
Áurea Maranhão, por Bob Sousa
A artista maranhense Áurea Maranhão estreia no Sesc Ipiranga o espetáculo ARGILA, obra-instalação que reúne performance, música e palavra em uma travessia sensorial sobre a crise do presente. A peça integra o projeto Teatro Mínimo e propõe um ritual cênico em que barro, corpo e som se fundem para escavar feridas coloniais, urgências climáticas e potências de reinvenção. Com dramaturgia inspirada por pensadores como Sidarta Ribeiro e Ailton Krenak, ARGILA se constrói como um chamado ao sonho coletivo e à ética do cuidado, ao mesmo tempo em que celebra a força criativa do Norte e Nordeste. Conversamos com Áurea sobre os processos por trás da montagem, o diálogo com saberes ancestrais e a urgência de imaginar outros futuros possíveis.
Bob Sousa – O espetáculo parte de uma reflexão profunda sobre o presente, inspirada por autores como Sidarta Ribeiro e Ailton Krenak. Como essas leituras atravessaram a sua escrita cênica e moldaram a dramaturgia de ARGILA?
Há muitos anos assisti ao filme Fahrenheit 451, dirigido por François Truffaut, que mostra um futuro maluco onde ler virou crime. Na história, os livros são proibidos sob o argumento de que deixam as pessoas tristes e improdutivas. Se alguém é pego lendo, vai direto para a prisão ser “reeducado”, e quem tem muitos livros em casa pode ser denunciado pelos próprios vizinhos, tendo sua casa incendiada pelos bombeiros – que, nesse futuro distópico, têm a função de queimar livros, em vez de apagar incêndios.
No filme, Montag é um desses bombeiros. Ele curte seu trabalho incendiário até que começa, por curiosidade, a pegar escondido alguns livros para ler. Quanto mais ele lê, mais percebe o absurdo daquela realidade. Sua esposa, Linda, nota algo estranho e o denuncia ao governo, colocando Montag numa situação bem complicada. A sorte dele é Clarisse, uma amiga cheia de ideias diferentes que ele conhece no metrô. Perseguido e declarado morto na TV só para dar exemplo, Montag consegue fugir com a ajuda de Clarisse para um lugar secreto, onde descobre os “homens-livro”, uma comunidade de pessoas que decoram livros inteiros para preservar o conhecimento até o dia em que eles não sejam mais proibidos.
Quando li as obras do Sidarta Ribeiro e do Ailton Krenak, senti algo muito parecido com a motivação desses homens-livro. Lendo o Sonho Manifesto, tive uma verdadeira epifania: o livro organizava pensamentos que faziam todo sentido pra mim, e aquilo me inspirou e me provocou profundamente a estudar e querer também ser uma espécie de “pessoa-livro”.
Nas primeiras aparições de ARGILA, eu ainda não tinha um texto definido. Mas, em uma performance posterior, chegou o texto do Sonho Manifesto, e, aos poucos, ao longo dos anos, a dramaturgia foi se construindo naturalmente, sempre seguindo o caminho da necessidade e da urgência das coisas que precisavam ser ditas e que eu sonhava em dizer em voz alta.
Bob Sousa – A argila aparece em cena como matéria simbólica e elemento dramatúrgico. Que caminhos você percorreu até encontrar no barro esse meio de diálogo com ancestralidade, corpo e transformação?
Durante a pandemia, quando todos os artistas estavam na internet tentando encontrar formas de criar e compartilhar suas ideias, eu peguei um edital que exigia apresentar um trabalho. Aquele momento era um verdadeiro pesadelo, e eu fiquei refletindo profundamente sobre como poderia me reconectar com o meu prazer, com o meu trabalho e com a minha pesquisa artística. Eu me perguntava: para onde vou agora, depois de tudo isso? O ponto de partida havia mudado completamente.
Comecei a me fazer perguntas bem pontuais: O que eu quero dizer em cena? Onde está meu desejo? O que faz sentido compartilhar nesse momento tão delicado? Procurando respostas, lembrei que eu tinha em casa umas argilas pequenas, dessas vendidas em pacotes para artesanato. Nem lembro exatamente por que elas estavam lá, mas decidi pegá-las e comecei a brincar, a me mover com elas. A argila se tornou meu brinquedo, meu único material de trabalho naquele momento tão difícil.
Foi ao longo desse processo de dança com a argila que comecei a lembrar da minha criança, que cresceu na beira de um manguezal. A brincadeira com o barro me levou de volta a um tempo de aventuras e trocas espontâneas com a natureza. Foi como resgatar uma parte de mim que estava esquecida, adormecida, apagada. Esse reencontro com minha memória mais afetiva e profunda fortaleceu ainda mais a presença da argila na minha pesquisa artística.
Mais tarde, em 2021 ou 2022, recebi o convite da Verbo para performar uma pergunta, e nessa mesma época eu estava lendo o livro do Sidarta Ribeiro, presente da Tathy Yagizi, que é provocadora nesse trabalho. A partir daí, comecei a dançar com a argila e com o Sidarta, criando uma espécie de jogo onde hora eu lia trechos do livro, hora me movimentava com o barro.
Nessa performance inicial, toda a equipe estava comigo em cena, interagindo e participando ativamente: a minha assistente de direção Luty Barteix, que também fez a direção de movimento e a preparação corporal; a nossa diretora de arte, cenógrafa, figurinista, maquiadora e cabeleireira Eliane Barros (que, além disso tudo, é minha mãe!); a Valda Lino, que criou a direção musical e performa ao vivo com uma presença incrível; a Amanda Travassos, sempre cuidando das nossas redes e da identidade visual; e, naquela ocasião especial, contamos ainda com a presença da cineasta Keyci Martins, responsável pelas nossas imagens. Além disso, muitas pessoas queridas assistiam, inclusive meu pai, João Teixeira Neto, que não aguentou só observar e acabou entrando em cena também. Foi um momento especial de encontro e criação coletiva.
Um tempo depois, Renato Guterres chegou à equipe para dar luz ao que estávamos criando, contribuindo com seu olhar sensível e ajudando a revelar novas camadas da performance. Chegou junto recentemente também Isaque Marinho que vem editando nossos materiais e construindo uma narrativa de apresentação do trabalho nas redes sociais. E nossa equipe se completa com a presença sensível e cuidadosa do produtor e artista impecável Ricardo Henrique que está fazendo nossa produção em São Paulo.
Alguns anos depois, o Centro Cultural da Vale me chamou para apresentar esse trabalho novamente, e foi aí que surgiu uma nova fase para ARGILA. Passamos a organizar a dramaturgia a partir de trechos selecionados do livro, dando à performance uma outra estrutura. Depois disso fomos para o SESC – MA, e nesse ponto a presença musical da Valda ganhou ainda mais destaque, encontrando na sala de ensaio novos caminhos. Eu fazia questão de ter música ao vivo, e ela brilhou demais e segue brilhando a cada apresentação.
Ao longo desse percurso fui construindo minha narrativa cênica, que aos poucos ganhou destaque na construção textual. Uma grande dramaturga da ilha, Nicole Machado, ao assistir a primeira versão da peça, me disse algo que redimensionou a escrita do trabalho. Ela disse que gostaria de ouvir o Sidarta Ribeiro a partir de mim, com as minhas próprias palavras, minhas histórias e minhas referências. Foi então que organizei meus pensamentos e mergulhei profundamente nessa escrita, que já estava pulsando no meu corpo, no meu inconsciente criativo.
Na dramaturgia da peça, trouxe lembranças muito vivas da minha infância, especialmente da minha relação com o mangue, com a natureza e com o lugar onde cresci. Essas memórias se entrelaçam num diálogo imaginário com minha avó e com minha mãe, criando uma narrativa que conecta três gerações distintas. Apesar dessas personagens serem reais, elas surgem na obra de forma friccionada, poeticamente misturadas, como uma forma de falar sobre mulheres que viveram em mundos diferentes, mas que em algum momento do tempo e espaço estiveram juntas numa mesma existência. Minha menina interior, minha mãe e minha avó aparecem como vozes que atravessam o espetáculo, propondo uma reflexão sobre passado, presente e futuro. É nesse encontro entre gerações que a peça busca refletir sobre o que herdamos, o que escolhemos levar adiante, e principalmente sobre quais futuros ainda podemos construir juntas.
Bob Sousa – A montagem nasce em São Luís do Maranhão, com uma equipe majoritariamente local. Como a experiência de criar desde o Norte e Nordeste influencia o modo de pensar o teatro e sua relação com o território?
Eu acredito profundamente que o meio onde vivemos nos forma. A geografia, o território e as experiências dentro da comunidade moldam quem somos, como pensamos e sentimos. Isso certamente provoca um olhar diferente sobre o que se entende por cultura local. Nossa relação com a cultura passa a ganhar outra relevância, outro significado.
Cresci dentro das brincadeiras do Bumba Meu Boi, e para quem vive em São Luís é impossível não participar ou respirar essas tradições culturais, porque a cidade inteira pulsa com elas, influenciando todos os moradores. Sem dúvida, meu desejo de falar sobre essa “curadoria criteriosa das tradições”, como diz o Sidarta Ribeiro em seu livro Sonho Manifesto, vem justamente da necessidade de me situar geograficamente no mapa-múndi, de afirmar de onde venho e reconhecer o que me forma.
Na peça, acredito que isso fica bastante nítido. Meu desejo não é exibir apenas minhas escolhas pessoais, mas sim provocar o público para que também se relembre das suas próprias raízes, origens e trajetórias. É sobre despertar nas pessoas a importância de se reconectar com o que as constitui, para além daquilo que apresento em cena.
Bob Sousa – A obra entrelaça palavra falada, música ao vivo e movimento em uma composição sensorial. Como se deu o processo colaborativo entre você, Valda Lino e Luty Barteix para a construção dessa linguagem híbrida?
Ao longo de toda a pesquisa e montagem, uma palavra nos guiou intensamente: necessidade. Essa palavra foi como uma bússola, acompanhando cada passo que dávamos dentro do processo. Trabalhar na chave da necessidade foi uma escolha consciente e estratégica. Nos perguntávamos constantemente o que era, de fato, necessário contar, e quais elementos precisavam estar presentes para expressar a história que estávamos desenhando juntas. Esse exercício foi nos levando naturalmente à criação dos procedimentos que formaram nossa linguagem cênica híbrida.
Minha parceria com Valda e Luty começou muito antes do espetáculo ARGILA. Há alguns anos, eu já tinha convidado as duas para performar comigo uma ideia sobre herança. Não a herança material, mas as heranças imateriais que nos constituem: as culturais, as sociais, aquelas que marcam profundamente nossa identidade e trajetória. Desde então, nosso terreno de pesquisa foi ganhando mais força, mais profundidade, mais raízes.
Com a Valda Lino, o trabalho musical e percussivo esteve presente desde o início. Nossa investigação partiu da experimentação sonora, misturando elementos gravados e editados, tanto musicais quanto da palavra falada, até encontrar um lugar potente para a performance musical ao vivo. Pouco antes de definirmos o caminho percussivo definitivo da peça, surgiu uma pergunta essencial: quais instrumentos nós levaríamos para a cena e por quê?
Essa reflexão também foi fundamental na dramaturgia sonora da peça. Cada instrumento presente em ARGILA carrega consigo uma simbologia particular e, através dela, conta uma história específica. Por exemplo, no início da peça, Valda toca o Tambor Onça, tradicionalmente utilizado no Bumba Meu Boi da Baixada Maranhense, um instrumento que carrega uma ancestralidade e uma força cultural enorme. Buscamos em cada instrumento uma justificativa profunda e poética, questionando sempre qual a necessidade daquele som, daquele objeto, daquela presença musical no espetáculo. A música em ARGILA é dramaturgia também, ela conta histórias e cria atmosferas que dialogam diretamente com o corpo e a palavra.
Esse processo musical inevitavelmente dialogou de maneira intensa com o corpo. Com a Luty Barteix, que realizou a assistência de direção, a direção de movimento e a preparação corporal, fomos buscando caminhos físicos para expressar as reflexões propostas pelos textos de Sidarta Ribeiro e Ailton Krenak. Ambos os autores falam bastante sobre a desconexão do nosso corpo com a natureza, da perda da nossa força animal, instintiva e natural. A argila, nesse sentido, se tornou um elemento de conexão, um elo físico e simbólico entre corpo, ancestralidade e território. Nosso desejo sempre foi trazer à tona essas questões através do corpo, explorando sensações, memórias e possibilidades de movimento que nos fizessem reconectar com algo perdido ou esquecido dentro de nós mesmos.
ARGILA, nesse sentido, nasce de um profundo desejo de fazer perguntas. Perguntas sobre o presente, sobre o futuro, sobre o nosso modo de estar no mundo. O nosso intuito não é oferecer respostas prontas, mas estimular o público a se questionar coletivamente: como podemos voltar a sonhar juntos? Como recuperar a conexão perdida com a natureza, com o corpo e com nossa ancestralidade? É possível ainda imaginar um futuro mais justo, mais sensível e mais conectado?
Acredito que o espetáculo tenha justamente esse poder: o de provocar uma experiência sensorial, emocional e intelectual, convidando cada espectador a refletir sobre suas próprias origens, suas relações com o território, com o outro e consigo mesmo. É nesse espaço compartilhado entre palavra, som, movimento e barro que ARGILA acontece, uma proposta aberta ao sonho, à escuta, à memória e à transformação.
Bob Sousa – ARGILA encerra com a pergunta “quem ainda podemos ser, se ousarmos sonhar juntos?”. Que tipo de escuta e transformação você espera provocar no público a partir desse convite poético e político?
Na versão que estamos trazendo agora para São Paulo, acrescentamos outra reflexão potente, encerrando a peça com a frase:
“Só porque algo é antigo não significa que vale a pena ser mantido, pois o tempo tanto pode depurar quanto apodrecer as coisas. Precisamos de cura.”
Essas duas reflexões não se excluem. Ao contrário, elas se complementam profundamente na dramaturgia atual da peça. Com o tempo, percebi que antes mesmo de nos lançarmos ao sonho coletivo, precisamos primeiro nos perguntar de maneira franca e responsável quais tradições e narrativas queremos, de fato, levar para o futuro.
É nesse sentido que ARGILA propõe uma curadoria criteriosa e consciente das nossas heranças culturais, sociais e políticas. Acredito que, para sonharmos juntos, considerando as geografias diversas que nos formam, as nossas culturas, territórios e comunidades, precisamos primeiro nos abrir a uma escuta profunda e verdadeira, que reconheça criticamente as trajetórias históricas que nos trouxeram até aqui. Precisamos, acima de tudo, romper com ciclos de repetição que perpetuam antigos erros, violências e injustiças.
O espetáculo, ao abraçar esse convite poético e político, deseja provocar no público justamente esse exercício de escuta atenta e de reflexão crítica. O que devemos deixar para trás? O que merece ser cultivado e cuidado coletivamente? Que novas narrativas precisamos criar para o futuro que desejamos construir juntos?
Essa perspectiva nasce também das pesquisas e leituras que acompanham o trabalho, especialmente das reflexões propostas por Sidarta Ribeiro e Ailton Krenak. Eles defendem uma ética radical do cuidado, sugerindo que não é possível avançar rumo a um futuro mais justo e conectado sem antes estabelecer relações de profundo respeito pelas origens, pela diversidade cultural, pelas especificidades dos territórios e, sobretudo, pela própria natureza que nos sustenta.
Nesse sentido, ARGILA não oferece respostas prontas, mas abre um espaço fértil e necessário para o questionamento coletivo. Queremos que o público saia da peça não apenas tocado esteticamente, mas profundamente mobilizado a se perguntar sobre o futuro que estamos projetando enquanto sociedade.
Acredito que a transformação provocada por ARGILA aconteça nesse lugar: no reconhecimento sensível e histórico das nossas trajetórias, memórias e tradições, e também no entendimento de que precisamos urgentemente criar novas formas de existir e conviver. Sonhar coletivamente, para nós, é um exercício que exige coragem e disposição para abandonar o que não nos serve mais, mas também imaginação para criar outros futuros possíveis.
Será que vamos conseguir realizar isso juntos? Ainda não sabemos. Mas o espetáculo parte da certeza de que chegou a hora, mais do que nunca, de refletirmos juntos sobre os caminhos possíveis pelos quais iremos navegar rumo ao futuro. Talvez só assim possamos finalmente responder à pergunta fundamental que move toda a peça: Quem ainda poderemos ser, se ousarmos sonhar e cuidar juntos?
Agradecemos ao Teatro Garagem, da atriz Anette Naiman, pela acolhida e cessão do ambiente onde realizamos o ensaio fotográfico que acompanha esta entrevista.