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VER O OUTRO: Bob Sousa entrevista Alexandre Dal Farra

Publicado em: 22/07/2025 |

Alexandre Dal Farra, por Bob Sousa

A estreia brasileira de Vermes Radiantes, escrita pelo inglês Philip Ridley, ganha contornos ainda mais provocadores sob a direção de Alexandre Dal Farra. A montagem, em cartaz no Sesc Pompeia de 17 de julho a 10 de agosto, mergulha de forma radical nos efeitos da gentrificação e da lógica neoliberal sobre o corpo social, utilizando um humor ácido para tensionar os limites da empatia e da ascensão a qualquer custo. Com atuações de Maria Eduarda de Carvalho e Rui Ricardo Diaz, além da presença cênica e musical de Marco França, a peça coloca o público diante de um dilema ético: o que estamos dispostos a fazer para conquistar nossos desejos mais íntimos? Em entrevista, Dal Farra compartilha suas reflexões sobre o processo de adaptação, o discurso político por trás da encenação e o desafio de trazer à tona, com linguagem contemporânea, uma crítica mordaz que se dirige diretamente à cidade de São Paulo e a seus paradoxos mais cruéis.

 

Bob Sousa – A peça parte de uma narrativa íntima, quase confessional, para escancarar uma crítica social feroz. Como você trabalhou, na encenação, essa tensão entre o humor e o horror contido na dramaturgia de Ridley?

Alexandre Dal Farra – Creio que esse limite é algo que tem a ver com meu trabalho em geral, esse riso que também vem acompanhado de algum desconforto. Todo o trabalho foi feito no sentido de precisar a ironia, para que não transformássemos sempre as personagens em “outros” distantes que julgamos confortavelmente. Por isso, a encenação posiciona as figuras o mais perto possível de nós e procura sempre olhá-las de perto, sem deixar que a distância excessiva nos deixe numa posição confortável demais. Isso influencia cenário, figurinos, luz, música e atuação.

Bob Sousa – Em seu texto de apresentação, você resgata o debate sobre gentrificação e o papel da cultura como vetor desse processo. Como esse olhar crítico se manifesta na linguagem cênica do espetáculo?

Alexandre Dal Farra – Procurei, na encenação, explicitar processos de que todos nós participamos. Como se sabe, a própria cultura serve como ponta de lança nesse tipo de processo de especulação imobiliária que é o que rege de fato uma cidade como São Paulo, por exemplo. De alguma forma creio que o público, no contato com os ambientes que vão se criando em cena, vai se identificando com aqueles dois e com os espaços que eles geram, ao mesmo tempo em que olha para o processo de forma crítica, e se vê também como parte disso. Essa é a intenção ao menos.

Bob Sousa – A presença de Marco França, atuando também como músico, amplia o campo sonoro da peça. Como o trabalho musical se integra à dramaturgia e à construção de sentido da encenação?

Alexandre Dal Farra – O trabalho musical com o Marco França fluiu de uma maneira realmente incomum. Conversamos sobre os conceitos básicos da encenação, fundamentalmente essa proposta de que não olhássemos as personagens muito de longe e que a encenação não frisasse demais a ironia, mas nos carregasse e de alguma forma aproximasse das personagens, e ele ia criando as trilhas ali ao vivo, auxiliando o encaminhamento da dramaturgia de forma impressionante. Marco entende em profundidade as necessidades estruturais da obra e sua música já nasce em conexão direta com a estrutura dramatúrgica.

Bob Sousa – Os personagens de Vermes Radiantes encarnam, de maneira quase alegórica, as engrenagens do capital. Como foi dirigir os atores nesse jogo de representação que envolve humor, delírio e crueldade?

Alexandre Dal Farra – A Duda e o Rui são dois grandes atores, não é necessário dizer. Além disso, têm um diálogo ótimo em cena. Creio que eles se completam de fato perfeitamente para gerar o que a peça necessita, ou seja, ironia mordaz por um lado, mas também sustentação do drama, por outro. Se fôssemos demais para o drama, estaríamos perdendo totalmente o prumo da obra, perdendo o sarcasmo que está na sua própria estrutura, mas, por outro lado, se tudo fosse feito em registro cômico, perderíamos o peso do que se está falando. É um equilíbrio super delicado que fomos construindo para que estejamos sempre passeando nesse fio da navalha entre o cômico e o brutal, entre o riso e o horror.

Bob Sousa – Ridley escreve personagens que falam direto com o público, provocam, quase imploram por empatia. Qual foi o desafio de manter essa relação direta sem atenuar a força incômoda do texto?

Alexandre Dal Farra – Creio que quanto mais esses personagens de fato são interpretados como se pudessem ser qualquer um de nós, sem julgamento, sem desenhar criticamente demais quem eles seriam no nosso imaginário – em suma, quanto mais nos permitimos nos aproximar deles, mais incômoda a peça fica, mas também, mais engraçada. Rir do outro, sentado na nossa cadeira julgando, quem quer que seja esse outro, é para mim um humor fácil, não vejo muita graça nisso, mas rir de si mesmo é outra história. Aí a coisa começa a ficar interessante. E acho que esse texto do Ridley permite esse olhar ácido para nós mesmos. E essa foi a minha principal proposta com a encenação, em todos os níveis. Que estivéssemos falando também de nós. Seria fácil por exemplo que a casa que fosse sendo construída fosse super cafona, estilo neoclássico de mau gosto, e isso nos daria distância pra olhar esse casal como se fosse algum “eles” em que não nos incluímos. Mas fiz questão de trazer elementos de cenário, figurino e música que não fossem tão facilmente julgáveis. Para que o riso não ficasse tão fácil. Acho portanto que essa aproximação que os personagens tentam em relação ao público, quanto mais a levarmos a sério, melhor a peça fica. Ao contrário de atenuar o incômodo, a proximidade o intensifica. No momento em que estamos, em que a sociedade tende a posições muito fixas em que julgamos os outros sempre de um lugar muito estável e seguro, criar esse tipo de desconforto me parece fundamental.