo, mas também um dos mais potentes. Um exercício de entrega, de confiança e de aprendizado contínuo.
Bob Sousa – A peça trata do racismo ambiental a partir de personagens que precisam seguir trabalhando, mesmo diante do colapso. Como vocês construíram essas personagens e suas motivações dentro dessa crítica social?
Jennifer Souza – A construção das personagens em Fuga partiu de uma escuta profunda das vivências do elenco — um grupo de mulheres com experiências diversas, racial, cultural e geográfica.
Somos, na maioria, pessoas nascidas nas periferias da Grande São Paulo ou do interior, e isso definiu não só o tom do espetáculo, mas também sua raiz política. Desde o início, sabíamos que a pergunta central não era apenas “o que queremos dizer?”, mas sim: na boca de quem vamos colocar esse discurso? Essa pergunta foi a base ética e dramatúrgica de todo o processo.
Foi um longo caminho de pesquisa até chegar nesse recorte. Começamos investigando catástrofes naturais e narrativas de colapso ao redor do mundo, tentando entender o que está por trás da ideia de “fim do mundo”, e logo percebemos que essa noção, tão presente na ficção especulativa e nos discursos ambientais globais, muitas vezes carrega uma perspectiva colonial, eurocentrada e apocalíptica. Questionamos muito essa ideia do fim como algo definitivo, como o colapso total da vida. Com o pensamento de Nego Bispo e Ailton Krenak conseguimos deslocar esse olhar: compreendemos que o mundo, em sua potência de natureza e vida, seguirá existindo. O que está em ruína é uma certa forma de organização, uma lógica de dominação, extração e controle que insiste em tratar a Terra como recurso a ser explorado, e não como um organismo do qual fazemos parte.
Essa virada de chave nos fez pensar: de que fim estamos falando? Para quem o mundo já acabou ou nunca chegou a começar? E quais vozes têm narrado essa história?
Inspiradas pela leitura de Parábola do Semeador, de Octavia Butler, que traz uma ficção racializada e profundamente política, refletimos sobre como construir personagens que carregassem em si essas tensões. Mulheres que continuam existindo dentro da crise, porque não têm a opção de parar. E, ao invés de criar figuras, fomos pelo caminho inverso: construir personagens com nome, história, memórias e afetos. Com experiências distintas, subjetividades que se cruzam, mas não se confundem.
As personagens foram criadas a partir de materiais pessoais das atrizes, combinando ficção e memória, pesquisa e vivência, e trabalho de corpo e escuta. O trabalho dramatúrgico se deu nesse terreno fértil, onde política e sensibilidade se encontravam. Queríamos que o público não visse apenas “trabalhadoras diante do colapso”, mas sim pessoas reais, complexas, com sentimentos contraditórios e forças que vêm da vida e não do mito.
O trabalho corporal e vocal foi orientado por perguntas como: quem são essas mulheres que continuam indo para o trabalho mesmo com a cidade alagada, o transporte parando, a casa desabando? Que tipo de força é essa? Que tipo de silêncio ela carrega? Que linguagem ainda é possível quando a estrutura que sustenta a vida já não dá conta?
Nesse mesmo sentido, também buscamos dar voz, corpo e presença a elementos como a lama, a água e o meteorito de Bendegó, não como objetos de cena, mas como entidades com suas próprias histórias. A lama que soterra e silencia; a água que inunda, leva e resiste; o meteorito que, arrancado da terra e transformado em peça de museu, carrega as marcas de uma lógica colonial de exploração e apropriação. O Bendegó, em especial, nos atravessou muito: um corpo celeste que viaja séculos até tocar o solo, e que depois vira relíquia — símbolo de um país que exibe suas ruínas como conquistas, sem escutar o que elas têm a dizer. E o museu, espaço onde a peça acontece, carrega também essa tensão: fundado sobre pilares coloniais, guardião de um patrimônio muitas vezes construído sobre o roubo cultural e a violência simbólica contra povos originários e povos negros.
Trazer esses elementos para a cena foi, portanto, uma escolha política. Fuga não é apenas sobre personagens humanas, mas sobre corpos-território, corpos-elemento, corpos-memória. Porque falar de colapso e resistência exige dar espaço para tudo aquilo que foi calado, inclusive as pedras, os rios e os vestígios do tempo.
Ao invés de criar heroínas, buscamos retratar trabalhadoras, atravessadas pelo caos, mas que seguem não por escolha, mas por necessidade. Porque o racismo ambiental se manifesta exatamente aí: no fato de que, mesmo diante da catástrofe, certos corpos não têm a opção de parar, nem de gritar, nem de recusar. E foi essa recusa que tentamos escavar no gesto, no corpo em trauma, nas palavras que custam a sair e nos olhares de cada personagem.
Bob Sousa – O espetáculo propõe uma experiência coletiva de imersão e escuta. O que você espera que o público leve consigo após atravessar essa jornada dentro do museu em ruínas?
Jennifer Souza – É um convite para atravessar um mundo em ruínas — e não um mundo imaginado, mas aquele que já está diante de nós, colapsando aos poucos, nos detalhes do cotidiano. O espaço do museu em ruínas é, ao mesmo tempo, cenário e personagem. Ele não serve apenas de fundo, mas age sobre os corpos, sobre a luz, sobre o som e sobre quem assiste.
A cena se constrói a partir de imagens fortes, de uma fisicalidade intensa e de uma composição técnica que não está ali para ilustrar, mas para tensionar sentidos. A luz, o som, a recepção do público na entrada do teatro, tudo colabora para tirar o espectador do lugar seguro e conduzi-lo a uma zona de presença e desconforto. A peça não se entrega de forma linear. Ela convida a sentir, a ficar, a perceber os vazios tanto quanto as palavras.
Nossa intenção desde as aberturas de processo sempre foi afetar, provocar uma ruptura, mesmo que pequena, na forma como olhamos para o tempo em que vivemos. Se há ruína, também há resistência. Se há lama, também há gesto. E talvez, nesse encontro entre quem assiste e quem habita a cena, nasça um espaço comum — frágil, sim, mas fértil — de possível inquietação diante do caos que é presente e é o agora.